terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Deita-te aqui - esta noite, dentro de mim


Deita-te aqui - esta noite, dentro de mim,
está tanto frio. Se fores capaz, cobre-me de
beijos: talvez assim eu possa esquecer para
sempre quem me matou de amor, ou morrer
de uma vez sem me lembrar. Isso, abraça-me

também: onde os teus dedos tocarem há uma
ferida que o tempo não consegue transportar.
Mas fecho os olhos, se tu não te importares, e
finjo que essa dor é uma mentira. Claro, o que

quiseres está bem - tudo, ou qualquer coisa,
ou mesmo nada serve, desde que o frio fique
no laço das tuas mãos e não regresse ao corpo
que te deixo agora sepultar. Não sentes frio, tu,

dentro de mim? Nunca nevou de madrugada no
teu quarto? Que país é o teu? Que idade tens?
Não, prefiro não saber como te chamas.

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in POESIA REUNIDA (Quetzal, 2012)

domingo, 26 de outubro de 2014

Pergunta-me


Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue

Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos

Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente

Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer

MIA COUTO, in RAÍZ DE ORVALHO E OUTROS POEMAS, (Caminho, 1999)

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Dois amantes felizes não têm fim nem morte


Dois amantes felizes não têm fim nem morte,
nascem e morrem tanta vez enquanto vivem,
são eternos como é a natureza.


Pablo Neruda

O poeta pede a seu amor que lhe escreva


Amor de minhas entranhas, morte viva,
em vão espero tua palavra escrita
e penso, com a flor que se murcha,
que se vivo sem mim quero perder-te.
O ar é imortal. A pedra inerte
nem conhece a sombra nem a evita.
Coração interior não necessita
o mel gelado que a lua verte.

Porém eu te sofri. Rasguei-me as veias,
tigre e pomba, sobre tua cintura
em duelo de mordiscos e açucenas.
Enche, pois, de palavras minha loucura
ou deixa-me viver em minha serena
noite da alma para sempre escura.

Federico Garcia Lorca

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

COMEÇO A CONHECER-ME. NÃO EXISTO.


Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,
Ou metade desse intervalo, porque também há vida...
Sou isso, enfim...
Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulho de chinelas no corredor.
Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.
É um universo barato.

ÁLVARO DE CAMPOS
Poesias
Heterónimo de Fernando Pessoa

terça-feira, 7 de outubro de 2014

INCONFESSÁVEL


...e pelas minhas mãos
desfilam todos os desejos ardentes
que o teu olhar silencioso desvendou
num querer inconfessável...

JOÃO CARLOS ESTEVES, in INVENTEI-TE AS MANHÃS (Chiado Ed. 2013)

domingo, 28 de setembro de 2014

Evadir-me, esquecer-me


Evadir-me, esquecer-me, regressar
À frescura das coisas vegetais,
Ao verde flutuante dos pinhais
Percorridos de seivas virginais
E ao grande vento límpido do mar.

Sophia de Mello Breyner Andresen
Obra Poética I

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

PRETEXTOS PARA FUGIR DO REAL


A uma luz perigosa como água
De sonho e assalto
Subindo ao teu corpo real
Recordo-te
E és a mesma
Ternura quase impossível
De suportar
Por isso fecho os olhos
(O amor faz-me recuperar incessantemente o poder da
provocação. É assim que te faço arder triunfalmente
onde e quando quero. Basta-me fechar os olhos)
Por isso fecho os olhos
E convido a noite para a minha cama
Convido-a a tornar-se tocante
Familiar concreta
Como um corpo decifrado de mulher
E sob a forma desejada
A noite deita-se comigo
E é a tua ausência
Nua nos meus braços
Experimento um grito
Contra o teu silêncio
Experimento um silêncio
Entro e saio
De mãos pálidas nos bolsos
Assobio às pequenas esperanças
Que vêm lamber-me os dedos
Perco-me no teu retrato
Horas seguidas
E ao trote do ciúme deito contas
Deito contas à vida.

Alexandre O'Neill

sábado, 13 de setembro de 2014

Verdes são os campos


Verdes são os campos,
De cor de limão:
Assim são os olhos
Do meu coração.

