quarta-feira, 31 de agosto de 2011

A maior solidão é a do ser que não ama


A maior solidão é a do ser que não ama. 
A maior solidão é a dor do ser que se ausenta, que se defende, 
que se fecha, que se recusa a participar da vida humana.

A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, 
no absoluto de si mesmo,
o que não dá a quem pede o que ele pode dar 
de amor, de amizade, de socorro.

O maior solitário é o que tem medo de amar, 
o que tem medo de ferir e ferir-se,
o ser casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo. 
Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno. 
Ele é a angústia do mundo que o reflete. 
Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes de emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras do alto de sua fria e desolada torre.

Vinicius de Moraes

Mais Nada se Move em Cima do Papel


mais nada se move em cima do papel
nenhum olho de tinta iridescente pressagia
o destino deste corpo

os dedos cintilam no húmus da terra
e eu
indiferente à sonolência da língua
ouço o eco do amor há muito soterrado

encosto a cabeça na luz e tudo esqueço
no interior desta ânfora alucinada

desço com a lentidão ruiva das feras
ao nervo onde a boca procura o sul
e os lugares dantes povoados
ah meu amigo
demoraste tanto a voltar dessa viagem

o mar subiu ao degrau das manhãs idosas
inundou o corpo quebrado pela serena desilusão

assim me habituei a morrer sem ti
com uma esferográfica cravada no coração

Al Berto, “O Medo”

Como Queiras, Amor...

Como queiras, Amor, como tu queiras.
Entregue a ti, a tudo me abandono,
seguro e certo, num terror tranquilo.
A tudo quanto espero e quanto temo,
entregue a ti, Amor, eu me dedico.

Nada há que eu não conheça, que eu não saiba,
e nada, não, ainda há por que eu não espere
como de quem ser vida é ter destino.

As pequeninas coisas da maldade, a fria
tão tenebrosa divisão do medo
em que os homens se mordem com rosnidos
de malcontente crueldade imunda,
eu sei quanto me aguarda, me deseja,
e sei até quanto ela a mim me atrai.

Como queiras, Amor, como tu queiras.
De frágil que és, não poderás salvar-me.
Tua nobreza, essa ternura tépida
quais olhos marejados, carne entreaberta,
será só escárneo, ou, pior, um vão sorriso
em lábios que se fecham como olhares de raiva.
Não poderás salvar-me, nem salvar-te.
Apenas como queiras ficaremos vivos.

Será mais duro que morrer, talvez.
Entregue a ti, porém, eu me dedico
àquele amor por qual fui homem, posse
e uma tão extrema sujeição de tudo.

Como tu queiras, meu Amor, como tu queiras.

Jorge de Sena, in 'Post-Scriptum'

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Que nenhuma estrela queime o teu perfil

Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.



Sophia de Mello Breyner Andresen

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Não te quero senão porque te quero

Não te quero senão porque te quero,
e de querer-te a não te querer chego,
e de esperar-te quando não te espero,
passa o meu coração do frio ao fogo.
Quero-te só porque a ti te quero,
Odeio-te sem fim e odiando te rogo,
e a medida do meu amor viajante,
é não te ver e amar-te,
como um cego.

Talvez consumirá a luz de Janeiro,
seu raio cruel meu coração inteiro,
roubando-me a chave do sossego,
nesta história só eu me morro,
e morrerei de amor porque te quero,
porque te quero amor,
a sangue e fogo.

Pablo Neruda

domingo, 28 de agosto de 2011

Devias estar aqui rente aos meus lábios


Devias estar aqui rente aos meus lábios
para dividir contigo esta amargura
dos meus dias partidos um a um

- Eu vi a terra limpa no teu rosto,
Só no teu rosto e nunca em mais nenhum...

Eugénio de Andrade

Il pleure dans mon coeur

Il pleure dans mon coeur
Comme il pleut sur la ville:
Quelle est cette langueur
Qui pénetre mon coeur?

Ô bruit doux de la pluie
Par terre et sur les toits!
Pour un coeur qui s'ennuie
Ô le chant de la pluie!

Il pleure sans raison
Dans ce coeur qui s'écoeure,
Quoi! Nulle trahison?...
Ce deuil est sans raison.

C'est bien la pire peine
De ne savoir porquoi
Sans amour et sans haine
Mon coeur a tant de peine!

