domingo, 29 de dezembro de 2013

DESPEDIDA


Hão-de erguer-se entre o meu amor e eu
trezentas noites quais trezentos muros
e o mar será magia entre nós dois.

Apenas haverá recordações.
Oh tardes merecidas pela pena,
noites esperançadas ao olhar-te
campos do meu caminho, firmamento
que vejo e vou perdendo...
Definitiva como um mármore,
a tua ausência irá entristecer as tardes.

JORGE LUIS BORGES, in FERVOR DE BUENOS AIRES, in OBRAS COMPLETAS I 1923-1949, trad. de FERNANDO PINTO DO AMARAL (Teorema, 1998)

sábado, 28 de dezembro de 2013

Esgotei o meu mal, agora


Esgotei o meu mal, agora
Queria tudo esquecer, tudo abandonar
Caminhar pela noite fora
Num barco em pleno mar.

Mergulhar as mãos nas ondas escuras
Até que elas fossem essas mãos
Solitárias e puras
Que eu sonhei ter.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in DIA DO MAR (1947), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

INCONGRUÊNCIA


Espero-te para que me abraces
Com tuas asas gigantes.
As mesmas com que me limpas
As lágrimas que correm em torrente.
Mas afasto-te bruscamente,
Como se te odiasse, de repente...
Quero-te e não te quero,
Desejo-te e não te quero,
Desejo-te e detesto-me por isso
Choro por ti e…a raiva invade-me...
Quero avidamente as tuas asas gigantes.
Volta! Choremos juntos...
Esqueçamos essa revolta que nos cega,
Ilusória, louca, imensa...
Unamo-nos! Abracemo-nos, Fortemente
E com a mesma fogueira, que outrora
Nos feria, nos doía, nos enlouquecia!
Espero-te para que me abraces,
Com tuas asas gigantes.

GUIOMAR CASAS NOVAS, in PALAVRAS NOSSAS - COLECTÂNEA DE NOVOS POETAS PORTUGUESES (Esfera do Caos, 2011)

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

A MEMÓRIA DE TI CALMA E ANTIGA


A memória de ti calma e antiga
Habita os meus caminhos solitários
Enquanto o acaso vão me oferece os vários
Rostos da hora inimiga

Nem terror nem lágrimas nem tempo
Me separarão de ti
Que moras para além do vento.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in MAR NOVO (1958) in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

domingo, 15 de dezembro de 2013

IV


Falamos junto à luz. Lá fora a noite
Imóvel brilha sobre o mar parado.
À sombra das palavras o teu rosto
Em mim se inscreve como se durasse.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in DUAL (Moraes Ed., 1972), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

ADIAMENTO


Olhar-te bem nos olhos: que voragem!
Ouvir-te a voz na alma: que estridência!
É tão difícil termos coragem
de nos vermos enfim sem compalcência.

É tão difícil regressar de viagem,
e descobrir no rastro tanta ausência...
Mas os meus olhos, súbito, reagem.
À tua voz chega o silêncio e vence-a.

Nos pulsos vibra ainda o mesmo rio
que no delta dos dedos se extasia
e moroso reflui ao coração.

O gesto de acusar-te? Suspendi-o.
Mas foi só aguardando melhor dia
em que tenha lugar a execução.

DAVID MOURÃO FERREIRA, in INFINITO PESSOAL (Guimarães Ed., 1962), in OBRA POÉTICA (Ed. Presença, 2006)

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

COMO PODEREMOS BEIJAR ESSA BOCA


Como poderemos beijar essa boca que apenas se anuncia
com a suave tristeza de quem ainda ama as sílabas do sangue
ou a lua cálida das velas?
Essa boca talvez seja apenas uma boca de sombra
e quase uma boca de cal
mas a sua forma ainda é uma margem estremecida
uma erva que respira
sobre a pedra azul da melancolia
Que palavra poderá dar um espaço à sua sede
como uma guitarra que lentamente se acende na noite?
Mas no peito frágil como um pássaro palpita ainda um astro
vibrante como uma haste inclinada pelo vento
Ela acaricia a sua crisálida de areia
como se fosse o corpo amante ou uma palavra preciosa
Não posso desenhar o movimento do seu coração
nem encontrar a palavra que fosse um beijo vacilante mas
O meu pulso no entanto estremece
com o rumor de um sangue
que desejaria ser a luz da sua sede

ANTONIO RAMOS ROSA, in AS PALAVRAS (Campo das Letras, 2001)

domingo, 8 de dezembro de 2013

O Amor é o Elixir da Juventude


O amor é um poema. Dói e canta cá dentro. Tem a filosofia das árvores, a lição do mar, os ensinamentos que as aves recolhem quando migram para lá dos desertos, de onde hão-de regressar mais sábias e seguras. O amor é uma causa. Uma luta excessiva com a divindade dos dias e a sua fogueira obscura. Mas também contra o mistério de si mesmo, uma paz que nos dá o cansaço e a loucura infeliz da felicidade, esse primitivo terror dos sinos que tocam como um aviso aos densos nevoeiros súbitos do mar. 

O amor é uma casa. Erguida com os beijos, com os versos da noite e o gemido das estrelas. Casa cujas paredes vestem o nosso júbilo, a nossa intuição, a nossa vontade, sobretudo o nosso instinto e a nossa sabedoria. Onde se acende e brilha a luz suplicante da pele comprometida dos amantes. O amor é um gigantesco pequeno mistério, uma estranha generosidade que faz com que, quanto mais damos, com mais ficamos para dar. 

Só o amor é o elixir da juventude. Não esse que sempre se procurou nas indecifráveis formulas dos antigos livros de magia e de alquimia, mas aquele que está tão perto de nós que, por vezes, o pisamos sem reparar. 

Joaquim Pessoa, in 'Guardar o Fogo'

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

OS OLHOS


se um gesto me definisse seria o de te afastar o cabelo para te ver melhor o rosto que me enche de bravura

e só te vejo pelos meus olhos por serem os que te vêem mais bela
por isso os escolho sempre
tenho os olhos feitos à medida da tua cara
e só tenho olhos para ti
quando não estás sou invisível e quase invisual
a visão não me serve de nada
vejo mas sem cor e é pior que a preto e branco
é desfocado
é esbatido
e sem chama
e sem cheiro
contigo cheira bem
sabe bem
ouve bem o que digo porque é sincero porque se não fosse todo eu era falso
cada falso que há aí merecia cadeia ou morte
mas com os teus braços finos a fazer as vezes da corda que me serpenteia o pescoço para me matar de felicidade

e só te quero a ti
e só te vejo a ti como a última noite do Verão mais quente
com o céu mais estrelado
com a lua mais cúmplice
com os gestos mais carinhosos
e tiro-te o cabelo da frente com a ajuda da minha mão direita que só existe para isso
e vou para te beijar mas não o faço
hesito porque os meus olhos pediram-me que os deixasse olhar para ti mais uma vez
e eu deixo para eles não chorarem muito


JOÃO NEGREIROS, in A VERDADE DÓI E PODE ESTAR ERRADA (Camões e Companhia, 2010), Vencedor do Prémio Poesia Nuno Júdice

AUSENTEI-TE


as minhas mãos adormeceram o gesto de afago iminente
e contemplaram a tua partida
em oclusão da vontade que gritava amarras
sem que fossem âncora do teu estar

olhei-te sem coragem de apelo
sem conseguir que me voltes
incapaz de dar os passos do teu retorno

ausentei-te
e deitei-me no vazio que criei

JOÃO CARLOS ESTEVES, INVENTEI-TE AS MANHÃS (Chiado Ed., 2013)

domingo, 24 de novembro de 2013

Não Precisas de me Procurar


Aqui não precisas de me procurar
para me encontrares, que eu estou,
omnipresente, em todo o chão que pisas,
duplicando a tua sombra,
deixando um rasto de brisa,
um aroma de urze na marca dos teus passos.
Com esta roupa visitaremos os pátios,
os átrios de dança e do encantamento.
As nuvens aninhadas atrás da lua,
na olorosa paz da madrugada,
são o mapa das errâncias da fala
enquanto o coração, indefeso, capitula.

José Jorge Letria, in "Capela dos Ócios"

terça-feira, 19 de novembro de 2013

AMO-TE COM TODAS AS LETRAS


Amo-te com todas as letras
Mas não sei como as usar
Oiço-as em surdina
Trémulas, receosas
Em vez de as gritar!

JOSÉ GABRIEL DUARTE in NO OUTRO LADO DE MIM (Chiado Ed., 2012)

MAIS UMA NOITE, AMOR


Mais uma noite, amor. Ao recordar-te
retomo os fins do mundo, a cinza, os dias
manchados de outras lágrimas. Sabias
como eu a cor das sombras, essa arte

que nos engana agora e se reparte
por esquinas e cafés. Já não me guias
os muitos passos vãos, as fantasias
da minha falsa vida. Vou deixar-te

fugindo-me. Na chuva, sem ninguém,
apenas alguns vultos, o que vem
«e dói não sei porquê» -este deserto

onde te vejo, imagem outra vez,
até de madrugada. O que me fez
sentir o muito longe aqui tão perto?

FERNANDO PINTO DO AMARAL, in A ESCADA DE JACOB (Assírio & Alvim, 1993 )

POEMA QUADRAGÉSIMO SEXTO


Peço-te. Não pises as violetas
que trago no olhar.

Falemos dos brilhos estilhaçados
desta casa súbita que é o teu corpo
devoluto. A noite devora as palavras possíveis,
o sofrimento que pulsa em tua boca
e torna a minha boca vulnerável.
O amor é um nada que a liberta, uma luz
que desce dos ombros para o ventre
e fecunda as sementes da tua virgindade,
essa que faz agora parte de uma dor quase
amigável, na lividez do tempo,
e que entregas em minhas mãos, beijando-as,
tornando-te parte dos meus versos, da
minha forma mais profunda de gostar
de ti.

Amar-te, é escrever-te.
Amar-te é deixar que me toques até ser teu,
até que te deites no meu corpo e adormeças
inteira dentro de mim.

Peço-te. Não pises as violetas
que trago no olhar. Cheiram a ti. São para ti.
Um "bouquet" de palavras que floriram
neste tempo de amor.

JOAQUIM PESSOA, in GUARDAR O FOGO (Ed. Edições Esgotadas, 2013)

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Há cidades acesas na distância


Há cidades acesas na distância,
Magnéticas e fundas como luas,
Descampados em flor e negras ruas
Cheias de exaltação e ressonância.

Há cidades cujo lume
Destrói a insegurança dos meus passos,
E o anjo do real abre os seus braços
Em nardos que me matam de perfume.