Campo, que te estendes
Com verdura bela;
Ovelhas, que nela
Vosso pasto tendes,
De ervas vos mantendes
Que traz o Verão,
E eu das lembranças
Do meu coração.

Gados que pasceis
Com contentamento,
Vosso mantimento
Não no entendereis;
Isso que comeis
Não são ervas, não:
São graças dos olhos
Do meu coração.

LUÍS VAZ DE CAMÕES, in LÍRICA COMPLETA (Imprensa Nacional, Lisboa - 1986)

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Sou a Tua Casa


Sou a tua casa, a tua rua, a tua segurança, o teu destino. Sou a maçã que comes e a roupa que vestes. Sou o degrau por onde sobes, o copo por onde bebes, o teu riso e o teu choro, o teu frio e a tua lareira. O pedinte que ajudas, o asilo que te quer acolher. Sou o teu pensamento, a tua recordação, a tua vontade. E também o artesão que para ti trabalha, o medo que te perturba e o cão que te guia quando entras pela noite. Sou o sítio onde descansas, a árvore que te dá sombra, o vento que contigo se comove. Sou o teu corpo, o teu espírito, o teu brilho, a tua dúvida. Sou a tua mãe, o teu amante, o marfim dos teus dentes. E sou, na luz do outono, o teu olhar. Sou a tua parteira e a tua lápide. Os teus vinte anos. O coração sepultado em ti. Sou as tuas asas, a tua liberdade, e tudo o que se move no teu interior. Sou a tua ressaca, o teu transtorno, o relógio que mede o tempo que te resta. Sou a tua memória, a memória da tua memória, o teu orgulho, a fecundação das tuas entranhas, a absolvição dos teus pecados. O teu amuleto e a tua humildade. Sou a tua cobardia, a tua coragem, a força com que amas. Sou os teus óculos e a tua leitura. A tua música preferida, a tua cor preferida, o teu poema preferido. Sou o que significas para mim, a ternura que desagua nos teus dedos, o tamanho das tuas pupilas antes e depois de fazer amor. Sou o que sou em ti e o que não podes ser em mim. Sou uma só coisa. E duas coisas diferentes.

Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

EM FRENTE DO MAR


Pergunto a mim próprio em que noite nos perdemos?,
que desencontro nos levou de um a outro lado das
nossas vidas? e que caminhos evitámos para que os nossos
passos se não voltassem a cruzar? Mas as perguntas que
te faço, hoje, já não têm resposta. Sento-me contigo,
nesta mesa da memória, e partilho o prato da solidão. Tu,
na cadeira vazia onde te imagino, sacodes o cabelo com
um aceno de ironia. E dou-te razão: as coisas podiam
ter sido de outro modo. Não te disse as palavras que
esperaste; e havia o mar, com as suas ondas, nessa tarde
em que me puxaste para longe da cidade, como se
a noite não nos obrigasse a voltar, quando o horizonte
se apagou a nossa frente. Depois disso, nenhuma
pergunta tem resposta. O que é absurdo há-de continuar
absurdo, como o horizonte não se voltou a abrir,
trazendo de volta os teus olhos que me pediam que
os olhasse, até que a noite me impedisse de o fazer,

NUNO JÚDICE, in O ESTADO DOS CAMPOS (Pub. Dom Quixote, 2003)

sábado, 23 de agosto de 2014

Noites sem nome, do tempo desligadas


Noites sem nome, do tempo desligadas,
Solidão mais pura do que o fogo e a água,
Silêncio altíssimo e brilhante.

As imagens vivem e vão cantando libertadas
E no secreto murmurar de cada instante
Colhi a absolvição de toda a mágoa.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in POESIA (1944), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

terça-feira, 19 de agosto de 2014

OLHOS POSTOS NA TERRA


Olhos postos na terra, tu virás
no ritmo da própria primavera,
e como as flores e os animais
abrirás nas mãos de quem te espera.