Paul Verlaine

À la faveur de la nuit


Se glisser dans ton ombre à la faveur de la nuit.
Suivre tes pas, ton ombre à la fenêtre.
Cette ombre à la fenêtre c'est toi, ce n'est pas une autre, c'est toi.
N'ouvre pas cette fenêtre derrière les rideaux de laquelle tu bouges.
Ferme les yeux.
Je voudrais les fermer avec mes lèvres.
Mais la fenêtre s'ouvre et le vent, le vent
qui balance bizarrement la flamme
et le drapeau entoure ma fuite de son manteau.
La fenêtre s'ouvre: ce n'est pas toi.

Je le savais bien.

Robert Desnos

Non, l'amour n'est pas mort en ce coeur et ces yeux et cette bouche qui proclamait ses funérailles commencées.
Écoutez, j'en ai assez du pittoresque et des couleurs et du charme.
J'aime l'amour, sa tendresse et sa cruauté.
Mon amour n'a qu'un seul nom, qu'une seule forme...

Robert Desnos

sábado, 27 de agosto de 2011

Les pas


Tes pas, enfants de mon silence,
Saintement, lentement placés,
Vers le lit de ma vigilance
Procèdent muets et glacés.

Personne pure, ombre divine,
Qu'ils sont doux, tes pas retenus !
Dieux !... tous les dons que je devine
Viennent à moi sur ces pieds nus !

Si, de tes lèvres avancées,
Tu prépares pour l'apaiser,
A l'habitant de mes pensées
La nourriture d'un baiser,

Ne hâte pas cet acte tendre,
Douceur d'être et de n'être pas,
Car j'ai vécu de vous attendre,
Et mon coeur n'était que vos pas.

Paul Valéry
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.

Alexandre O'Neill

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Esta manhã encontrei o teu nome



Klimt

Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos 
e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo 
doeu-me onde antes os teus dedos foram aves 
de verão e a tua boca deixou um rasto de canções. 



No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha 
camisola; e eu despi-a para ti, a dar-te um coração 
que era o resto da vida - como um peixe respira 
na rede mais exausta. Nem mesmo à despedida 


foram os gestos contundentes: tudo o que vem de ti 
é um poema. Contudo, ao acordar, a solidão sulcara 
um vale nos cobertores e o meu corpo era de novo 


um trilho abandonado na paisagem. Sentei-me na cama 
e repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos, 
mas as sílabas caíam no fim das palavras, a dor esgota 
as forças, são frios os batentes nas portas da manhã.





Maria do Rosário Pedreira

materiais para confecção de um espanador de tristezas


tinha aprendido que era muito importante criar desobjectos.
certa tarde, envolto em tristezas, quis recusar o cinzento. não munido de nenhum artefacto alegre, inventei um espanador de tristezas.
era de difícil manejo – mas funcionava.


ondjaki

On ne peut me connaître

On ne peut me connaître
Mieux que tu me connais


Tes yeux dans lesquels nous dormons
Tous les deux
On fait à mes lumières d'homme
Un sort meilleur qu'aux nuits du monde.


Tes yeux dans lesquels je voyage
Ont donné aux gestes des routes
Un sens détaché de la terre


Dans tes yeux ceux qui nous révèlent
Notre solitude infinie
Ne sont plus ce qu'ils croyaient être



On ne peut te connaître
Mieux que je te connais.


Paul Eluard (Les Yeux Fertiles) (N.R.F.)

À peine défigurée

Adieu tristesse
Bonjour tristesse
Tu es inscrite dans les lignes du plafond
Tu es inscrite dans les yeux que j'aime
Tu n'es pas tout à fait la misère
Car les lèvres les plus pauvres te dénoncent
Par un sourire
Bonjour tristesse
Amour des corps aimables
Puissance de l'amour
Dont l'amabilité surgit
Comme un monstre sans corps
Tête désappointée
Tristesse beau visage.

 Paul Eluard (La vie immédiate)(N.R.F.)

Je te l'ai dit

Je te l'ai dit pour les nuages
Je te l'ai dit pour l'arbre de la mer
Pour chaque vague pour les oiseaux dans les feuilles
Pour les cailloux du bruit
Pour les mains familières
Pour l'oeil qui devient visage ou paysage
Et le sommeil lui rend le ciel de sa couleur
Pour toute la nuit bue
Pour la grille des routes
Pour la fenêtre ouverte pour un front découvert
Je te l'ai dit pour tes pensées pour tes paroles
Toute caresse toute confiance se survivent


Paul Eluard (L'Amour de la Poésie (1928)). (N.R.F.)