E eu tenho de partir para saber
Quem sou, para saber qual é o nome
Do profundo existir que me consome
Neste país de névoa e de não ser.~

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in POESIA (1944), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

domingo, 17 de novembro de 2013

Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos


Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos
e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo
doeu-me onde antes os teus dedos foram aves
de verão e a tua boca deixou um rasto de canções.

No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha
camisola; e eu despi-a para ti, a dar-te um coração
que era o resto da vida - como um peixe respira
na rede mais exausta. Nem mesmo à despedida

foram os gestos contundentes: tudo o que vem de ti
é um poema. Contudo, ao acordar, a solidão sulcara
um vale nos cobertores e o meu corpo era de novo
um trilho abandonado na paisagem. Sentei-me na cama

e repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos,
mas as sílabas caíam no fim das palavras, a dor esgota
as forças, são frios os batentes nas portas da manhã.

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in O CANTO DO VENTO NOS CIPRESTES (2001), in POESIA REUNIDA Quetzal, 2012)

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Estou Mais Perto de Ti porque Te Amo


Estou mais perto de ti porque te amo.
Os meus beijos nascem já na tua boca.
Não poderei escrever teu nome com palavras.
Tu estás em toda a parte e enlouqueces-me.

Canto os teus olhos mas não sei do teu rosto.
Quero a tua boca aberta em minha boca.
E amo-te como se nunca te tivesse amado
porque tu estás em mim mas ausente de mim.

Nesta noite sei apenas dos teus gestos
e procuro o teu corpo para além dos meus dedos.
Trago as mãos distantes do teu peito.

Sim, tu estás em toda a parte. Em toda a parte.
Tão por dentro de mim. Tão ausente de mim.
E eu estou perto de ti porque te amo.

Joaquim Pessoa, in 'Os Olhos de Isa'

Eu não sei se estiveste ausente


Eu não sei se estiveste ausente.
Eu deito-me contigo, e levanto-me contigo.
Nos meus sonhos tu estás junto a mim.
Se estremecem os brincos das minhas orelhas
eu sei que és tu que te moves no meu coração.

(México, Nahuas)

domingo, 10 de novembro de 2013

NO SILÊNCIO DE UMA LÁGRIMA


escrevo-te...
... nem sei porque te escrevo

escrevo-te sem guião,
meras palavras que entenderás ou que talvez
flutuem perdidas numa folha de papel amarfanhada

escrevo-te sem intenção que não seja
a de escrever
o que talvez nunca crescesse num jardim abandonado

escrevo-te a flor, o amanhecer, a tristeza e a dor,
o encontrar e o perder
escrevo-te a vida, a tua e a minha, escrevo-te os dias
e as noites sem fim

escrevo-te... nem sei porque te escrevo...

no silêncio de uma lágrima escrevo-te
as rugas da minha alma
e as sombras que me vestem o tempo

JOÃO CARLOS ESTEVES, in INVENTEI-TE AS MANHÃS (Chiado Ed., 2013)

terça-feira, 5 de novembro de 2013

NESTE OUTONO


Neste outono, as pedras agasalham-se no cobertor
do musgo; e o barro bebe a água; e o vento viaja rente
aos muros. Mas eu, sem ti, deito-me gelada sobre a cama
e digo palavras que queimam a boca por dentro ― amor,

saudade, o teu nome e os nomes das coisas que tocaste
(e sobre as quais deixo crescer o pó, para que os dias
não se decalquem sempre de outros dias). Fecho os olhos

depois sobre a almofada e vejo o rosto branco da casa
desenhar-se à medida da tua ausência: as janelas abrem-se
para a solidão dos becos e há um farrapo de luz sobre a porta
a que ninguém virá bater. Pergunto-me onde anda a tua
sombra quando aqui não estás. E tenho medo. São estes

os solavancos de uma vida pequena ― bordar uma toalha
para logo a manchar de vinho, sentir a ferida na distância
do punhal, viver à espera de uma dor que há-de chegar.

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in A CASA E O CHEIRO DOS LIVROS (Quetzal, 1996), in POESIA REUNIDA (Quetzal, 2012)

DE MÃOS ABERTAS


Se eu pudesse,
Tocava o teu rosto em silêncio
E falava-te do mar,
Deixava tombar os meus cabelos
Sobre o teu ombro
Como uma bênção
E fechava os olhos
Consciente de ser em ti
Como um salgueiro.

ANA BRILHA, in A APOLOGIA DO SILÊNCIO (ed. da Autora, 2012)

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

QUANDO VIER A PRIMAVERA


Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

ALBERTO CAEIRO, in POEMAS INCONJUNTOS. Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa.[ (Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença, 1994]

domingo, 3 de novembro de 2013

Estou diariamente à tua espera


Estou diariamente à tua espera
Como quem espera um astro pela noite.
Defino-te em segredos.
Revejo-te na memória.
Desenho a tua fronte nas estrelas.
Invejo-te.
Construo a tua boca sem palavras.
Construo este silêncio em que me prendo.

JOÃO RUI DE SOUSA, in CIRCULAÇÃO (Lisboa, Liv. Moraes Ed., 1960), in OBRA POÉTICA [(1960-2000), Dom Quixote, 2002]

APETECE


Apetece dizer e não sei dizê-lo
Apetece querer e não sei almejar sequer
Apetece abraçar e não sinto o outro lado entrega
Apetece gritar, mas a rouquidão trai o sentir
Apetece sair....partir...ir onde nunca fui
Apetece correr a memória esquecida e escrever
Apetece tanto....e tanto é um grama de matéria pó
Apetece sorrir no meio das lágrimas secas
Apetece e já nada apetece no esvair do viver
Apetece dizer e não sei dizê-lo!

JOSÉ LUÍS OUTONO, in MAR DE SENTIDOS, prefaciado por Joaquim Pessoa (Ed. Vieira da Silva, 2012)

sábado, 2 de novembro de 2013

PALAVRAS MINHAS


Palavras que disseste e já não dizes,
palavras como um sol que me queimava,
olhos loucos de um vento que soprava
em olhos que eram meus, e mais felizes.

Palavras que disseste e que diziam
segredos que eram lentas madrugadas,
promessas imperfeitas, murmuradas
enquanto os nossos beijos permitiam.

Palavras que dizias, sem sentido,
sem as quereres, mas só porque eram elas
que traziam a calma das estrelas
à noite que assomava ao meu ouvido...

Palavras que não dizes, nem são tuas,
que morreram, que em ti já não existem
- que são minhas, só minhas, pois persistem
na memória que arrasto pelas ruas.

PEDRO TAMEN, in TÁBUA DAS MATÉRIAS - POESIA 1956-1991 (Tertúlia, 1991)

Dá-me a tua mão


Dá-me a tua mão.

Deixa que a minha solidão
prolongue mais a tua
— para aqui os dois de mãos dadas
nas noites estreladas,
a ver os fantasmas a dançar na lua.

Dá-me a tua mão, companheira,
até o Abismo da Ternura Derradeira.

JOSÉ GOMES FERREIRA, in POETA MILITANTE I (Ed. Dom Quixote, 1990)

domingo, 27 de outubro de 2013

A INFLAÇÂO


Cada vez nos temos mais apenas
um ao outro.

JOAQUIM PESSOA, in OS DIAS DA SERPENTE (Moraes Ed., 1981), in 125 POEMAS - ANTOLOGIA POÉTICA (Litexa, 1982)

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Como é que se Esquece Alguém que se Ama?


Como é que se esquece alguém que se ama? Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente como é que se faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa - como é que se faz quando a pessoa de quem se precisa já lá não está? 
As pessoas têm de morrer; os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar Sim, mas como se faz? Como se esquece? Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e acções de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. Estúpidas! É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração. Ninguém aguenta estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar entristecendo-se. Não se pode esquecer alguem antes de terminar de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma. A saudade é uma dor que pode passar depois de devidamente doída, devidamente honrada. É uma dor que é preciso aceitar, primeiro, aceitar. 
É preciso aceitar esta mágoa esta moinha, que nos despedaça o coração e que nos mói mesmo e que nos dá cabo do juízo. É preciso aceitar o amor e a morte, a separação e a tristeza, a falta de lógica, a falta de justiça, a falta de solução. Quantos problemas do mundo seriam menos pesados se tivessem apenas o peso que têm em si , isto é, se os livrássemos da carga que lhes damos, aceitando que não têm solução. 
Não adianta fugir com o rabo à seringa. Muitas vezes nem há seringa. Nem injecção. Nem remédio. Nem conhecimento certo da doença de que se padece. Muitas vezes só existe a agulha. 
Dizem-nos, para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado. 
O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar. 

Miguel Esteves Cardoso, in 'Último Volume'

domingo, 20 de outubro de 2013

da varanda, poema XII


ficou tanto por dizer
e já estão mortas as palavras.
secaram os poemas
mas não as lágrimas.
quero palavras novas
que não fiquem presas na garganta.
irei, um dia, ter contigo,
mesmo que deixe cá a vida.

PAULO EDUARDO CAMPOS, in A CASA DOS ARCHOTES (Lua de Marfim, 2011)

terça-feira, 15 de outubro de 2013

À breve, azul cantilena


À breve, azul cantilena
dos teus olhos quando anoitecem.

Eugénio de Andrade

Dialética


É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz
Mas acontece que eu sou triste...

Vinícius de Moraes

terça-feira, 8 de outubro de 2013

14


Eram quartos contíguos num quarto
andar mas um deles ficava
vazio pois dormíamos
no sôfrego lugar onde uma única vida
bastava aos corpos, dia a
dia cumprindo a futura
fusão do fogo sem o pressentirem

GASTÃO CRUZ, in FOGO (Assírio e Alvim, 2013)

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

PRÍNCIPE


Príncipe:
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu batia à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso

tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito tudo era apenas
lábios pálpebras intumescências
cobrindo o corpo de flutuantes volteios
de palpitações trémulas adejando pelo rosto.
Beijava os teus olhos por dentro
beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão sobre o meu pensamento
corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te.

São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me

ANA HATHERLY, in POESIA 1958-1978 (Moraes Ed., 1980)

domingo, 29 de setembro de 2013

MAIS UMA NOITE, AMOR


Mais uma noite, amor. Ao recordar-te
retomo os fins do mundo, a cinza, os dias
manchados de outras lágrimas. Sabias
como eu a cor das sombras, essa arte

que nos engana agora e se reparte
por esquinas e cafés. Já não me guias
os muitos passos vãos, as fantasias
da minha falsa vida. Vou deixar-te

fugindo-me. Na chuva, sem ninguém,
apenas alguns vultos, o que vem
«e dói não sei porquê» -este deserto

onde te vejo, imagem outra vez,
até de madrugada. O que me fez
sentir o muito longe aqui tão perto?