EUGÉNIO DE ANDRADE, in AS MÃOS E OS FRUTOS (Fund. Eugénio de Andrade, 2000)

domingo, 17 de agosto de 2014

[NOITES LOUCAS]


Noites loucas! Noites loucas!
Comigo, contigo
Tão loucas seriam
O nosso desejo!

Fúteis os Ventos
Para um coração atracado,
Deixemos a bússola,
E o mapa abandonado.

Remar no Éden!
Ah! O mar!
Tomara eu esta noite
Em ti me amarrar!

EMILY DICKINSON, in COMPLETE POEMS OF EMILY DICKINSON (Little, Brown & Co., 1961), tradução de Carlos Campos (dedicada a MARIA TERESA HORTA)

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Sabes por vezes queria beijar-te


Sabes por vezes queria beijar-te. Sei que consentirias.
Mas se nos tivéssemos dado um ao outro ter-nos-íamos separado porque os beijos apagam o desejo quando consentidos.
Foi melhor sabermos quanto nos queríamos, sem ousarmos sequer tocar nossos corpos.
Hoje tenho pena. Parto com essa ferida.
Tenho pena de não ter percorrido teu corpo como percorro os mapas, com os dedos teria viajado em ti do pescoço às mão da boca ao sexo.
Tenho pena de nunca ter murmurado teu nome no escuro.
Acordado perto de ti.
As noites teriam sido de ouro e as mãos teriam guardado o sabor do teu corpo.

Al Berto

terça-feira, 22 de julho de 2014

Cada dia


Cada dia é mais evidente que partimos,
Sem nenhum possível regresso ao que fomos,
Cada dia as horas se despem mais do alimento:
Não há saudade nem terror que baste.

Sophia de Mello Breyner Andresen

sexta-feira, 18 de julho de 2014

O inominado


se eu não fizer
assim (como hei-de
dizer?) amor
sim amor contigo
muitas (meudeus!) vezes
com preguicinhas boas
tolices ao ouvido
revoadas de beijos
repentes dentes
olhares pestanejados com carinho
oh
nem terei nome
serei "o coiso" "esse aí" o "como
é que ele se chama?"
o que dorme singelo
o que ninguém ( ai ai) ama.

Alexandre O'Neill in "Entre a cortina e a vidraça",

domingo, 13 de julho de 2014

I


Preciso escrever-te, ou escrever-me, falar-te ou dizer-te através de mim e tudo isso num tempo intemporal, em que escrevo para a frente apenas porque algo nos faz crer que a vida, ou melhor, que um dia atrás do outro é ir para a frente, sabe-se lá... mas o meu mergulho é para trás, no meu tempo que foi de descoberta, um tempo que se desdobra a partir de outro e de outro... porque é lá atrás que te vou encontrar, é apenas tão-somente lá atrás que te posso resgatar, porque a ideia do amanhã contigo foi-se-me (ou quase); foi-se-me no dia em que abriste os braços para já não me abraçar.
E agora, vou mergulhar, mergulhar num mar de maré cheia, onde toco o que lá vive, um mar que está cá dentro, dentro de mim, onde te vejo e onde navegam todos os afectos que me unem a ti – é neles que vou buscar a forma que dou a estas palavras, com que quero falar-te, dizer-te, baixinho.

MARIA JOÃO SARAIVA, in A DOR QUE ME DEIXASTE (Trilhos ed., 2ª ed, 2011)

sábado, 12 de julho de 2014

Para não Deixar de Amar-te Nunca


Saberás que não te amo e que te amo
pois que de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa do silêncio,
o fogo tem a sua metade de frio.

Amo-te para começar a amar-te,
para recomeçar o infinito
e para não deixar de amar-te nunca:
por isso não te amo ainda.

Amo-te e não te amo como se tivesse
nas minhas mãos a chave da felicidade
e um incerto destino infeliz.

O meu amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quando não te amo
e por isso te amo quando te amo.

Pablo Neruda, in "Cem Sonetos de Amor"

Como Ser Livre


Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo - quando o homem se ergue a este píncaro, está livre, como em todos os píncaros, está só, como em todos os píncaros, está unido ao céu, a que nunca está unido, como em todos os píncaros.

