domingo, 29 de setembro de 2013

MAIS UMA NOITE, AMOR


Mais uma noite, amor. Ao recordar-te
retomo os fins do mundo, a cinza, os dias
manchados de outras lágrimas. Sabias
como eu a cor das sombras, essa arte

que nos engana agora e se reparte
por esquinas e cafés. Já não me guias
os muitos passos vãos, as fantasias
da minha falsa vida. Vou deixar-te

fugindo-me. Na chuva, sem ninguém,
apenas alguns vultos, o que vem
«e dói não sei porquê» -este deserto

onde te vejo, imagem outra vez,
até de madrugada. O que me fez
sentir o muito longe aqui tão perto?

FERNANDO PINTO DO AMARAL, in A ESCADA DE JACOB (Assírio & Alvim, 1993 )

Devias estar aqui rente aos meus lábios


Devias estar aqui rente aos meus lábios
para dividir contigo esta amargura
dos meus dias partidos um a um

- Eu vi a terra limpa no teu rosto,
Só no teu rosto e nunca em mais nenhum

Eugénio de Andrade

O teu rosto


É o teu rosto ainda que eu procuro
Através do terror e da distância
Para a reconstrução de um mundo puro.

Sophia de Mello Breyner Andresen

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

NO VELUDO DOS TEUS OLHOS...


Sonhadora
De pensamentos ao largo
de olhos postos no vento
com o areal nos dedos
e o coração ao leme
deste momento

Sei-te em mim
No turbilhão
Que me aquece o sangue
Me acalma a mente
Me deixa exangue

E abandonada em mim
entrego-me-Te
Às palavras
Onde em cofre guardadas
Serão alma iluminada
Sentimentos

Só te peço...
Guarda-me-te
Deita fora a chave
Esquece os códigos
Que eu saberei lê-los
No veludo dos teus olhos...

ANA FONSECA, in NO LEITO DO MEU PENSAMENTO (Universus, 2011)

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

A MORTE DO AMOR


Se eu pudesse voltar atrás
Não te amava.
É tão mais fácil
Manter o coração quieto no peito
Como se todos os dias
E todas as horas fossem iguais.

A inquietação de me faltares
Deixa os meus olhos tristes
Esperando que aceites
A mão que te estendo.

Mas tu não estás.
Eu parti com a última onda
Sem saber se voltarei um dia,
E o caminho que os nossos pés
Juntos percorreram
Choram a saudade
De ter morrido o amor
Quando dissemos adeus.

ANA BRILHA, in A APOLOGIA DO SILÊNCIO (Ed. autor, 2012)

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Pernoitas em Mim

 
pernoitas em mim
e se por acaso te toco a memória... amas ...

ou finges morrer

pressinto o aroma luminoso dos fogos
escuto o rumor da terra molhada
a fala queimada das estrelas

é noite ainda
o corpo ausente instala-se vagarosamente

Al Berto
 

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

POEMA DA RECUSA


Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus dedos
se ter formado o afago
sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor
nem o interior da erva.

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva de ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda

MARIA TERESA HORTA, in VOZES E OLHARES NO FEMININO (Ed. Afrontamento, 2001)

domingo, 15 de setembro de 2013

[COMO EU GOSTO DE TI]


Como eu gosto de ti? Deixa-me contar os modos - e não repito
Gosto de ti até ao fundo, até ao fôlego, até à altura
Que a minha alma alcança, quando me sinto na lonjura
Até aos confins do ser, e do bem infinito.

Gosto de ti como o diário e normal requesito
À luz do sol e a meio da noite escura
Gosto de ti livremente, como pelo bem se luta com bravura
Gosto de ti puramente, com a pureza de um gesto contrito

Gosto de ti com a paixão que senti
Nas mágoas passadas, na fé da infância
Gosto de ti com o amor que perder temi

Quando perdi os meus santos - Gosto de ti de tal sorte
Sorrisos, lágrimas, de toda a vida! - e a Deus já pedi
Que eu goste de ti ainda mais depois da morte.