FERNANDO PINTO DO AMARAL, in A ESCADA DE JACOB (Assírio & Alvim, 1993 )

Devias estar aqui rente aos meus lábios


Devias estar aqui rente aos meus lábios
para dividir contigo esta amargura
dos meus dias partidos um a um

- Eu vi a terra limpa no teu rosto,
Só no teu rosto e nunca em mais nenhum

Eugénio de Andrade

O teu rosto


É o teu rosto ainda que eu procuro
Através do terror e da distância
Para a reconstrução de um mundo puro.

Sophia de Mello Breyner Andresen

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

NO VELUDO DOS TEUS OLHOS...


Sonhadora
De pensamentos ao largo
de olhos postos no vento
com o areal nos dedos
e o coração ao leme
deste momento

Sei-te em mim
No turbilhão
Que me aquece o sangue
Me acalma a mente
Me deixa exangue

E abandonada em mim
entrego-me-Te
Às palavras
Onde em cofre guardadas
Serão alma iluminada
Sentimentos

Só te peço...
Guarda-me-te
Deita fora a chave
Esquece os códigos
Que eu saberei lê-los
No veludo dos teus olhos...

ANA FONSECA, in NO LEITO DO MEU PENSAMENTO (Universus, 2011)

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

A MORTE DO AMOR


Se eu pudesse voltar atrás
Não te amava.
É tão mais fácil
Manter o coração quieto no peito
Como se todos os dias
E todas as horas fossem iguais.

A inquietação de me faltares
Deixa os meus olhos tristes
Esperando que aceites
A mão que te estendo.

Mas tu não estás.
Eu parti com a última onda
Sem saber se voltarei um dia,
E o caminho que os nossos pés
Juntos percorreram
Choram a saudade
De ter morrido o amor
Quando dissemos adeus.

ANA BRILHA, in A APOLOGIA DO SILÊNCIO (Ed. autor, 2012)

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Pernoitas em Mim

 
pernoitas em mim
e se por acaso te toco a memória... amas ...

ou finges morrer

pressinto o aroma luminoso dos fogos
escuto o rumor da terra molhada
a fala queimada das estrelas

é noite ainda
o corpo ausente instala-se vagarosamente

Al Berto
 

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

POEMA DA RECUSA


Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus dedos
se ter formado o afago
sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor
nem o interior da erva.

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva de ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda

MARIA TERESA HORTA, in VOZES E OLHARES NO FEMININO (Ed. Afrontamento, 2001)

domingo, 15 de setembro de 2013

[COMO EU GOSTO DE TI]


Como eu gosto de ti? Deixa-me contar os modos - e não repito
Gosto de ti até ao fundo, até ao fôlego, até à altura
Que a minha alma alcança, quando me sinto na lonjura
Até aos confins do ser, e do bem infinito.

Gosto de ti como o diário e normal requesito
À luz do sol e a meio da noite escura
Gosto de ti livremente, como pelo bem se luta com bravura
Gosto de ti puramente, com a pureza de um gesto contrito

Gosto de ti com a paixão que senti
Nas mágoas passadas, na fé da infância
Gosto de ti com o amor que perder temi

Quando perdi os meus santos - Gosto de ti de tal sorte
Sorrisos, lágrimas, de toda a vida! - e a Deus já pedi
Que eu goste de ti ainda mais depois da morte.

ELIZABETH BARRETT BROWNING, in SONETS FROM THE PORTUGUESE - A CELEBRATION OF LOVE (1847; St Martin's Press, 1986), tradução de CARLOS CAMPOS

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

DESEJO


Queria ser essa noite que te envolve; e
cobrir-te com o peso obscuro dos braços
que não se vêem. Um murmúrio
desceria de uma vegetação de palavras,
enrolando-se nos teus cabelos como
secretas folhas de hera num horizonte
de pálpebras. Deixarias que te olhasse
o fundo dos olhos, onde brilha
a imagem do amor. E sinto os teus dedos
soltarem-se da sombra, pedindo
o silêncio que antecede a madrugada.

NUNO JÚDICE, in O ESTADO DOS CAMPOS (P. D. Quixote, 2003)

terça-feira, 10 de setembro de 2013

O REGRESSO É INEVITÁVEL


o regresso é inevitável, sobretudo
aquele mesmo silêncio de que partíramos
um dia em busca do sol

fixámo-nos na sarça incendida
na coluna ardente do coração
e extraímos do último pensamento
o sílex cortante das palavras:
porque
na vida valeu-nos apenas
o termos querido amar alguém

JOÃO RICARDO LOPES, in A PEDRA QUE CHORA COMO PALAVRAS (Labirinto, 2001)

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

QUANDO PELA NOITE CHEGAS DISSOLVEM-SE AS TREVAS


Quando pela noite chegas dissolvem-se as trevas
e eu partir não quero, porque esta é a noite
que ilumina o dia, canto do silêncio, eco subtil
no discurso do mundo. Quando pela noite chegas
é meu o teu amor, e a morte tarde doce como mel.

ANA MARQUES GASTÃO, in 366 POEMAS QUE FALAM DE AMOR, org. de VASCO GRAÇA MOURA, org. de Vasco Graça Moura (Quetzal, 2003)

domingo, 8 de setembro de 2013

PODIA


Podia dizer-te que não me importo
Podia fingir que fugi
Ou que estou morto.
Podia adiar para outro dia
Invocar uma qualquer lei
Dizer-te que não sei
Ou fiquei sem bateria.

Com a verdade mais pura
A única verdade
A única que dura
Faria a minha despedida
A promessa de mil abraços
E uma palavra sofrida

Podia dizer-te que volto
E seria breve
Como um poeta escreve
Livre e solto.

(E tu, minha vida, acreditas
Nas palavras que não digo?
Será o silêncio castigo?
Será em silêncio que gritas?)

Podia dizer-te que são pequenas
As saudades do teu sorrir
Mas seriam palavras apenas
E seria mentir.


CARLOS CAMPOS, in RIO DE DOZE ÁGUAS (Coisas de Ler, Ed., 2012)

SEGREDO


Nem o Tempo tem tempo
para sondar as trevas

deste rio correndo
entre a pele e a pele

Nem o Tempo tem tempo
nem as trevas dão tréguas

Não descubro o segredo
que o teu corpo segrega

DAVID MOURÃO-FERREIRA, in NO VEIO DO CRISTAL (1988), in OBRA POÉTICA 1948-1988 (Presença, 4ª ed., 2001)

SE TERMINAR ESTE POEMA, PARTIRÁS



Se terminar este poema, partirás. Depois da
mordedura vã do meu silêncio e das pedras
que te atirei ao coração, a poesia é a última
coincidência que nos une. Enquanto escrevo

este poema, a mesma neblina que impede a
memória límpida dos sonhos e confunde os
navios ao retalharem um mar desconhecido

está dentro dos meus olhos – porque é difícil
olhar para ti neste preciso instante sabendo que
não estarias aqui se eu não escrevesse. E eu, que

continuo a amar-te em surdina com essa inércia
sóbria das montanhas, ofereço-te palavras, e não
beijos, porque o poema é o único refúgio onde
podemos repetir o lume dos antigos encontros.

Mas agora pedes-me que pare, que fique por aqui,
que apenas escreva até ao fim mais esta página
(que, como as outras, será somente tua – esse

beijo que já não desejas dos meus lábios). E eu, que
aprendi tudo sobre as despedidas porque a saudade
nos faz adultos para sempre, sei que te perderei

em qualquer caso: se terminar o poema, partirás;
e, no entanto, se o interromper, desvanecer-se-á
a última coincidência que nos une.

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in O CANTO DOS VENTOS NOS CIPRESTES (Gótica, 2002), in POESIA REUNIDA (Quetzal, 2012)

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

PENUMBRA


Na penumbra dos ombros é que tudo começa
quando subitamente só a noite nos vê
E nos abre uma porta nos aponta uma seta

para sermos de novo quem deixámos de ser

DAVID MOURÃO-FERREIRA

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Há dias em que em ti talvez não pense


Há dias em que em ti talvez não pense
a morte mata um pouco a memória dos vivos
é todavia claro e fotográfico o teu rosto
caído não na terra mas no fogo
e se houver dia em que não pense em ti
estarei contigo dentro do vazio

GASTÃO CRUZ, in FOGO (Assírio & alvim, 2013)

terça-feira, 3 de setembro de 2013

AS PALAVRAS INTERDITAS


Os navios existem, e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
partem no vento, regressam nos rios.

Na areia branca, onde o tempo começa,
uma criança passa de costas para o mar.
Anoitece. Não há dúvida, anoitece.
É preciso partir, é preciso ficar.

Os hospitais cobrem-se de cinza.
Ondas de sombra quebram nas esquinas.
Amo-te... E entram pela janela
as primeiras luzes das colinas.

As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem reconhecia já
teu nome nas suas curvas claras.

Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos nocturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.

E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.

EUGÉNIO DE ANDRADE, in AS PALAVRAS INTERDITAS (1951), in POESIA (Modo de Ler, 2011)

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Se as minhas mãos pudessem desfolhar


Eu pronuncio teu nome
nas noites escuras,
quando vêm os astros
beber na lua
e dormem nas ramagens
das frondes ocultas.
E eu me sinto oco
de paixão e de música.
Louco relógio que canta
mortas horas antigas.

Eu pronuncio teu nome,
nesta noite escura,
e teu nome me soa
mais distante que nunca.
Mais distante que todas as estrelas
e mais dolente que a mansa chuva.

Amar-te-ei como então
alguma vez? Que culpa
tem meu coração?
Se a névoa se esfuma,
que outra paixão me espera?
Será tranqüila e pura?
Se meus dedos pudessem
desfolhar a lua!!

Federico García Lorca

domingo, 1 de setembro de 2013

O SILÊNCIO E A PALAVRA


Tu és o silêncio,
Eu a palavra,
Mãos que se trocam
De encontro ao rosto
Porque tudo é breve.

Não sei o nome da tua tribo
Mas deixei-te entrar
No meu abraço,
Contra todas as leis,
Mesmo a do bom senso.

Se amanhã fores,
Se tiveres de ir,
Não demores a partida.
Pega na minha mão estendida
E leva-me
Para onde eu possa esquecer o meu nome.

ANA BRILHA, in A APOLOGIA DO SILÊNCIO (ed. da Autora, 2012)

Eu cantarei um dia da tristeza


Eu cantarei um dia da tristeza
por uns termos tão ternos e saudosos
que deixem aos alegres invejosos
de chorarem o mal que lhes não pesa.

Abrandarei das penhas a dureza
exalando suspiros tão queixosos
que jamais os rochedos cavernosos
os repitam da mesma natureza.

Serras, penhascos, troncos, arvoredos
ave, ponte, montanha, flor, corrente
comigo hão-de chorar de amor enredos.

Mas ah! que adoro uma alma que não sente!
Guarda, Amor, os teus pérfidos segredos
que eu derramo os meus ais inutilmente.