Gosto de...

... te ler!
... do teu sorriso.
... das tuas mãos.
... da tua sã loucura.
... do que me ensinas.
... (...)
... de viajar contigo.
.... de ...

Autor desconhecido

Nunca Ninguém Amou Completamente

Vou deitar-te na eternidade, que é esse o teu lugar, é esse, é esse. E agora só tenho que te amar tudo de ti, não deixar nada de fora. Porque, sabê-lo-ás? Nunca ninguém amou completamente, houve sempre uma forma de amar fragmentária, parcial. Amou-se sempre em função de uma fracção do amor como se usou um vestuário segundo a moda, desde o calção ou o penante de plumas. Vou-te amar como Deus. Não, não. Deus não sente prazer nem movimento progressivo até ao prazer, coitado, é tão infeliz. Vou-te amar como um homem desde que os há, desde o tempo das cavernas até hoje e com um pequeno suplemento que é só meu. 
                                                                                                            Vergílio Ferreira, in  Em Nome da Terra

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

AMAR


Fechei os olhos para não te ver e a minha boca para não dizer... E dos meus olhos fechados desceram lágrimas que não enxuguei, e da minha boca fechada nasceram sussurros e palavras mudas que te dediquei... O amor é quando a gente mora um no outro



Mário Quintana

Dá-me a tua mão

Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.

De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.

Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
- nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio.



Clarice Lispector

Áspero amor

Áspero amor, violeta coroada de espinhos,
cipoal entre tantas paixões eriçado, lança das dores,
corola da colera, por que caminhos
e como te dirigiste a minha alma?
Por que precipitaste teu fogo doloroso, de repente,
entre as folhas frias do meu caminho?
Quem te ensinou os passos que até mim te levaram?
que flor, que pedra, que fumaça
mostraram minha morada?
O certo é que tremeu noite pavorosa,
a aurora encheu todas as taças com teu vinho
e o sol estabeleceu sua presença celeste,
enquanto o cruel amor sem trégua me cercava,
até que lacerando-me com espadas
e espinhos abriu no coração um caminho queimante.



Pablo Neruda

III

Para meu coração basta teu peito
para tua liberdade bastam minhas asas.
Desde minha boca chegará até o céu
o que estava dormindo sobre tua alma.

E em ti a ilusão de cada dia.
Chegas como o sereno às corolas.
Escavas o horizonte com tua ausência
Eternamente em fuga como a onda.

Eu disse que cantavas no vento
como os pinheiros e como os hastes.
Como eles és alta e taciturna.
e entristeces prontamente, como uma viagem.

Acolhedora como um velho caminho.
Te povoa ecos e vozes nostálgicas.
eu despertei e às vezes emigram e fogem
pássaros que dormiam em tua alma.



Pablo Neruda

Amantes

Dois amantes felizes não têm fim nem morte,
nascem e morrem tanta vez enquanto vivem,
são eternos como é a natureza.



Pablo Neruda

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Gaivota





Se uma gaivota viesse
trazer-me o céu de Lisboa
no desenho que fizesse,
nesse céu onde o olhar
é uma asa que não voa,
esmorece e cai no mar.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se um português marinheiro,
dos sete mares andarilho,
fosse quem sabe o primeiro
a contar-me o que inventasse,
se um olhar de novo brilho
no meu olhar se enlaçasse.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se ao dizer adeus à vida
as aves todas do céu,
me dessem na despedida
o teu olhar derradeiro,
esse olhar que era só teu,
amor que foste o primeiro.

Que perfeito coração
no meu peito morreria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde perfeito
bateu o meu coração.

Alexandre O'Neill

O Beijo



Congresso de gaivotas neste céu 
Como uma tampa azul cobrindo o Tejo. 
Querela de aves, pios, escarcéu. 
Ainda palpitante voa um beijo. 

Donde teria vindo! (Não é meu...) 
De algum quarto perdido no desejo? 
De algum jovem amor que recebeu 
Mandado de captura ou de despejo? 

É uma ave estranha: colorida, 
Vai batendo como a própria vida, 
Um coração vermelho pelo ar. 

E é a força sem fim de duas bocas, 
De duas bocas que se juntam, loucas! 
De inveja as gaivotas a gritar... 