Fernando Pessoa, 'Teoria da Heteronímia'

terça-feira, 1 de julho de 2014

Abraço


De repente deu vontade de te dar um abraço...
Uma vontade de entrelaço, de proximidade.
de amizade .. sei lá..
Talvez um aconchego que enfatize a vida e
amenize as dores...
Que fale sobre os amores,
que seja teimoso e ao mesmo tempo forte.
Deu vontade de poder rever saudade
de um abraço.
Um abraço que eternize o tempo
e preencha todo espaço
mas que faça lembrar do carinho,
que surge devagarzinho
da magia da união dos corpos, das auras..sei lá..
Lembrar do calor das mãos
acariciando as costas
a dizer..
"estou aqui."
Lembrar do trançar dos braços envolventes e seguros afirmando
"estou com você"..
Lembrar da transfusão de forças
com a suavidade do momento ..sei lá..
abraço...abraço...abraço...
abraço...abraço..abraço...
abraço...abraço...abraço...
O que importa é a magia deste abraço!
A fusão de energia que harmoniza,
integra tudo, e que se traduz
no cosmo, no tempo e no espaço.
Só sei que agora deu vontade desse abraço!!
Que afaste toda e qualquer angústia.
Que desperte a lágrima da alegria,
e acalme o coração..
Que traduza a amizade, o amor e a emoção.
E para um abraço assim só pude pensar em você....
nessa sua energia,
nessa sua sensibilidade
que sabe entender o por quê...
dessa vontade desse abraço.

Vinicius de Moraes

segunda-feira, 30 de junho de 2014

TARDE


O que eu queria dizer-te nesta tarde
Nada tem de comum com as gaivotas

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in NO TEMPO DIVIDIDO (1ª ed., Guimarães Ed., 1954), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

Nascer Todas as Manhãs


Apesar da idade, não me acostumar à vida. Vivê-la até ao derradeiro suspiro de credo na boca. Sempre pela primeira vez, com a mesma apetência, o mesmo espanto, a mesma aflição. Não consentir que ela se banalize nos sentidos e no entendimento. Esquecer em cada poente o do dia anterior. Saborear os frutos do quotidiano sem ter o gosto deles na memória. Nascer todas as manhãs.

Miguel Torga, in Diário (1942)

domingo, 29 de junho de 2014

COMO EU QUERIA


Quero ler-te
Lentamente
Verso a verso
Como se fosses poesia.

Quero sentir-te
Lentamente
Gota a gota
Como se fosses maresia.

Respirares-me
Boca a boca
Lentamente

Como eu queria.

JOSÉ GABRIEL DUARTE, in NO OUTRO LADO DE MIM (Chiado Ed., 2012)

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Há mulheres que trazem o mar nos olhos


Há mulheres que trazem o mar nos olhos
Não pela cor
Mas pela vastidão da alma
E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos
Ficam para além do tempo
Como se a maré nunca as levasse
Da praia onde foram felizes
Há mulheres que trazem o mar nos olhos
pela grandeza da imensidão da alma
pelo infinito modo como abarcam as coisas e os Homens...
Há mulheres que são maré em noites de tardes
e calma

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in OBRA POÉTICA (Ed. Caminho, 2010)

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Ver-te é como ter à minha frente todo o tempo

Ver-te é como ter á minha frente todo o tempo
é tudo serem para mim estradas largas
estradas onde passa o sol poente
é o tempo parar e eu próprio duvidar mas sem pensar
se o tempo existe se existiu alguma vez
e nem mesmo meço a devastação do meu passado

Ruy Belo

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Comecei a amar-te no dia em que te abandonei.