LEONOR DE ALMEIDA PORTUGAL LORENA E LENCASTRE (MARQUESA DE ALORNA), in POESIAS, org. de HERNANI CIDADE (Sá da Costa, 1960)

UM POUCO DE SILÊNCIO


pedíamos um pouco de silêncio.
os corpos sem outro uso abrigavam-se
como as nossas mãos em torno do sol

lembro-me tão bem dessas manhãs:
sentíamos acontecer no orvalho
a invenção redonda dos dias

era apenas um pouco de silêncio.
o sol dançava entre os dedos,
as rosas perturbavam o tempo

JOÃO RICARDO LOPES, in DIAS DESIGUAIS (Labirinto, 2005)

sábado, 31 de agosto de 2013

Há Palavras que Nos Beijam


Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

Alexandre O'Neill, in 'No Reino da Dinamarca'

domingo, 25 de agosto de 2013

Para não Deixar de Amar-te Nunca


Saberás que não te amo e que te amo
pois que de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa do silêncio,
o fogo tem a sua metade de frio.

Amo-te para começar a amar-te,
para recomeçar o infinito
e para não deixar de amar-te nunca:
por isso não te amo ainda.

Amo-te e não te amo como se tivesse
nas minhas mãos a chave da felicidade
e um incerto destino infeliz.

O meu amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quando não te amo
e por isso te amo quando te amo.

Pablo Neruda, in "Cem Sonetos de Amor"

INCONFESSÁVEL


... e pelas minhas mãos desfilam todos os desejos ardentes
que o teu olhar silencioso desvendou
num querer inconfessável...

JOÃO CARLOS ESTEVES, in INVENTEI-TE AS MANHÃS (Chiado Editora, 2013, com lançamento a 5 Out.)

sábado, 24 de agosto de 2013

QUANDO PELA NOITE CHEGAS DISSOLVEM-SE AS TREVAS


Quando pela noite chegas dissolvem-se as trevas
e eu partir não quero, porque esta é a noite
que ilumina o dia, canto do silêncio, eco subtil
no discurso do mundo. Quando pela noite chegas
é meu o teu amor, e a morte tarde doce como mel.´

ANA MARQUES GASTÃO, in 366 POEMAS QUE FALAM DE AMOR, org. de VASCO GRAÇA MOURA, org. de Vasco Graça Moura (Quetzal, 2003)

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

6


Este amor está preso aos pés da terra,
o seu caule é de ferro,
cresce na minha boca, estremece e resiste
nas frágeis construções
da nossa antiga, privada, fiel
arquitectura.

ARMANDO SILVA CARVALHO, in DE AMORE (Assírio & Alvim, 2012)

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

J’ai fermé les yeux


J’ai fermé les yeux pour ne plus rien voir
J’ai fermé les yeux pour pleurer
De ne plus te voir.

Où sont tes mains et les mains des caresses
Où sont tes yeux les quatre volontés du jour
Toi tout à perdre tu n’es plus là
Pour éblouir la mémoire des nuits.

Tout à perdre je me vois vivre.

Paul ÉLUARD

domingo, 18 de agosto de 2013

NENHUMA MORTE APAGARÁ OS BEIJOS


Nenhuma morte apagará os beijos
e por dentro das casas onde nos amámos ou pelas ruas
[clandestinas da grande cidade livre
estarão para sempre vivos os sinais de um grande amor,
esses densos sinais do amor e da morte
com que se vive a vida.

Aí estarão de novo as nossas mãos.
E nenhuma dor será possível onde nos beijámos.
Eternamente apaixonados, meu amor. Eternamente livres.
Prolongaremos em todos os dedos os nossos gestos e,
profundamente, no peito dos amantes, a nossa alma líquida
[e atormentada

desvenderá em cada minuto o seu segredo
para que este amor se prolongue e noutras bocas
ardam violentos de paixão os nossos beijos
e os corpos se abracem mais e se confundam
mutuamente violando-se, violentando a noite
para que outro dia, afinal, seja possível.

JOAQUIM PESSOA, in OS OLHOS DE ISA, (ed Esp. Litexa, 1982)

sábado, 17 de agosto de 2013

SOMBRA DO TEU OLHAR


Agora, que retirei uma sombra do teu olhar
a terra parece‐me absurda.
A luz do horizonte expandiu em segredo
uma paz aniquilante…

Não sei como viver um sol
que me sorri rosa!
Amanhã, amanhã talvez consiga
suportar esta sede sombra
nas cores coloridas.

Sigo de pé as ondas que me chamam
pelo mar...

CLÁUDIO CORDEIRO, in UM TUDO NADA ÁGUA (Lua de Marfim, 2012)

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

EXPLICATIO


O gesto mais simples,
capaz de ordenar tudo,
foi o que não fizemos.

JOSE MÁRIO SILVA, in LUZ INDECISA (Oceanos/ Leya, 2011)

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

NOS TEUS BRAÇOS


Nos teus braços,
Morreria
Se ontem fosse amanhã.
Morreria
Por gostar
Da maneira como gostas,
Se caísse em teus braços.
Se os meus braços vacilassem,
Evitaria o teu olhar.
E morreria outra vez
Para poder ter
O motivo de te encontrar.
Nos teus braços,
Morreria.
Novamente…

PAULO EDUARDO CAMPOS, in NA SERENIDADE DOS RIOS QUE ENLOUQUECEM (Amores Perfeitos, 2005)

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Muitas vezes te esperei, perdi a conta


Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que importa
que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
- tanto pó sobre os móveis tua ausência.

Se não és tu, que me importa?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.

FERNANDO ASSIS PACHECO, in A MUSA IRREGULAR (Ed. Asa, Porto, 1997)

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Quiero hacer el amor con tacto

Quiero hacer el amor con tacto:
Quiero que nos toquemos con la mirada
Quiero que nos toquemos con los destellos del corazón
Que nos toquemos con el deseo
Que tu deseo toque el mío
Que mi deseo toque el tuyo
Que nos toquemos con la piel
Que nos toquemos con el pensamiento
Que nuestras desinhibiciones toquen nuestras inhibiciones
Que mi ser toque todo el tuyo
Que tu ser toque todo el mío
Así quiero que hagamos el amor:
con tacto...

Pablo Neruda

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

ACORDAR



Hoje acordei com um sabor a mar dentro da boca.
Eram os teus beijos salgados que me revisitavam em ondas que se desfaziam na praia dos meus sentidos...

ANTÓNIO BARROSO CRUZ [esboços do pensamento]

terça-feira, 6 de agosto de 2013

DE ONDE ME CHEGAM ESTAS PALAVRAS?



De onde me chegam estas palavras?

Nunca houve palavras para gritar a tua ausência

Apenas o coração
Pulsando a solidão antes de ti
Quando o teu rosto dóia no meu rosto
E eu descobri as minhas mãos sem as tuas
E os teus olhos não eram mais
que um lugar escondido onde a primavera
refaz o seu vestido de corolas.

E não havia um nome para a tua ausência.

Mas tu vieste.

Do coração da noite?
Dos braços da manhã?
Dos bosques do Outono?

Tu vieste.
E acordas todas as horas.
Preenches todos os minutos.
acendes todas as fogueiras
escreves todas as palavras.

Um canto de alegria desprende-se dos meus dedos
quando toco o teu corpo e habito em ti
e a noite não existe
porque as nossas bocas acendem na madrugada
uma aurora de beijos.

Oh, meu amor,
doem-me os braços de te abraçar,
trago as mãos acesas,
a boca desfeita
e a solidão acorda em mim um grito de silêncio quando
o medo de perder-te é um corcel que pisa os meus cabelos
e se perde depois numa estrada deserta
por onde caminhas nua
como se estivesses triste.

JOAQUIM PESSOA, in OS OLHOS DE ISA (Litexa Editora, 1983)

[NÃO É SONHO AQUILO QUE VIVO]


Não é sonho aquilo que vivo
Quando morro nas horas do sono.
São pedaços eternos de tempo
Que se despedem de mim
E da nudez do meu corpo.
Sofre-me mais uma vez,
O menos possível
E eu corro pelo mar dentro,
Neste quarto escuro,
Onde a noite não me prende
Nem evitou que partisses.
Vem embarcar no silêncio,
De mãos vazias,
Onde tantas vezes
Nos encontrámos.
Percorre comigo
A sombra deste chão
Que já foi nosso
Quando o meu corpo
Era certeza e vento
E o teu, argila e fogo

PAULO EDUARDO CAMPOS, in NA SERENIDADE DOS RIOS QUE ENLOUQUECEM (Amores Perfeitos, 2005)

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Como um fruto que se mostra


Como um fruto que se mostra
Aberto pelo meio
A frescura do centro
Assim é a manhã
Dentro da qual eu entro

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in LIVRO SEXTO (Moraes Ed, 1962) e OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

domingo, 4 de agosto de 2013

TREVAS


O que foi antigamente manhã limpa
Sereno amor das coisas e da vida
É hoje busca desesperada busca
De um corpo cuja
face me é oculta.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in O CRISTO CIGANO (Minotauro, 1961) in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

OLHOS POSTOS NA TERRA


Olhos postos na terra, tu virás
no ritmo da própria primavera,
e como as flores e os animais
abrirás nas mãos de quem te espera.

EUGÉNIO DE ANDRADE, in AS MÃOS E OS FRUTOS (Fund. Eugénio de Andrade, Porto, 2000)

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Ternura


Desvio dos teus ombros o lençol
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do Sol,
quando depois do Sol não vem mais nada...

Olho a roupa no chão: que tempestade!
há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
em que uma tempestade sobreveio...

Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo...

Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!

David Mourão-Ferreira

Habitas-me


Habitas-me
como a uma casa
de um só quarto
no alto de uma falésia;
Como a ventania
irrompe na floresta, cavando clareiras
ou devagar vai esculpindo luas
nas areias.

LÍLIA TAVARES, in RIO DE DOZE ÁGUAS (Coisas de Ler, 2012)

terça-feira, 30 de julho de 2013

Se eu pudesse dar-te aquilo que não tenho


Se eu pudesse dar-te aquilo que não tenho
e que fora de mim jamais se encontra
Se eu pudesse dar-te aquilo com que sonhas
e o que só por mim poderá ter sonhado

Se eu pudesse dar-te o sopro que me foge
e que fora de mim jamais se encontra
Se eu pudesse dar-te aquilo que descubro
e descobrir-te o que de mim se esconde

Então serias aquele que existe
e o que só por mim poderá ter sonhado.