Alexandre O'Neill, in 'No Reino da Dinamarca'
Nomeei-te no meio dos meus sonhos
chamei por ti na minha solidão
troquei o céu azul pelos teus olhos
e o meu sólido chão pelo teu amor



Ruy Belo

Plano



Trabalho o poema sobre uma hipótese: o amor
que se despeja no copo da vida, até meio, como se
o pudéssemos beber de um trago. No fundo,
como o vinho turvo, deixa um gosto amargo na
boca. Pergunto onde está a transparência do
vidro, a pureza do líquido inicial, a energia
de quem procura esvaziar a garrafa; e a resposta
são estes cacos que nos cortam as mãos, a mesa
da alma suja de restos, palavras espalhadas
num cansaço de sentidos. Volto, então, à primeira
hipótese. O amor. Mas sem o gastar de uma vez,
esperando que o tempo encha o copo até cima,
para que o possa erguer à luz do teu corpo
e veja, através dele, o teu rosto inteiro.



Nuno Júdice

poema



Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco



Mário Cesariny

Poema sobre a recusa



Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus dedos
se ter formado o afago
sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor
nem o interior da erva.

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva de ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda.



Maria Teresa Horta
Por um olhar, um mundo;
por um sorriso, um céu;
por um beijo...não sei
que te daria eu.



Gustavo Adolfo Bécquer

Húmido de beijos e de lágrimas,
ardor da terra com sabor a mar,
o teu corpo perdia-se no meu.

(Vontade de ser barco ou de cantar.)



Eugénio de Andrade

A boca

A boca,

onde o fogo
de um verão
muito antigo

cintila,

a boca espera

(que pode uma boca
esperar
senão outra boca?)

espera o ardor
do vento
para ser ave,

e cantar.



Eugénio de Andrade

sábado, 20 de agosto de 2011

O MUNDO É GRANDE



O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar.
O mar é grande e cabe
na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe
no breve espaço de beijar.



Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

A minha folha de papel virtual, embora me fuja,
transformou-se no meu mais secreto refúgio...

AS AVES



     Afluem às margens, jogam
     como se a água lhes pertencesse,
     pousam no meio dos arbustos
     como se tivessem todo o tempo! No

     entanto, sabem que as nuvens
     vão encher o céu; e que o norte
     irá enviar o vento frio que as
     há-de arrastar para sul, deixando
     atrás de si o silêncio
     nos campos. Mas pouco lhes importa
     isso, quando se juntam, e
     cantam a efemeridade do
     instante.



Nuno Júdice

ELEGIA



Nem os dias longos me separam da tua imagem.
Abro-a no espelho de um céu monótono, ou
deixo que a tarde a prolongue no tédio dos
horizontes. O perfil cinzento da montanha,
para norte, e a linha azul do mar, a sul,
dão-lhe a moldura cujo centro se esvazia
quando, ao dizer o teu nome, a realidade do
som apaga a ilusão de um rosto. Então, desejo
o silêncio para que dele possas renascer,
sombra, e dessa presença possa abstrair a
tua memória.



Nuno Júdice 

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Terror de te amar



Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo

Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa



Sophia de Mello Breyner Andresen 

Que nenhuma estrela queime o teu perfil



Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.



Sophia de Mello Breyner Andresen

O teu rosto



É o teu rosto ainda que eu procuro
Através do terror e da distância
Para a reconstrução de um mundo puro. 





Sophia de Mello Breyner Andresen

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Le renégat ou un esprit confus

Quelle bouillie, quelle bouillie ! Il faut mettre de l'ordre dans ma tête. Depuis qu'ils m'ont coupé la langue, une autre langue, je ne sais pas, marche sans arrêt dans mon crâne, quelque chose parle, ou quelqu'un, qui se tait soudain et puis tout recommence ô j'entends trop de choses  que  je  ne  dis  pourtant  pas, quelle bouillie, et si j'ouvre la bouche, c'est comme un bruit de cailloux remués. De l'ordre, un ordre, dit la langue, et elle parle d'autre chose en même temps, oui j'ai toujours désiré l'ordre. Du moins, une chose est sûre, j'attends le missionnaire qui doit venir me remplacer. Je suis là sur la piste, à une heure de Taghâsa, caché dans un éboulis de rochers, assis sur le vieux fusil. Le jour  se  lève  sur  le  désert,  il  fait  encore  très  froid,  tout  à  l'heure  il fera trop chaud, cette terre rend fou et moi, depuis tant d'années que je n'en sais plus le compte... Non,  encore un effort ! Le missionnaire doit arriver ce matin, ou ce soir. J'ai entendu dire qu'il viendrait avec un guide, il se peut qu'ils  n'aient qu'un seul chameau pour eux deux. J'attendrai, j'attends, le froid, le froid seul me fait trembler. Patiente encore, sale esclave !