Foram as palavras dele quando, dez anos depois, a encontrou por mero acaso no café. Ela sorriu, disse-lhe “olá, amo-te” mas os lábios só disseram “olá, está tudo bem?”. Ficaram horas a conversar, até que ele, nestas coisas era sempre ele a perder a vergonha por mais vergonha que tivesse naquilo que tinha feito (como é que fui deixar-te? como fui tão imbecil ao ponto de não perceber que estava em ti tudo o que queria?), lhe disse com toda a naturalidade do mundo que queria levá-la para a cama. Ela primeiro pensou em esbofeteá-lo e depois amá-lo a tarde toda e a noite toda, de seguida pensou em fugir dali e depois amá-lo a tarde toda e a noite toda, e finalmente resolveu não dizer nada e, lentamente, a esconder as lágrimas por dentro dos olhos, abandonou-o da mesma maneira que ele a abandonara uma década antes. Não era uma vingança nem sequer um castigo – apenas percebeu que estava tão perdida dentro do que sentia que tinha de ir para longe dali para ir para dentro de si. Pensou que provavelmente foi isso o que lhe aconteceu naquele dia longínquo em que a deixara, sozinha e esparramada de dor, no chão, para nunca mais voltar.

De tudo o que amo és tu o que mais me apaixona.

Foram as palavras dela, poucos minutos depois, quando ele, teimoso, a seguiu até ao fundo da rua em hora de ponta. Estavam frente a frente, toda a gente a passar sem perceber que ali se decidia o futuro do mundo. Ele disse: “casei-me com outra para te poder amar em paz”. Ela disse: “casei-me com outro para que houvesse um ruído que te calasse em mim”. Na verdade nem um nem outro disseram nada disso porque nem um nem outro eram poetas. Mas o que as palavras de um (“amo-te como um louco”) e as palavras de outro (“amo-te como uma louca”) disseram foi isso mesmo. A rua parou, então, diante do abraço deles.

Pedro Chagas Freitas

domingo, 8 de junho de 2014

BEIJO


Não quero o primeiro beijo:
basta-me
o instante antes do beijo.

Quero-me
corpo ante o abismo,
terra no rasgão do sismo.

O lábio ardendo
entre tremor e temor,
o escurecer da luz
no desaguar dos corpos:
o amor
não tem depois.

Quero o vulcão
que na terra não toca:
o beijo antes de ser boca.

MIA COUTO, TRADUTOR DE CHUVAS (Caminho, 2011)

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Ternura


Desvio dos teus ombros o lençol,
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do sol,
quando depois do sol não vem mais nada...

Olho a roupa no chão: que tempestade!
Há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
onde uma tempestade sobreveio...

Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo...

Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!

David Mourão-Ferreira, in "Infinito Pessoal"

sábado, 31 de maio de 2014

Com o silêncio do punhal num peito


Com o silêncio do punhal num peito,
O silêncio do sangue a converter
Em fio breve o coração desfeito
Que nas pedras acaba de morrer,
Vive em mim o teu nome, tão perfeito
Que mais ninguém o pode conhecer!
É a morte que vivo e não aceito;
É a vida que espero não perder.

Viver a vida e não viver a morte;
Procurar noutros olhos a medida,
Vencer o tempo, dominar a sorte,
Atraiçoar a morte com a vida!

Depois morrer de coração aberto
E no sangue o teu nome já liberto…

Alexandre O'Neill

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Soneto da Fidelidade


De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Vinicius de Moraes

sábado, 19 de abril de 2014

SEM DEPOIS


Todas as vidas gastei
para morrer contigo.

E agora
esfumou-se o tempo
e perdi o teu passo
para além da curva do rio.

Rasguei as cartas.
Em vão: o papel restou intacto.
Só os meus dedos murcharam, decepados.

Queimei as fotos.
Em vão: as imagens restaram incólumes
e só os meus olhos se desfizeram, redondas cinzas.

Com que roupa
vestirei minha alma
agora que já não há domingos?

Quero morrer, não consigo.
Depois de te viver
não há poente
nem o enfim de um fim.

Todas as mortes gastei
para viver contigo.