ANA HATHERLY, in A IDADE DA ESCRITA (Ed. Tema, 1998)

domingo, 28 de julho de 2013

I


Preciso escrever-te, ou escrever-me, falar-te ou dizer-te através de mim e tudo isso num tempo intemporal, em que escrevo para a frente apenas porque algo nos faz crer que a vida, ou melhor, que um dia atrás do outro é ir para a frente, sabe-se lá... mas o meu mergulho é para trás, no meu tempo que foi de descoberta, um tempo que se desdobra a partir de outro e de outro... porque é lá atrás que te vou encontrar, é apenas tão-somente lá atrás que te posso resgatar, porque a ideia do amanhã contigo foi-se-me (ou quase); foi-se-me no dia em que abriste os braços para já não me abraçar. E agora, vou mergulhar, mergulhar num mar de maré cheia, onde toco o que lá vive, um mar que está cá dentro, dentro de mim, onde te vejo e onde navegam todos os afectos que me unem a ti – é neles que vou buscar a forma que dou a estas palavras, com que quero falar-te, dizer-te, baixinho.

MARIA JOÃO SARAIVA, in A DOR QUE ME DEIXASTE (Coisas de Ler, Ed., 2ª ed, 2011)

sábado, 27 de julho de 2013

POST SCRIPTUM


Afasto de ti com
raiva surda

o corpo
as mãos
o pensamento

e apago secreta
uma a uma
as velas acesas do teu vento

liberta ponho o corpo
em seu lugar
visto a cidade
penteio um rio sedento

penso ganhar
e fujo
e não entendo

penso dormir
mas não consigo
o tempo

E cede-se o vazio
sobre o meu ventre

e segue-se a saudade
em seu sustento

E digo este meu vício
dos teus olhos
de um verde tão lento
muito lento

Se penso que te deixo
já te quero

Se penso que recuso
já te anseio

Se penso que te odeio
já te espero

e torno a oferecer-te
o que receio

Se penso que me calo
já te grito

Se penso que me escondo
já me ofereço

Se penso que não sinto
é porque minto

Se pensas que me olhas
já estremeço.

MARIA TERESA HORTA, in MINHA SENHORA DE MIM ( D. Quixote, 1971), in POESIA REUNIDA (D. Quixote, 2009)

GOSTO


Gosto de passear na tua sombra,
poder te ver, sem tu me veres,
de estar contigo, sem tu saberes,

Gosto de me esconder na tua ausência,
de ser teu sonho, sem me sonhares,
viveres comigo, sem o julgares,

Gosto de me enlear na tua teia,
de ser teu cúmplice, sem que me prendas,
ser teu escravo, sem que me vendas,

Gosto que gostes de ser viagem,
e ao me encontrares,
eu ser paragem…

JOSÉ GABRIEL DUARTE, in RIO DE DOZE ÁGUAS, 12 POETAS, prefaciado por Joaquim Pessoa, (Coisas de Ler Ed., 2012)

quinta-feira, 25 de julho de 2013

SEM TI


E de súbito desaba o silêncio.
É um silêncio sem ti,
sem álamos, sem luas.
Só nas minhas mãos
ouço a música das tuas.

EUGÉNIO DE ANDRADE, in CORAÇÃO DO DIA (1958), in POESIA DE EUGÉNIO DE ANDRADE (Modo de Ler, 2011)

quarta-feira, 24 de julho de 2013

O SONO RETIROU-SE DO MEU CORPO E AS CIGARRAS


O sono retirou-se do meu corpo e as cigarras
atormentam as minhas noites. Depois de teres
partido, os lençóis da cama são como limos frios
que se agarram à pele. Porém, se me levanto,
não faço mais do que arrastar a solidão pela casa;

talvez procure ainda um gesto teu nos braços
do silêncio, como um pombo cego a debicar
as sombras na única praça deserta da cidade —

o amor nunca aprendeu a ler nas linhas da mão.

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in O CANTO DO VENTO DOS CIPRESTES (Gótica, 2001)

segunda-feira, 22 de julho de 2013

DA ALMA SÓ SEI O QUE SABE O CORPO


Da alma só sei o que sabe o corpo:
onde a esperança e a graça
aspiram ao ardor
da chama é a morada do homem.

Vê como ardem as maçãs
na frágil luz de inverno
uma casa devia ser
assim: brilhar ao crepúsculo
sem usura nem vileza
com as maçãs por companhia.
Assim: limpa, madura.

EUGÉNIO DE ANDRADE, in OFÍCIO DE PACIÊNCIA (1994), in POESIA DE EUGÉNIO DE ANDRADE (Modo de Ler, 2011)

domingo, 21 de julho de 2013

6


Este amor está preso aos pés da terra,
o seu caule é de ferro,
cresce na minha boca, estremece e resiste
nas frágeis construções
da nossa antiga, privada, fiel
arquitectura.

ARMANDO SILVA CARVALHO, in DE AMORE (Assírio & Alvim, 2012)

sexta-feira, 19 de julho de 2013

DE MÃOS ABERTAS


Se eu pudesse,
Tocava o teu rosto em silêncio
E falava-te do mar,
Deixava tombar os meus cabelos
Sobre o teu ombro
Como uma bênção
E fechava os olhos
Consciente de ser em ti
Como um salgueiro.

ANA BRILHA, in A APOLOGIA DO SILÊNCIO (ed. da Autora, 2012)

domingo, 14 de julho de 2013

De um e outro lado do que sou


De um e outro lado do que sou,
da luz e da obscuridade,
do ouro e do pó,
ouço pedirem-me que escolha;
e deixe para trás a inquietação,
a dor,
um peso de não sei que ansiedade.

Mas levo comigo tudo
o que recuso. Sinto

colar-se-me às costas
um resto de noite;
e não sei voltar-me
para a frente, onde
amanhece.

NUNO JÚDICE, in MEDITAÇÃO SOBRE RUÍNAS (Quetzal, 1999)

E por vezes


E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos.

David Mourão-Ferreira

sexta-feira, 12 de julho de 2013

POEMA 7


Canto com toda a minha pele.
A pele dos meus joelhos, dos meus ombros,
a pele das espáduas, das pernas, das perguntas,
a pele do coração. Canto com
a pele insubmissa que ostenta a cicatriz da água,
que se fere na luz quando repele
os limites do corpo. Canto com a pele
que envolve a minha pele, território e mapa
de profundos oiros enterrados.

Eu amo e canto aquele país do sol
onde a tua pele e a minha se confundem

JOAQUIM PESSOA in À MESA DO AMOR (Litexa, 1994), in GUARDAR O FOGO (Edições Esgotadas, 2013)

V


Eu venho do sonho e fujo da vida.
Errei no caminho para a paz prometida.

Só sei que me chama um canto de mar.
E a nau dos sonhos no céu a varar.

Ó meu capitão da barca perdida
A errar entre o sonho e o engano da vida!

NATÁLIA CORREIA, in RIO DE NÚVENS (1947), in POESIA COMPLETA - O SOL NAS NOITES E O LUAR NOS DIAS (Dom Quixote, 2007)

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Há dias em que em ti talvez não pense


Há dias em que em ti talvez não pense
a morte mata um pouco a memória dos vivos
é todavia claro e fotográfico o teu rosto
caído não na terra mas no fogo
e se houver dia em que não pense em ti
estarei contigo dentro do vazio

GASTÃO CRUZ, in FOGO (Assírio & alvim, 2013)

Nunca Aprendi a Existir


Tenho as opiniões desmentidas, as crenças mais diversas - É que nunca penso nem falo nem ajo... Pensa, fala, age por mim sempre um sonho qualquer meu em que me encarno no momento.
Vem a fala e falo-eu-outro. De meu, só sinto uma incapacidade enorme, um vácuo imenso, uma incompetência ante tudo o que é a vida. Não sei os gestos a acto nenhum real.
Nunca aprendi a existir.

Fernando Pessoa, 'Inéditos'

terça-feira, 9 de julho de 2013

SUPERAÇÃO


Fechei-me dentro dos muros
onde o meu corpo não cabia
contente de ser prisioneira
do cárcere que eu transcendia.

E fui no vento que tudo
tudo o que havia varria,
contente de ser mais veloz
que o vento que me impelia.

Fiquei suspensa dos ramos
que os meus cabelos prendiam
contente de ser o destino
da árvore em que me fundia.

E dei-me como leito às águas
dos sonhos que me transcorriam
contente de ser o curso
da água em que me esvaía.

NATÁLIA CORREIA, in INÉDITOS (1959/1961), in POESIA COMPLETA - O SOL NAS NOITES E O LUAR NOS DIAS (Dom Quixote, 2007)

quinta-feira, 4 de julho de 2013

AMOR


o teu rosto à minha espera, o teu rosto
a sorrir para os meus olhos, existe um
trovão de céu sobre a montanha.

as tuas mãos são finas e claras, vês-me
sorrir, brisas incendeiam o mundo,
respiro a luz sobre as folhas da olaia.

entro nos corredores de outubro para
encontrar um abraço nos teus olhos,
este dia será sempre hoje na memória.

hoje compreendo os rios. a idade das
rochas diz-me palavras profundas,
hoje tenho o teu rosto dentro de mim.

JOSÉ LUÍS PEIXOTO, in A CASA, A ESCURIDÃO ( Temas e Debates, 2002)

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Ternura


Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente

E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não trai o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o
[olhar extático da aurora.

Vinicius de Moraes, in 'Antologia Poética'

sábado, 29 de junho de 2013

Ai flores, ai flores do verde pino




-Ai flores, ai flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo!
        Ai Deus, e u é?

Ai, flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado!
       Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,
aquel que mentiu do que pos comigo!
       Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado
aquel que mentiu do que mi ha jurado!
       Ai Deus, e u é?

-Vós me preguntades polo voss'amigo,
e eu ben vos digo que é san'e vivo.
      Ai Deus, e u é?

Vós me preguntades polo voss'amado,
e eu ben vos digo que é viv'e sano.
      Ai Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é san'e vivo
e seerá vosc'ant'o prazo saído.
     Ai Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é viv'e sano
e seerá vosc'ant'o prazo passado.
      Ai Deus, e u é?~

D. Dinis

sexta-feira, 28 de junho de 2013

O meu tempo é eterno


O meu tempo é eterno.
Habito os céus
Que as aves deixaram vazios
Há já tanto tempo.
Talvez não saibas
Que povoas os meus pensamentos,
Que tomas forma nos meus sonhos.
Quando te vier buscar
Tomarei tuas mãos,
Trocaremos palavras
Pela eternidade do nosso olhar…
Eu sou o anjo do desespero.

PAULO EDUARDO CAMPOS, in NA SERENIDADE DOS RIOS QUE ENLOUQUECEM (Amores Perfeitos, Vila Nova de Famalicão, 2005)

ASSIM O AMOR


Assim o amor
Espantado meu olhar com teus cabelos
Espantado meu olhar com teus cavalos
E grandes praias fluidas avenidas
Tardes que oscilam demoradas
E um confuso rumor de obscuras vidas
E o tempo sentado no limiar dos campos
Com seu fuso sua faca e seus novelos

Em vão busquei eterna luz precisa

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in DUAL (1ª ed.. Moraes Ed, 1972), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

quinta-feira, 27 de junho de 2013

RESPIRO O TEU CORPO


Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.