ELIZABETH BARRETT BROWNING, in SONETS FROM THE PORTUGUESE - A CELEBRATION OF LOVE (1847; St Martin's Press, 1986), tradução de CARLOS CAMPOS

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

DESEJO


Queria ser essa noite que te envolve; e
cobrir-te com o peso obscuro dos braços
que não se vêem. Um murmúrio
desceria de uma vegetação de palavras,
enrolando-se nos teus cabelos como
secretas folhas de hera num horizonte
de pálpebras. Deixarias que te olhasse
o fundo dos olhos, onde brilha
a imagem do amor. E sinto os teus dedos
soltarem-se da sombra, pedindo
o silêncio que antecede a madrugada.

NUNO JÚDICE, in O ESTADO DOS CAMPOS (P. D. Quixote, 2003)

terça-feira, 10 de setembro de 2013

O REGRESSO É INEVITÁVEL


o regresso é inevitável, sobretudo
aquele mesmo silêncio de que partíramos
um dia em busca do sol

fixámo-nos na sarça incendida
na coluna ardente do coração
e extraímos do último pensamento
o sílex cortante das palavras:
porque
na vida valeu-nos apenas
o termos querido amar alguém

JOÃO RICARDO LOPES, in A PEDRA QUE CHORA COMO PALAVRAS (Labirinto, 2001)

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

QUANDO PELA NOITE CHEGAS DISSOLVEM-SE AS TREVAS


Quando pela noite chegas dissolvem-se as trevas
e eu partir não quero, porque esta é a noite
que ilumina o dia, canto do silêncio, eco subtil
no discurso do mundo. Quando pela noite chegas
é meu o teu amor, e a morte tarde doce como mel.

ANA MARQUES GASTÃO, in 366 POEMAS QUE FALAM DE AMOR, org. de VASCO GRAÇA MOURA, org. de Vasco Graça Moura (Quetzal, 2003)

domingo, 8 de setembro de 2013

PODIA


Podia dizer-te que não me importo
Podia fingir que fugi
Ou que estou morto.
Podia adiar para outro dia
Invocar uma qualquer lei
Dizer-te que não sei
Ou fiquei sem bateria.

Com a verdade mais pura
A única verdade
A única que dura
Faria a minha despedida
A promessa de mil abraços
E uma palavra sofrida

Podia dizer-te que volto
E seria breve
Como um poeta escreve
Livre e solto.

(E tu, minha vida, acreditas
Nas palavras que não digo?
Será o silêncio castigo?
Será em silêncio que gritas?)

Podia dizer-te que são pequenas
As saudades do teu sorrir
Mas seriam palavras apenas
E seria mentir.


CARLOS CAMPOS, in RIO DE DOZE ÁGUAS (Coisas de Ler, Ed., 2012)

SEGREDO


Nem o Tempo tem tempo
para sondar as trevas

deste rio correndo
entre a pele e a pele

Nem o Tempo tem tempo
nem as trevas dão tréguas

Não descubro o segredo
que o teu corpo segrega

DAVID MOURÃO-FERREIRA, in NO VEIO DO CRISTAL (1988), in OBRA POÉTICA 1948-1988 (Presença, 4ª ed., 2001)

SE TERMINAR ESTE POEMA, PARTIRÁS



Se terminar este poema, partirás. Depois da
mordedura vã do meu silêncio e das pedras
que te atirei ao coração, a poesia é a última
coincidência que nos une. Enquanto escrevo

este poema, a mesma neblina que impede a
memória límpida dos sonhos e confunde os
navios ao retalharem um mar desconhecido

está dentro dos meus olhos – porque é difícil
olhar para ti neste preciso instante sabendo que
não estarias aqui se eu não escrevesse. E eu, que

continuo a amar-te em surdina com essa inércia
sóbria das montanhas, ofereço-te palavras, e não
beijos, porque o poema é o único refúgio onde
podemos repetir o lume dos antigos encontros.