MIA COUTO, in IDADES CIDADES DIVINDADES (Caminho, 2007)

domingo, 6 de abril de 2014

[EIS-ME]


Eis-me
Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses
Para ficar sozinha ante o silêncio
Ante o silêncio e o esplendor da tua face

Mas tu és de todos os ausentes o ausente
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo em que não moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silêncio

Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes o ausente

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in LIVRO SEXTO (Moraes Ed, 1962) e OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

terça-feira, 25 de março de 2014

Cada um Cumpre o Destino que lhe Cumpre


Cada um cumpre o destino que lhe cumpre,
E deseja o destino que deseja;
Nem cumpre o que deseja,
Nem deseja o que cumpre.
Como as pedras na orla dos canteiros
O Fado nos dispõe, e ali ficamos;
Que a Sorte nos fez postos
Onde houvemos de sê-lo.
Não tenhamos melhor conhecimento
Do que nos coube que de que nos coube.
Cumpramos o que somos.
Nada mais nos é dado.

Ricardo Reis, in "Odes"
Heterónimo de Fernando Pessoa

segunda-feira, 24 de março de 2014

Deita-te aqui - esta noite, dentro de mim


Deita-te aqui - esta noite, dentro de mim,
está tanto frio. Se fores capaz, cobre-me de
beijos: talvez assim eu possa esquecer para
sempre quem me matou de amor, ou morrer
de uma vez sem me lembrar. Isso, abraça-me

também: onde os teus dedos tocarem há uma
ferida que o tempo não consegue transportar.
Mas fecho os olhos, se tu não te importares, e
finjo que essa dor é uma mentira. Claro, o que

quiseres está bem - tudo, ou qualquer coisa,
ou mesmo nada serve, desde que o frio fique
no laço das tuas mãos e não regresse ao corpo
que te deixo agora sepultar. Não sentes frio, tu,

dentro de mim? Nunca nevou de madrugada no
teu quarto? Que país é o teu? Que idade tens?
Não, prefiro não saber como te chamas.

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in POESIA REUNIDA (Quetzal, 2012)

sábado, 8 de março de 2014

PODIA


Podia dizer-te que não me importo
Podia fingir que fugi
Ou que estou morto.
Podia adiar para outro dia
Invocar uma qualquer lei
Dizer-te que não sei
Ou fiquei sem bateria.

Com a verdade mais pura
A única verdade
A única que dura
Faria a minha despedida
A promessa de mil abraços
E uma palavra sofrida

Podia dizer-te que volto
E seria breve
Como um poeta escreve
Livre e solto.

(E tu, minha vida, acreditas
Nas palavras que não digo?
Será o silêncio castigo?
Será em silêncio que gritas?)

Podia dizer-te que são pequenas
As saudades do teu sorrir
Mas seriam palavras apenas
E seria mentir.

CARLOS CAMPOS, in RIO DE DOZE ÁGUAS (Coisas de Ler, Ed., 2012)

quinta-feira, 6 de março de 2014

Súplica


Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.

Miguel Torga

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

POEMA SEPTUAGÉSIMO SÉTIMO


Não te peço perdão. E peço-te
que não me peças perdão. Faz
como os alfarrabistas para quem
não interessam as qualidades de uma obra
mas, e apenas, a sua raridade. Não
me julgues ainda. Deixa que o tempo
se encarregue desse julgamento. Hoje
e amanhã não são o mesmo dia. Todos
os passados já foram futuro, e o futuro
é com esses passados que tem
de construir-se. O próximo futuro.
Porque o futuro longínquo será a soma
dos futuros mais próximos, isto é,
a soma dos passados que hão-de
vir, sem pedir perdão a um futuro
que, exactamente por ser futuro,
não se pode saber se chegará.

JOAQUIM PESSOA, in GUARDAR O FOGO (Ed. Esgotadas, 2013)