EUGÉNIO DE ANDRADE, in POESIA DE EUGÈNIO DE ANDRADE (Modo de Ler, 2011)

terça-feira, 25 de junho de 2013

NOITE APAGADA


Neste céu imenso
Num sentir ausente
Ouço um canto
Ou será o mar, fresta de ar
Pássaro esvoaçante
Uma melodia estonteante
Que me leva para longe
Nesta incógnita me encontro
Nesta lua fugidia
São sombras que busco
Na noite fria
Onde o tédio invade
A alma vazia
E e torna serva da noite
Onde à tona procuro,
Sofregamente
Respostas, na poesia.

CECÍLIA VILAS BOAS, in O ECO DO SILÊNCIO (Esfera do Caos, 2012)

segunda-feira, 24 de junho de 2013

O AMOR


Não há para mim outro amor nem tardes limpas
A minha própria vida a desertei
Só existe o teu rosto geometria
Clara que sem descanso esculpirei.

E a noite onde sem fim me afundarei.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in O CRISTO CIGANO (1961), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2011)

sábado, 22 de junho de 2013

Evadir-me, esquecer-me, regressar


Evadir-me, esquecer-me, regressar
À frescura das coisas vegetais,
Ao verde flutuante dos pinhais
Percorridos de seivas virginais
E ao grande vento límpido do mar.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in DIA DO MAR (1947), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

terça-feira, 18 de junho de 2013

Os nossos dedos abriram mãos fechadas


Os nossos dedos abriram mãos fechadas
Cheias de perfume
Partimos à aventura através de vozes e de gestos
Pressentimos paixões como paisagens
E cada corpo era um caminho
Mas um se ergueu tomando tudo
E escorreram asas dos seus braços.

Florestas, pântanos e rios
Viajámos imóveis debruçados,
Enquanto o céu brilhava nas janelas.

E a cidade partiu como um navio
Através da noite.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in CORAL (1950), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

POEMA QUADRAGÉSIMO SEXTO


Peço-te. Não pises as violetas
que trago no olhar.
Falemos dos brilhos estilhaçados
desta casa súbita que é o teu corpo
devoluto. A noite devora as palavras possíveis,
o sofrimento que pulsa em tua boca
e torna a minha boca vulnerável.
O amor é um nada que a liberta, uma luz
que desce dos ombros para o ventre
e fecunda as sementes da tua virgindade,
essa que faz agora parte de uma dor quase
amigável, na lividez do tempo,
e que entregas em minhas mãos, beijando-as,
tornando-te parte dos meus versos, da
minha forma mais profunda de gostar
de ti.
Amar-te, é escrever-te.
Amar-te é deixar que me toques até ser teu,
até que te deites no meu corpo e adormeças
inteira dentro de mim.
Peço-te. Não pises as violetas
que trago no olhar. Cheiram a ti. São para ti.
Um "bouquet" de palavras que floriram
neste tempo de amor.

JOAQUIM PESSOA, in GUARDAR O FOGO (Edições Esgotadas, 2013)

segunda-feira, 17 de junho de 2013

RIO TRISTE


Longuíssimos braços têm
os olhos que tudo abraçam.
Somente, só os olhos vêem
os olhos que por mim passam.

Clandestinamente os lanço,
braços de mar, olhos de água.
Longo ser líquido avanço,
abraço a vida, e alago-a.

Destino do amor triste
que não se ouve nem se vê.
ama apenas porque existe.
Não sabe a quem nem porquê.

Nesta obrigação de estar
que a cada um de nós cabe,
coube-me esta de amar.
E ninguém sabe.

ANTÓNIO GEDEÃO, in "POESIA COMPLETA" (Ed. João Sá da Costa, 1996)

COMO EU QUERIA


Quero ler-te
Lentamente
Verso a verso
Como se fosses poesia

Quero sentir-te
Lentamente
Gota a gota
Como se fosses maresia

Respirares-me
Boca a boca
Lentamente

Como eu queria.

JOSÉ GABRIEL DUARTE, in NO OUTRO LADO DE MIM (Chiado Ed., 2012)

domingo, 16 de junho de 2013

Ecloga


Sonhei
contigo embora nenhum sonho
possa ter habitantes, tu a quem chamo
amor, cada ano pudesse trazer
um pouco mais de convicção a
esta palavra. É verdade o sonho
poderá ter feito com que, nesta
rarefacção de ambos, a tua presença se
impusesse - como se cada gesto
do poema te restituísse um corpo
que sinto ao dizer o teu nome,
confundindo os teus
lábios com o rebordo desta chávena
de café já frio. Então, bebo-o
de um trago o mesmo se pode fazer
ao amor, quando entre mim e ti
se instalou todo este espaço -
terra, água, nuvens, rios e
o lago obscuro do tempo
que o inverno rouba à transparência
da fontes. É isto, porém, que
faz com que a solidão não seja mais
do que um lugar comum saber
que existes, aí, e estar contigo
mesmo que só o silêncio me
responda quando, uma vez mais
te chamo.

Nuno Júdice

Princípios


Podíamos saber um pouco mais
da morte. Mas não seria isso que nos faria
ter vontade de morrer mais 
depressa.

Podíamos saber um pouco mais
da vida. Talvez não precisássemos de viver
tanto, quando só o que é preciso é saber
que temos de viver.

Podíamos saber um pouco mais
do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar
de amar ao saber exactamente o que é o amor, ou
amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada
sabemos do amor.

Nuno Júdice

Nunca são as coisas mais simples


Nunca são as coisas mais simples que aparecem
quando as esperamos. O que é mais simples,
como o amor, ou o mais evidente dos sorrisos, não se
encontra no curso previsível da vida. Porém, se
nos distraímos do calendário, ou se o acaso dos passos
nos empurrou para fora do caminho habitual,
então as coisas são outras. Nada do que se espera
transforma o que somos se não for isso:
um desvio no olhar; ou a mão que se demora
no teu ombro, forçando uma aproximação dos lábios.

Nuno Júdice

Poema XLIV


Saberás que não te amo e que te amo
posto que de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa do silêncio,
o fogo tem uma metade de frio.

Eu te amo para começar a amar-te,
para recomeçar o infinito
e para não deixar de amar-te nunca:
por isso não te amo ainda.

Te amo e não te amo como se tivesse
em minhas mãos as chaves da fortuna
e um incerto destino desafortunado.

Meu amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quando não te amo
e por isso te amo quando te amo.

Pablo Neruda, in Cem Poemas de Amor

sábado, 15 de junho de 2013

Nomeei-te no meio dos meus sonhos


Nomeei-te no meio dos meus sonhos
chamei por ti na minha solidão
troquei o céu azul pelos teus olhos
e o meu sólido chão pelo teu amor

Ruy Belo

Levar-te à boca

Levar-te à boca,
beber a água
mais funda do teu ser -

se a luz é tanta,
como se pode morrer?

Eugénio de Andrade

Que pode uma criatura


Que pode uma criatura senão,
entre outras criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 13 de junho de 2013

QUANDO O AMOR MORRER


Quando o amor morrer dentro de ti,
Caminha para o alto onde haja espaço,
E com o silêncio outrora pressentido
Molda em duas colunas os teus braços.
Relembra a confusão dos pensamentos,
E neles ateia o fogo adormecido
Que uma vez, sonho de amor, teu peito ferido
Espalhou generoso aos quatro ventos.
Aos que passarem dá-lhes o abrigo
E o nocturno calor que se debruça
Sobra as faces brilhantes de soluços.
E se ninguém vier, ergue o sudário
Que mil saudosas lágrimas velaram;
Desfralda na tua alma o inventário
Do templo onde a vida ora de bruços
A Deus e aos sonhos que gelaram.


RUY CINATTI, in OBRA POÉTICA (Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1992. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral)

O Beijo


Congresso de gaivotas neste céu
Como uma tampa azul cobrindo o Tejo.
Querela de aves, pios, escarcéu.
Ainda palpitante voa um beijo.

Donde teria vindo! (Não é meu...)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandado de captura ou de despejo?

É uma ave estranha: colorida,
Vai batendo como a própria vida,
Um coração vermelho pelo ar.

E é a força sem fim de duas bocas,
De duas bocas que se juntam, loucas!
De inveja as gaivotas a gritar...

Alexandre O'Neill, in 'No Reino da Dinamarca'

domingo, 9 de junho de 2013

Eu Queria uma Liberdade Olímpica


Acordei hoje com tal nostalgia de ser feliz. Eu nunca fui livre na minha vida inteira. Por dentro eu sempre me persegui. Eu me tornei intolerável para mim mesma. Vivo numa dualidade dilacerante. Eu tenho uma aparente liberdade mas estou presa dentro de mim. Eu queria uma liberdade olímpica. Mas essa liberdade só é concedida aos seres imateriais. Enquanto eu tiver corpo ele me submeterá às suas exigências. Vejo a liberdade como uma forma de beleza e essa beleza me falta.

Clarice Lispector, in 'Um Sopro de Vida'

quarta-feira, 5 de junho de 2013

REALIDADE


Em ti o meu olhar fez-se alvorada
E a minha voz fez-se gorgeio de ninho...
E a minha rubra boca apaixonada
Teve a frescura pálida do linho...

Embriagou-me o teu beijo como um vinho
Fulvo de Espanha, em taça cinzelada...
E a minha cabeleireira desatada
Pôs a teus pés a sombra dum caminho...

Minhas pálpebras são cor de verbena,
Eu tenho os olhos garços, sou morena,
E para te encontrar foi que eu nasci...

Tens sido vida fora o meu desejo
E agora, que te falo, que te vejo,
Não sei se te encontrei... se te perdi...

FLORBELA ESPANCA, in SONETOS, (Alétheia Ed., 2010)

terça-feira, 4 de junho de 2013

Andam palavras na noite


Andam palavras na noite
Cansadas de me chamar.
Trago os meus lábios salgados
E algas no paladar.

Eu sou um grande oceano
Que só fala a voz do mar!
Mas já sinto o mar cansado
De pedir o luar ao céu
Que a Noite não lhe quer dar!

NATÁLIA CORREIA, in RIO DE NUVENS (1947), in POESIA COMPLETA - O SOL NAS NOITES E O LUAR NOS DIAS (Dom Quixote, 2007)

segunda-feira, 3 de junho de 2013

V


Eu venho do sonho e fujo da vida.
Errei no caminho para a paz prometida.

Só sei que me chama um canto de mar.
E a nau dos sonhos no céu a varar.