                                                                             Albert Camus, L'exil et le royaume, (contes), 1957

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Pour toi mon amour - Jacques Prévert

Não Posso Adiar o Amor - António Ramos Rosa

Papel em branco

Continuo sem saber o que escrever nesta folha de papel virtual... Talvez, porque a minha vida, os meus pensamentos, as minhas vivências, os meus sentimentos, os meus ideais, são também virtuais... Daí esta minha dificuldade, acrescida, por se tratar de uma dificuldade real e não virtual. Real e virtual: dois lados da mesma moeda. Permanecem juntinhos, como um casal de namorados... Porém, e ao contrário destes, nunca se encontrarão, nunca partilharão uma vida, nunca se darão as mãos, nunca se beijarão... 
E tão somente por serem dois lados paralelos, duas linhas paralelas... que se reunirão um dia no infinito...  
A minha folha real de papel virtual está só, sem um único rabisco que a acompanhe...

domingo, 14 de agosto de 2011

Sables mouvants



Démons et merveilles
Vents et marées
Au loin déjà la mer s'est retirée
Et toi
Comme une algue doucement caressée par le vent
Dans les sables du lit tu remues en rêvant
Démons et merveilles
Vents et marées
Au loin déjà la mer s'est retirée
Mais dans tes yeux entrouverts
Deux petites vagues sont restées
Démons et merveilles
Vents et marées
Deux petites vagues pour me noyer.

Jacques Prévert

sábado, 13 de agosto de 2011

Poesia e Propaganda


Hei-de mandar arrastar com muito orgulho,

Pelo pequeno avião da propaganda

E no céu inocente de Lisboa,

Um dos meus versos, um dos meus mais sonoros versos:


E será um verso de amor...


Alexandre O'Neill




Já não me importo




Já não me importo
Até com o que amo ou creio amar.
Sou um navio que chegou a um porto
E cujo movimento é ali estar.

Nada me resta
Do que quis ou achei.
Cheguei da festa
Como fui para lá ou ainda irei

Indiferente
A quem sou ou suponho que mal sou,

Fito a gente
Que me rodeia e sempre rodeou,

Com um olhar
Que, sem o poder ver,
Sei que é sem ar
De olhar a valer.

E só me não cansa
O que a brisa me traz
De súbita mudança
No que nada me faz.

Fernando Pessoa

" Pedras no caminho?
Guardo todas.
Um dia vou fazer um castelo ... "

Fernando Pessoa

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Poema de Amor: Para Ti - Mia Couto


Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo

Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre

Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida

Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"

Vontade de Dormir



Fios d'ouro puxam por mim 
A soerguer-me na poeira - 
Cada um para o seu fim, 
Cada um para o seu norte... 

. . . . . . . . . . . . . . . 

- Ai que saudade da morte... 

. . . . . . . . . . . . . . . 

Quero dormir... ancorar... 

. . . . . . . . . . . . . . . 

Arranquem-me esta grandeza! 
- Pra que me sonha a beleza, 
Se a não posso transmigrar?... 

Mário de Sá-Carneiro, in 'Dispersão'

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Eu... qualquer coisa...


Eu triste sou calada
Eu brava sou estúpida
Eu lúcida sou chata
Eu gata sou esperta
Eu cega sou vidente
Eu carente sou insana
Eu malandra sou fresca
Eu seca sou vazia
Eu fria sou distante
Eu quente sou oleosa
Eu prosa sou tantas
Eu santa sou gelada
Eu salgada sou crua
Eu pura sou tentada
Eu sentada sou alta
Eu jovem sou donzela
Eu bela sou fútil
Eu útil sou boa
Eu à toa sou tua.
Martha Medeiros

A Minha Tragédia


Tenho ódio à luz e raiva à claridade 
Do sol, alegre, quente, na subida. 
Parece que a minh’alma é perseguida 
Por um carrasco cheio de maldade! 

Ó minha vã, inútil mocidade, 
Trazes-me embriagada, entontecida! ... 
Duns beijos que me deste noutra vida, 
Trago em meus lábios roxos, a saudade! ... 