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Cet amour


Cet amour
Si violent
Si fragile
Si tendre
Si désespéré
Cet amour
Beau comme le jour
Et mauvais comme le temps
Quand le temps est mauvais
Cet amour si vrai
Cet amour si beau
Si heureux
Si joyeux
Et si dérisoire
Tremblant de peur comme un enfant dans le noir
Et si sûr de lui
Comme un homme tranquille au millieu de la nuit
Cet amour qu faisait peur aux autres
Qui les faisait parler
Qui les faisait blêmir
Cet amour guetté
Parce que nous le guettions
Traqué blessé piétiné achevé nié oublié
Parce que nous l’avons traqué blessé piétiné achevé nié oublié
Cet amour tout entier
Si vivant encore
Et tout ensoleillé
C’est le tien
C’est le mien
Celui qui a été
Cette chose toujours nouvelle
Et qui n’a pas changé
Aussi vrai qu’une plante
Aussi tremblante qu’un oiseau
Aussi chaude aussi vivant que l’été
Nous pouvons tous les deux
Aller et revenir
Nous pouvons oublier
Et puis nous rendormir
Nous réveiller souffrir vieillir
Nous endormir encore
Rêver à la mort,
Nous éveiller sourire et rire
Et rajeunir
Notre amour reste là
Têtu comme une bourrique
Vivant comme le désir
Cruel comme la mémoire
Bête comme les regrets
Tendre comme le souvenir
Froid comme le marble
Beau comme le jour
Fragile comme un enfant
Il nous regarde en souriant
Et il nous parle sans rien dire
Et moi je l’écoute en tremblant
Et je crie
Je crie pour toi
Je crie pour moi
Je te supplie
Pour toi pour moi et pour tous ceux qui s’aiment
Et qui se sont aimés
Oui je lui crie
Pour toi pour moi et pour tous les autres
Que je ne connais pas
Reste là
Lá où tu es
Lá où tu étais autrefois
Reste là
Ne bouge pas
Ne t’en va pas
Nous qui sommes aimés
Nous t’avons oublié
Toi ne nous oublie pas
Nous n’avions que toi sur la terre
Ne nous laisse pas devenir froids
Beaucoup plus loin toujours
Et n’importe où
Donne-nous signe de vie
Beaucoup plus tard au coin d’un bois
Dans la forêt de la mémoire
Surgis soudain
Tends-nous la main
Et sauve-nous.

Jacques Prévert

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Em nome


Em nome da tua ausência
Construí com loucura uma grande casa branca
E ao longo das paredes te chorei.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in DUAL (1ª ed., Lisboa, Moraes Editores, 1972), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Dia 242.


Houve uma ilha em ti que eu conquistei.
Uma ilha num mar de solidão.
Tinha um nome a ilha onde morei.
Chamava-se essa ilha Coração.

Que saudades do tempo que passei.
Nenhum desses momentos foi em vão.
Do teu corpo, de ti, já nada sei.
Também não sei da ilha, não sei, não.

Só sei de mim, coberto de raízes.
Enterrei os momentos mais felizes.
Vivo agora na sombra a recordar.

A ilha que eu amei já não existe.
Agora amo o céu quando estou triste
por não saber do coração do mar.

JOAQUIM PESSOA, in ANO COMUM (Litexa, 2011, Editora Edições Esgotadas, 2ª ed, 2013)

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

QUARTO DE LUA


Disseste-me um segredo baixinho
Envolveste-me em noites de luar amigo
Num odor de palavra jasmim
Em convites de seda doce
Em sorrisos de cantos (e)ternos
Em maresias de noites simples
Em estendais de poesia livre
Em flor constante… que partes
Na chegada próxima…
Onde desespero
E já te aguardo!

JOSÉ LUÍS OUTONO, in MAR DE SENTIDOS (Edições Vieira da Silva, 2012)

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Dá-me a tua mão


Dá-me a tua mão.

Deixa que a minha solidão
prolongue mais a tua
- para aqui os dois de mãos dadas
nas noites estreladas,
a ver os fantasmas a dançar na lua.

Dá-me a tua mão, companheira,
até o Abismo da Ternura Derradeira.

JOSÉ GOMES FERREIRA, in POETA MILITANTE I (Dom Quixote, 1999)

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Ainda mais acolhedora do que o dia


Ainda mais acolhedora do que o dia, a noite apaga todas as contradições. E, coberta por um manto de estrelas dum resplendor de festa, a alma, em vez de adormecer como de costume, sonha.