Ó meu capitão da barca perdida
A errar entre o sonho e o engano da vida!

NATÁLIA CORREIA, in RIO DE NÚVENS (1947), in POESIA COMPLETA - O SOL NAS NOITES E O LUAR NOS DIAS (Dom Quixote, 2007)

domingo, 2 de junho de 2013

EIS-ME


Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses
Para ficar sozinha ante o silêncio
Ante o silêncio e o esplendor da tua face

Mas tu és de todos os ausentes o ausente
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo em que não moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silêncio

Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes o ausente

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in LIVRO SEXTO (Moraes Ed., 1962) in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Quando o Amor Morrer Dentro de Ti


 


Quando o amor morrer dentro de ti,
Caminha para o alto onde haja espaço,
E com o silêncio outrora pressentido
Molda em duas colunas os teus braços.
Relembra a confusão dos pensamentos,
E neles ateia o fogo adormecido
Que uma vez, sonho de amor, teu peito ferido
Espalhou generoso aos quatro ventos.
Aos que passarem dá-lhes o abrigo
E o nocturno calor que se debruça
Sobre as faces brilhantes de soluços.
E se ninguém vier, ergue o sudário
Que mil saudosas lágrimas velaram;
Desfralda na tua alma o inventário
Do templo onde a vida ora de bruços
A Deus e aos sonhos que gelaram.

Ruy Cinatti, in “Obra Poética”

domingo, 19 de maio de 2013

Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos


Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos,
Sacode as aves que te levam o olhar.
Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.

Porque eu cheguei e é tempo de me veres,
Mesmo que os meus gestos te trespassem
De solidão e tu caias em poeira,
Mesmo que a minha voz queime o ar que respiras
E os teus olhos nunca mais possam olhar.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in CORAL (Liv. Simões Lopes, 1950), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

sábado, 18 de maio de 2013

MORRER DE AMOR


Morrer de amor
ao pé da tua boca

Desfalecer
à pele
do sorriso

Sufocar
de prazer
com o teu corpo

Trocar tudo por ti
se for preciso

MARIA TERESA HORTA, in DESTINO (Quetzal, 1988), in POESIA REUNIDA (D. Quixote, 2009)

Amei-te como na vida se ama uma só vez


Amei-te como na vida se ama uma só vez;
e todos os afetos que dividi depois eram
apenas cinzas que evocavam o brilho dessa
imensa chama. Troquei suspiros e beijos

com muitas outras bocas quando, na minha,
o travo da solidão era uma amarga desculpa
para repartir o pouco que não tinha; mas

em nenhuma quis morder fruto mais
suculento que o silêncio nem permiti que
pousasse sequer o meu nome verdadeiro -
que só nos teus lábios era graça e canção

e eco de loucura. Foi o meu corpo tão vão displicente
naqueles que o cingiram que me faria velha
a tentar recordar-lhes os gestos hesitantes,
as convulsões da pressa e os veios de sal que
descreviam no litoral da pele o aviso de uma
paisagem interior abandonada. Mas de nada

me serviu amar-te assim - pois, ao dizer-te o
que não pude ser longe de ti, digo-te o que sou
e isso há de guardar-te para sempre de voltares.


MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in POESIA REUNIDA (Quetzal, 2012)

sexta-feira, 17 de maio de 2013

POEMA SEPTUAGÉSIMO SÉTIMO


Não te peço perdão. E peço-te
que não me peças perdão. Faz
como os alfarrabistas para quem
não interessam as qualidades de uma obra
mas, e apenas, a sua raridade. Não
me julgues ainda. Deixa que o tempo
se encarregue desse julgamento. Hoje
e amanhã não são o mesmo dia. Todos
os passados já foram futuro, e o futuro
é com esses passados que tem
de construir-se. O próximo futuro.
Porque o futuro longínquo será a soma
dos futuros mais próximos, isto é,
a soma dos passados que hão-de
vir, sem pedir perdão a um futuro
que, exactamente por ser futuro,
não se pode saber se chegará.

JOAQUIM PESSOA, in GUARDAR O FOGO (Ed. Esgotadas, 2013)

terça-feira, 14 de maio de 2013

Não digas nada – a tua boca já me pertenceu


Não digas nada – a tua boca já me pertenceu
e agora tenho ciúmes das palavras. O que
disseres será um beijo pousado nos lábios de
outra mulher, dor e mais dor, traição maior
para quem acreditou que o teu amor era para
a morte. Não fales – tenho também ciúmes

da tua voz; ouvir-te é ficar só uma vez mais.

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in POESIA REUNIDA-A Ideia do Fim (Quetzal, 2012)

domingo, 21 de abril de 2013

DIZ-ME O TEU NOME



Diz-me o teu nome - agora, que perdi
quase tudo, um nome pode ser o princípio
de alguma coisa. Escreve-o na minha mão

com os teus dedos - como as poeiras se
escrevem, irrequietas, nos caminhos e os
lobos mancham o lençol da neve com os
sinais da sua fome. Sopra-mo no ouvido,

como a levares as palavras de um livro para
dentro de outro - assim conquista o vento
o tímpano das grutas e entra o bafo do verão
na casa fria. E, antes de partires, pousa-o

nos meus lábios devagar: é um poema
açucarado que se derrete na boca e arde
como a primeira menta da infância.

Ninguém esquece um corpo que teve
nos braços um segundo - um nome sim.

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in NENHUM NOME DEPOIS ( Gótica, 2ª. Ed., 2005), in in POESIA REUNIDA (Quetzal, 2012)

sábado, 20 de abril de 2013

Abraça-me


Abraça-me. Quero ouvir o vento que vem da tua pele, e ver o sol nascer do intenso calor dos nossos corpos. Quando me perfumo assim, em ti, nada existe a não ser este relâmpago feliz, esta maçã azul que foi colhida na palidez de todos os caminhos, e que ambos mordemos para provar o sabor que tem a carne incandescente das estrelas. Abraça-me. Veste o meu corpo de ti, para que em ti eu possa buscar o sentido dos sentidos, o sentido da vida. Procura-me com os teus antigos braços de criança, para desamarrar em mim a eternidade, essa soma formidável de todos os momentos livres que a um e a outro pertenceram. Abraça-me. Quero morrer de ti em mim, espantado de amor. Dá-me a beber, antes, a água dos teus beijos, para que possa levá-la comigo e oferecê-la aos astros pequeninos.
Só essa água fará reconhecer o mais profundo, o mais intenso amor do universo, e eu quero que delem fiquem a saber até as estrelas mais antigas e brilhantes.
Abraça-me. Uma vez só. Uma vez mais.
Uma vez que nem sei se tu existes.

Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'

domingo, 14 de abril de 2013

Nous dormirons ensemble.


Que ce soit dimanche ou lundi
Soir ou matin minuit midi
Dans l'enfer ou le paradis
Les amours aux amours ressemblent
C'était hier que je t'ai dit
Nous dormirons ensemble

C'était hier et c'est demain
Je n'ai plus que toi de chemin
J'ai mis mon cœur entre tes mains
Avec le tien comme il va l'amble
Tout ce qu'il a de temps humain
Nous dormirons ensemble

Mon amour ce qui fut sera
Le ciel est sur nous comme un drap
J'ai refermé sur toi mes bras
Et tant je t'aime que j'en tremble
Aussi longtemps que tu voudras
Nous dormirons ensemble.

Louis Aragon

Não digas nada – a tua boca já me pertenceu


Não digas nada – a tua boca já me pertenceu
e agora tenho ciúmes das palavras. O que
disseres será um beijo pousado nos lábios de
outra mulher, dor e mais dor, traição maior
para quem acreditou que o teu amor era para
a morte. Não fales – tenho também ciúmes

da tua voz; ouvir-te é ficar só uma vez mais.


MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in POESIA REUNIDA-A Ideia do Fim (Quetzal, 2012)

sábado, 13 de abril de 2013

[PORQUE ME MATASTE]


Por que me mataste
Nesta noite sem dias,
Quando abriste as portas
Que te levaram a mim,
Percorrendo os longos corredores
Da minha vida?
Por que chegaste
Sem avisares,
Trazendo nos olhos
O pôr-do-sol e o canto das aves?
Por que partiste,
Quando estremeceu esta noite fria
Envolta em nevoeiro?

PAULO EDUARDO CAMPOS, in NA SERENIDADE DOS RIOS QUE ENLOUQUECEM (Amores Perfeitos, 2005)

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Um gesto sem paisagem


Um gesto sem paisagem
sem horizonte ou casa
sem o outro
não chega a ser um gesto
será talvez um esgar
um grito que sufoca
tal como um rio se perde
sem as suas margens.

ANTÓNIO RAMOS ROSA, in A INTACTA FERIDA (Relógio d'Água, 1991)ens


quarta-feira, 10 de abril de 2013

Lê , são estes os nomes das coisas


Lê , são estes os nomes das coisas que
deixaste – eu, livros, o teu perfume
espalhado pelo quarto; sonhos pela
metade e dor em dobro, beijos por
todo o corpo como cortes profundos
que nunca vão sarar; e livros, saudade,
a chave de uma casa que nunca foi a
nossa, um roupão de flanela azul que
tenho vestido enquanto faço esta lista:

livros, risos que não consigo arrumar,
e raiva – um vaso de orquídeas que
amavas tanto sem eu saber porquê e
que talvez por isso não voltei a regar; e
livros, a cama desfeita por tantos dias,

uma carta sobre a tua almofada e tanto
desgosto, tanta solidão; e numa gaveta
dois bilhetes para um filme de amor que
não viste comigo, e mais livros, e também
uma camisa desbotada com que durmo
de noite para estar mais perto de ti; e, por

todo o lado, livros, tantos livros, tantas
palavras que nunca me disseste antes da
carta que escreveste nessa manhã, e eu,

eu que ainda acredito que vais voltar, que
voltas, mesmo que seja só pelos teus livros

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in POESIA REUNIDA (Quetzal, 2012)

domingo, 7 de abril de 2013

AUSÊNCIA


Eu haverei de erguer a vasta vida
que ainda é o teu espelho:
cada manhã hei-de reconstruí-la.
Desde que te afastaste,
quantos lugares se tornaram vãos
e sem sentido, iguais
a luzes acesas de dia.
Tardes que te abrigaram a imagem,
música em que sempre me esperavas,
palavras desse tempo,
terei de as destruir com as minhas mãos.
Em que ribanceira esconderei a alma
pra que não veja a tua ausência,
que como um sol terrível, sem ocaso,
brilha definitiva e sem piedade?
A tua ausência cerca-me
como corda à garganta.
O mar ao que se afunda.

JORGE LUIS BORGES, in FERVOR DE BUENOS AIRES, in OBRAS COMPLETAS I 1923-1949, trad. de FERNANDO PINTO DO AMARAL (Teorema, 1998)

sábado, 6 de abril de 2013

APELO


Atravessa os campos da noite
e vem.