Eu não gosto do sol, eu tenho medo 
Que me leiam nos olhos o segredo 
De não amar ninguém, de ser assim! 

Gosto da Noite imensa, triste, preta, 
Como esta estranha e doida borboleta 
Que eu sinto sempre a voltejar em mim! ... 


Florbela Espanca, in "Livro de Mágoas"

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Marketing


Aqui    a meu lado    o bom cidadão
escolheu Sagres
que é tudo    tudo cerveja
a pausa que refresca
a longa pausa de um longo cigarro King Size.
                                   atenção ao marketing.
Eu não gosto de cerveja
mas tenho de gostar que os outros gostem de cerveja
sobretudo da Sagres
para não contrariar os fabricantes de cerveja.
                                   atenção ao marketing.
Ninguém contraria os fabricantes de cerveja
ninguém contraria os fabricantes do Opel e da Super Silver
nem os fabricantes de alcatifas para panaceias
nem as panaceias nem os códigos e os édredons macios
nem as mensagens de natal dos estadistas
nem os negociantes de armas da Suíça
nem o homem de capa negra que virou as costas ao Palmolive.
Está tudo perfeito e deito-me no conforto de um Lusospuma
a ver as processões passar    mesmo sem anjos    mesmo sem anjos
que são agora selvagens e voam numa Harley.
Deito-me e obedeço aos fabricantes do Clarim
que é uma alta onda ou uma onda alta
sem esquecer as fitas do John Waine e a chama viva do Butagás
e se calhar sentir fome terei toda a frescura serrana
numa fatia de pão.bu
                                   atenção ao marketing.
Vitonizo-me    desodorizo-me    atravesso as ruas nas passagens dos peões
louvo quem me dizem para louvar e desconfio dos negros americanos
e dos blousons noirs    que não usam Lux
e não compram um frigorífico a prestações
e com o meu escudo invisível
portejo-me dos vírus subversivos
sou um bom cidadão    sou um bom cidadão
obedeço ao marketing    à General Motors e ao Pentágono.
Dantes    tinha problemas    era o odor corporal
e eu não o sabia até me higienizar seis vezes ao dia com o sabonete das estrelas
e as paradas marciais e os 5-3 do Eusébio à Coreia
e o talco Cadum    que ama demoradamente roucamente tepidamente os corpos que
                                                                                      [merecem ser amados...
Obedeço ao marketing    não contrario.
Ninguém contraria os fabricantes das ideias e os fabricantes do Fula
que é o da cor do sol
ninguém pisa os riscos brancos do tráfego
nem chama os bombeiros sem concorrer ao sorteio
concorro    concorro    e vejo nos sinaleiros o pai natal vestido de Scotchgard
ninguém sai do emprego antes de assinar o ponto a horas fixas
e gastar o dinheiro da semana sábado à tarde
no Dardo    que é tudo a prestações e é mesmo em frente da Música no Coração.
Fazendo Portugal mais alegre com o folclore da TV e a tinta Robbialac
não contrario    obedeço    obedeço    e meto os meninos na cama
quando me dizem vamos dormir.
                                   atenção ao marketing.
Sagres é uma boa cerveja
e eu acabarei por gostar da Sagres
como gosto do Rexina.
Sagres é a pausa que refresca e tem vitaminas
todas as bebidas da televisão têm vitaminas
mesmo as do programa literário    que é detergente
e eu uso-as e sou um cidadão perfeito
e até já consigo adormecer com hipnóticos
depois de tomar o Tofa descafeinado
e no Verão visto calções de banho de fibras sintéticas
para me banhar na Torralta
cidadão perfeito perfeitamente bronzeado com Ambre Solaire.
Também vou arear as caçarolas e os nervos e os miolos
com um pó azul de que não me lembra o nome
não me lembra mas a culpa já não é minha
porque na mesma noite
massajado com Aqua Velva
fiz a barba com Gillette, e Schick e Nacet
e fui não sei aonde sempre com a mesma lâmina
e oito dias depois (eu era actor ou toureiro?)
a lâmina ainda me escanhoou mais uma barba
antes de eu descer no aeroporto
onde me esperava um agente do marketing.
Os produtores viram-me à descida do avião
primeiro julgaram que era o filho da Sophia Loren
ou o Onassis    mas era eu
e gostaram da minha barba bem feita.