MIGUEL TORGA, in PORTUGAL (1950), in ENSAIOS E DISCURSOS (Círculo de Leitores, 2002)

sábado, 25 de janeiro de 2014

A SECRETA VIAGEM


No barco sem ninguém, anónimo e vazio,
ficámos nós os dois, parados, de mão dada ...
Como podem só os dois governar um navio?
Melhor é desistir e não fazermos nada!
Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,
tornamo-nos reais, e de maneira, à proa...
Que figuras de lenda! Olhos vagos, perdidos...
Por entre nossas mâos, o verde mar se escoa...
Aparentes senhores de um barco abandonado,
nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem...
Aonde iremos ter? - Com frutos e pecado,
se justifica, enflora, a secreta viagem!
Agora sei que és tu quem me fora indicada.
O resto passa, passa... alheio aos meus sentidos.
- Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,
a eternidade é nossa, em madeira esculpidos!

DAVID MOURÃO-FERREIRA, in A SECRETA VIAGEM (1ª ed., Ed. Távola Redonda, 1950), in OBRA POÉTICA (Ed. Presença, 5ª ed, 2006)

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

PALAVRAS MINHAS


Palavras que disseste e já não dizes,
palavras como um sol que me queimava,
olhos loucos de um vento que soprava
em olhos que eram meus, e mais felizes.

Palavras que disseste e que diziam
segredos que eram lentas madrugadas,
promessas imperfeitas, murmuradas
enquanto os nossos beijos permitiam.

Palavras que dizias, sem sentido,
sem as quereres, mas só porque eram elas
que traziam a calma das estrelas
à noite que assomava ao meu ouvido...

Palavras que não dizes, nem são tuas,
que morreram, que em ti já não existem
- que são minhas, só minhas, pois persistem
na memória que arrasto pelas ruas.

PEDRO TAMEN, in TÁBUA DAS MATÉRIAS - POESIA 1956-1991 (Tertúlia, 1991)

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Esgotei o meu mal


Esgotei o meu mal, agora
Queria tudo esquecer, tudo abandonar
Caminhar pela noite fora
Num barco em pleno mar.

Mergulhar as mãos nas ondas escuras
Até que elas fossem essas mãos
Solitárias e puras
Que eu sonhei ter.

Sophia de Mello Breyner Andersen

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

sábado, 18 de janeiro de 2014

PENUMBRA


Na penumbra dos ombros é que tudo começa
quando subitamente só a noite nos vê
E nos abre uma porta nos aponta uma seta

para sermos de novo quem deixámos de ser

DAVID MOURÃO-FERREIRA, in OBRA POÉTICA (Ed. Presença, 1988)

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

O BEIJO


Um beijo em lábios é que se demora
e tremem no abrir-se a dentes línguas
tão penetrantes quanto línguas podem.
Mais beijo é mais. É boca aberta hiante
para de encher-se ao que se mova nela.
É dentes se apertando delicados.
É língua que na boca se agitando
irá de um corpo inteiro descobrir o gosto
e sobretudo o que se oculta em sombras
e nos recantos em cabelos vive.
É beijo tudo o que de lábios seja
quanto de lábios se deseja.

(19/5/1971)

JORGE DE SENA, in ANTOLOGIA POÉTICA (Asa, 1999)

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Cada dia é mais evidente que partimos


Cada dia é mais evidente que partimos
Sem nenhum possível regresso no que fomos,
Cada dia as horas se despem mais do alimento:
Não há saudades nem terror que baste.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in CORAL (1950) e OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

DESENCONTRO 1


Não ter morada
Habitar
Como um beijo
Entre os lábios
Fingir-se ausente
E suspirar
(o meu corpo
não se reconhece na espera)
percorrer com um só gesto
o teu corpo
e beber
toda a ternura
para refazer
o rosto
em que desapareces
o abraço
em que desobedeces

(1979)

MIA COUTO, in RAIZ DE ORVALHO E OUTROS POEMAS (Caminho, 2009)

domingo, 5 de janeiro de 2014

Pergunta-me


Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue

Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos

Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente

Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
Saibas o que te quero dizer

MIA COUTO, in RAÍZ DE ORVALHO E OUTROS POEMAS, (Caminho, 1999)