A minha pele
ainda cálida de sol
te será margem.

Nas fontes, vivas,
do meu corpo
saciarás a tua sede.

Os ramos dos meus braços
serão sombra rumorejante
ao teu sono, exausto.

Atravessa os campos da noite
e vem.

LUISA DACOSTA, in CEM POEMAS PORTUGUESES NO FEMININO,Selec., Organiz. e introd. de José Fanha e José Jorge Letria (Terramar, 2005)

quinta-feira, 4 de abril de 2013

TECES NOS TEUS OLHOS


Teces nos teus olhos
O frio da madrugada.
As fontes, onde as aves
Beberam os gritos.
Teces a espuma deste mar
Que te levou de mim,
Os domingos de sol
Numa tarde de Maio,
Quando o silêncio renasce
Da sua morte.
Foi para ti que inventei o sonho,
Para que os anjos tristes
Que te acompanhavam,
Te desamparassem.
Foi neste mar imenso,
Nesta praia deserta,
Que nasceu no teu rosto
A madrugada.

PAULO EDUARDO CAMPOS, in NA SERENIDADE DOS RIOS QUE ENLOUQUECEM (Amores Perfeitos, 2005)

(...)


Pairei nesse teu mar
Doce, quente e profundo
Na esperança de ancorar
Esperei,
Amei,
Até o tempo me deixar.

JOSÉ GABRIEL DUARTE in NO OUTRO LADO DE MIM (Chiado Ed., 2012)

segunda-feira, 1 de abril de 2013

PENSO EM TI NO SILÊNCIO DA NOITE, QUANDO TUDO É NADA


Penso em ti no silêncio da noite, quando tudo é nada,
E os ruídos que há no silêncio são o próprio silêncio,
Então, sozinho de mim, passageiro parado
De uma viagem em Deus, inutilmente penso em ti.

Todo o passado, em que foste um momento eterno
E como este silêncio de tudo.
Todo o perdido, em que foste o que mais perdi,
É como estes ruídos,
Todo o inútil, em que foste o que não houvera de ser
É como o nada por ser neste silêncio nocturno.

Tenho visto morrer, ou ouvido que morrem,
Quantos amei ou conheci,
Tenho visto não saber mais nada deles de tantos que foram
Comigo, e pouco importa se foi um homem ou uma conversa;
Ou um [...] assustado e mudo,
E o mundo hoje para mim é um cemitério de noite
Branco e negro de campas e [...] e de luar alheio
E é neste sossego absurdo de mim e de tudo que penso em ti.

ÁLVARO DE CAMPOS (FERNANDO PESSOA), in LIVRO DE VERSOS (Estampa, 1933)

quarta-feira, 27 de março de 2013

Não fui eu que pintei o sol no céu


Não fui eu que pintei o sol no céu,
nem as nuvens no Ar
com água de prata.

Quando nasci já tudo estava no mundo
com relvas e azuis, poentes e sombras,
pobres e cicatrizes...

Porque então estes remorsos
de andar a sofrer não sei por quem
a culpa de haver rosas e haver vida?

Palavra! não fui eu
quem atirou a lua para o céu!

JOSÉ GOMES FERREIRA, in POETA MILITANTE I - VIAGEM EM SÉCULO VINTE EM MIM (Moraes Ed., 1977; 4ª ed. Pub. D. Quixote, 1990)

ABRIGO


Abrigo-me de ti
de mim não sei
há dias em que fujo
e que me evado

há horas em que a raiva
não sequei
nem a inveja rasguei
ou a desfaço

Há dias em que nego
e outros onde nasço

há dias só de fogo
e outros tão rasgados

Aqueles onde habito
com tantos dias vagos.

MARIA TERESA HORTA, in MINHA SENHORA DE MIM, (Ed. Futura, Lisboa, 1974), in in POESIA REUNIDA (Publ. D. Quixote, 2009)

MORRER DE AMOR



Morrer de amor
ao pé da tua boca

Desfalecer
à pele
do sorriso

Sufocar
de prazer
com o teu corpo

Trocar tudo por ti
se for preciso

MARIA TERESA HORTA, in DESTINO ( Quetzal, 1988 )

Dia 168


(...) Quando voltares, toma a minha mão. Tenho saudades de mim em ti.
Tenho muitas saudades de morar dentro dos livros, e de fazer amor contigo em todas as páginas.

(excerto)
JOAQUIM PESSOA, in ANO COMUM [Introdução de Robert Simon; Posfácio de Teresa Sá Couto (Litexa Editora, 2011)]

segunda-feira, 25 de março de 2013

....


V


Eu venho do sonho e fujo da vida.
Errei no caminho para a paz prometida.

Só sei que me chama um canto de mar.
E a nau dos sonhos no céu a varar.

Ó meu capitão da barca perdida
A errar entre o sonho e o engano da vida!

NATÁLIA CORREIA, in RIO DE NÚVENS (1947), in POESIA COMPLETA - O SOL NAS NOITES E O LUAR NOS DIAS (Dom Quixote, 2007)

sexta-feira, 15 de março de 2013

Penumbra


QUARTO DE LUA


Disseste-me um segredo baixinho
Envolveste-me em noites de luar amigo
Num odor de palavra jasmim
Em convites de seda doce
Em sorrisos de cantos (e)ternos
Em maresias de noites simples
Em estendais de poesia livre
Em flor constante… que partes
Na chegada próxima…
Onde desespero
E já te aguardo!

JOSÉ LUÍS OUTONO, in MAR DE SENTIDOS (Edições Vieira da Silva, 2012)

quarta-feira, 13 de março de 2013

SONETO DO ESCURO


Amor, tenho saudades de outra vida
feita só de mil dias transparentes:
Não te esqueças de mim se vires perdida
esta voz nas palavras mais ausentes.

Porque é perto da morte que escrevemos,
cada verso contém uma ameaça:
e a ternura maior que nos dizemos
é feita de penumbra fria e baça.

Se a voz se dá no verso e na medida
é medo, meu amor, mais que vontade:
o verso nada pode contra a vida;
sabê-lo é a nossa liberdade.

É medo que nos versos esconjuro,
como riso vibrando no escuro!~

LUIS FILIPE CASTRO MENDES, in OS AMANTES OBSCUROS, in POESIA REUNIDA (Quetzal, 1999)

terça-feira, 12 de março de 2013

POEMA OCTOGÉSIMO


Frágeis como os ossos de um cristal,
os meus pensamentos aninham-se na noite
para construir o poema. A minha dor branca prefere
a luz que prenuncia a madrugada, luz bailarina
que me ilumina a pele molhada de alegria
sempre que faço em ti o trabalho doce da abelha
e me deito sobre o teu corpo para provar da vida
o melhor de todos os néctares, o mais completo
dos versos que o teu sangue me dá. Continuo
a escrever-te com o corpo. Quero ganhar
o nobel da ternura.

JOAQUIM PESSOA, in GUARDAR O FOGO (a publicar em 2013)
[com Texto introdutório das Prof. Maria da Conceição Andrade e Maria Fernanda Navarro da Universidade do Algarve]

quinta-feira, 7 de março de 2013

Se é assim que desejas


Se é assim que desejas,
se for assim do teu gosto,
cessarei de cantar!
Se com isso agitar
teu coração,
do meu olhar o triste brilho
desviarei do teu rosto...
E se eu, de súbito, te assustar
no teu passeio despreocupado,
afastar-me-ei do teu lado
e tomarei outro brilho...

Se eu te embaraçar - ai de mim -
quando teceres as tuas flores,
flor encantada,
esquivar-me-ei do teu
solitário jardim
e da tua doce imagem...
E se eu tornar a água turva
e agitada,
jamais remarei a minha barca
para a tua margem...

Rabindranath Tagore (1861-1941)

quarta-feira, 6 de março de 2013

OS SILÊNCIOS


Não entendo os silêncios
que tu fazes
nem aquilo que espreitas
só comigo

Se escondes a imagem
e a palavra
e adivinhas aquilo
que não digo

Se te calas
eu oiço e eu invento
Se tu foges
eu sei não te persigo

Estendo-te as mãos
dou-te a minha alma
e continuo a querer
ficar contigo

MARIA TERESA HORTA, in SÓ DE AMOR (Quetzal Editores, 1999)

sábado, 2 de março de 2013

UM AMOR


Aproximei-me de ti; e tu, pegando-me na mão.
puxaste-me para os teus olhos
transparentes como o fundo do mar para os afogados. Depois, na rua,
ainda apanhámos o crepúsculo.
As luzes acendiam-se nos autocarros; um ar
diferente inundava a cidade. Sentei-me
nos degraus, do cais, em silêncio.
Lembro-me do som dos teus passos,
uma respiração apressada, ou um princípio de lágrimas,
e a tua figura luminosa atravessando a praça
até desaparecer. Ainda ali fiquei algum tempo, isto é,
o tempo suficiente para me aperceber de que, sem estares ali,
continuavas ao meu lado. E ainda hoje me acompanha
essa doente sensação que
me deixaste como amada
recordação.


Nuno Júdice
in «Poesia reunida 1967 - 2000»,
"A Partilha dos Mitos" [1982],
Pref. Teresa Almeida, D. Quixote

NUNCA AS COISAS MAIS SIMPLES


Nunca são as coisas mais simples que aparecem
quando as esperamos. O que é mais simples,
como o amor, ou o mais evidente dos sorrisos, não se
encontra no curso previsível da vida. Porém, se
nos distraímos do calendário, ou se o acaso dos passos
nos empurrou para fora do caminho habitual,
então as coisas são outras. Nada do que se espera
transforma o que somos se não for isso:
um desvio no olhar; ou a mão que se demora
no teu ombro, forçando uma aproximação
dos lábios.


Nuno Júdice
in «Poesia Reunida 1967-2000»

Desfecho



Não tenho mais palavras.
Gastei-as a negar-te...
(Só a negar-te eu pude combater
O terror de te ver
Em toda a parte).
Fosse qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente,
Do teu vulto calado,
E paciente...
E lutei, como luta um solitário
Quando, alguém lhe perturba a solidão                                                                                                      Fechado num ouriço de recusas,                                                                                                     Soltei a voz, arma que tu não usas,                                                                                                    Sempre silencioso na agressão.                                                                                                 Mas o tempo moeu na sua mó
                                                                                                        O joio amargo do que te dizia...
                                                                                                        Agora somos dois obstinados,
                                                                                                        Mudos e malogrados,
                                                                                                        Que apenas vão a par na teimosia.


                                                                                                                   Miguel Torga, Câmara Ardente

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Pedra Filosofal




Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

In Movimento Perpétuo, António Gedeão, 1956