(Da barba bem feita
ou do casaco Dralon que não se amarrotara
durante a viagem da Polinésia para Lisboa?)
Confesso que já não me lembra    mas a culpa não é minha
pois na mesma noite
fui o homem de não sei quê que marca o rumo
por vestir regras ou camisas ou calças que não enrugam
e fartei-me de assistir a discursos e a inaugurações
e fartei-me de comer chocolates Regina e pescada congelada
e de lavar a roupa com Ajax e com o Rino
e de me banhar com Omo ou seja uma onda de brancura
e fiz-me mecânico de automóveis
só para que o cavaleiro da armadura branca
me tocasse com a sua lança mágica
e me pusesse branco branco branco
três vezes branco como as páginas do Reader’s
de cérebro irrepreensivelmente lexivizado
pelos locutores da televisão    pela oratória dos políticos
e passado a ferro com um ferro eléctrico automático
que talvez fosse – ou não? – uma enceradora Philips.
Tudo coisas admiráveis e desesperadamente necessárias
que eu devo ao marketing
e me são cozinhadas num abrir e fechar de olhos
nas palavras de pressão
de todo o bom cidadão.
E no intervalo bebi café puro    o do gostinho especial
Sical Sical que é um luxo verdadeiro
Por pouco dinheiro.
Vitonizadi    esterilizado    comprando e concorrendo
esqueci-me de amar    do amor    das árvores e do rio
esqueci-me de mim    tão entretido estava a admirar a Lisnave
esqueci-me do rio e dos barcos
e da saudade de pedra do Fernando Pessoa
e esqueci-me de sonhar que era marinheiro.
Concorra    concorra    foi isso que não reparei
que uma rapariga cortou as veias
talves fosse com uma Diplomatic
que tem o fio e o silvo de uma espada a degolar avestruzes.
No programa só havia bombeiros
nem uma rapariga a cortar as veias (não era a Caprília)
nem o rio nem o amor nem a raiva da Venezuela.
Se mágoa sentia era a de ter esquecido
dar murros no espião da Missão Impossível
                                   (atenção ao marketing)
e já não saí de casa para ver o rio
só pelo gosto de me aquecer com um Ignis.
E na mesma noite    noite boa    noite branca
fumei Estoril    Valetes    Kayakes e bebi Compal
depois da Salus e da Schweppes
fumei quilómetros e quilómetros de prazer
quilómetros e mais quilómetros – há um Ford no meu futuro –
mais facturas mais fomes mais prazer
e agora já não sei qual dos cigarros com filtro
me soube melhor.
Foram todos    foram todos de certeza
pois se me dizem que preciso de Omo
do Ajax    do Estoril    do Dralon
do esquentador e das alcatifas sem nódoas
não me preocupo    não te preocupes
Meraklon não preocupa ninguém
mando para o diabo o amor e o rio e a rapariga que cortou as veias
não me preocupo    não me preocupo
digo pois pois ao Jota Pimenta e ao Escort
e hei-de virar-me do avesso para os possuir.
Os corpos que merecem ser amados merecem o talco Cadum.
Numa onda de brancura obedeço ao marketing. Sou um bom cidadão.
E na mesma noite
vi umas bombas que caíam muito ao longe
numa lonjura mais longe que a Lua
onde as pessoas podiam estar quietas a fumar Marialvas
e a lavarem-se com Rino    que lava lava lava
lava três vezes mais    lava ou mata que se farta
e me ajuda a ser bom cidadão.
                                   atenção ao marketing.
Vi uns homens a inaugurarem estátuas
e vi fardas e paradas e conferências
e crianças a sorrir
para os homens sorridentes que inauguravam estátuas
e vi homens que falavam e pensavam por mim
a escolherem por mim o bom e o mau
de modo a que eu não possa ser tentado
a confundir o mau com o bom ou vice-versa ou vice-versa.
Deitado no conforto de um Lusospuma
vi os porcalhões dos hippies nas ruas de Estocolmo
bem longe    nas ruas de Estocolmo
mesmo a pedirem uns safanões
dos homens que acariciam crianças
e têm todas as verdades na mão
só para que eu seja um bom cidadão.
É isto: marco o rumo. As minhas cuecas marcam o rumo.
Preciso e gosto de uma data de coisas
e só agora o sei.
Menos da Sagres. Mas acabarei por gostar.
Ninguém contraria o marketing por muito tempo.
Ninguém contraria os fabricantes de bem fazer
o bom cidadão.
                                   E tudo graças ao marketing.