Mas agora pedes-me que pare, que fique por aqui,
que apenas escreva até ao fim mais esta página
(que, como as outras, será somente tua – esse

beijo que já não desejas dos meus lábios). E eu, que
aprendi tudo sobre as despedidas porque a saudade
nos faz adultos para sempre, sei que te perderei

em qualquer caso: se terminar o poema, partirás;
e, no entanto, se o interromper, desvanecer-se-á
a última coincidência que nos une.

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in O CANTO DOS VENTOS NOS CIPRESTES (Gótica, 2002), in POESIA REUNIDA (Quetzal, 2012)

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

PENUMBRA


Na penumbra dos ombros é que tudo começa
quando subitamente só a noite nos vê
E nos abre uma porta nos aponta uma seta

para sermos de novo quem deixámos de ser

DAVID MOURÃO-FERREIRA

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Há dias em que em ti talvez não pense


Há dias em que em ti talvez não pense
a morte mata um pouco a memória dos vivos
é todavia claro e fotográfico o teu rosto
caído não na terra mas no fogo
e se houver dia em que não pense em ti
estarei contigo dentro do vazio

GASTÃO CRUZ, in FOGO (Assírio & alvim, 2013)

terça-feira, 3 de setembro de 2013

AS PALAVRAS INTERDITAS


Os navios existem, e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
partem no vento, regressam nos rios.

Na areia branca, onde o tempo começa,
uma criança passa de costas para o mar.
Anoitece. Não há dúvida, anoitece.
É preciso partir, é preciso ficar.

Os hospitais cobrem-se de cinza.
Ondas de sombra quebram nas esquinas.
Amo-te... E entram pela janela
as primeiras luzes das colinas.

As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem reconhecia já
teu nome nas suas curvas claras.

Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos nocturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.

E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.

EUGÉNIO DE ANDRADE, in AS PALAVRAS INTERDITAS (1951), in POESIA (Modo de Ler, 2011)

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Se as minhas mãos pudessem desfolhar


Eu pronuncio teu nome
nas noites escuras,
quando vêm os astros
beber na lua
e dormem nas ramagens
das frondes ocultas.
E eu me sinto oco
de paixão e de música.
Louco relógio que canta
mortas horas antigas.

Eu pronuncio teu nome,
nesta noite escura,
e teu nome me soa
mais distante que nunca.
Mais distante que todas as estrelas
e mais dolente que a mansa chuva.

Amar-te-ei como então
alguma vez? Que culpa
tem meu coração?
Se a névoa se esfuma,
que outra paixão me espera?
Será tranqüila e pura?
Se meus dedos pudessem
desfolhar a lua!!

Federico García Lorca

domingo, 1 de setembro de 2013

O SILÊNCIO E A PALAVRA


Tu és o silêncio,
Eu a palavra,
Mãos que se trocam
De encontro ao rosto
Porque tudo é breve.

Não sei o nome da tua tribo
Mas deixei-te entrar
No meu abraço,
Contra todas as leis,
Mesmo a do bom senso.

Se amanhã fores,
Se tiveres de ir,
Não demores a partida.
Pega na minha mão estendida
E leva-me
Para onde eu possa esquecer o meu nome.

ANA BRILHA, in A APOLOGIA DO SILÊNCIO (ed. da Autora, 2012)

Eu cantarei um dia da tristeza


Eu cantarei um dia da tristeza
por uns termos tão ternos e saudosos
que deixem aos alegres invejosos
de chorarem o mal que lhes não pesa.

Abrandarei das penhas a dureza
exalando suspiros tão queixosos
que jamais os rochedos cavernosos
os repitam da mesma natureza.

Serras, penhascos, troncos, arvoredos
ave, ponte, montanha, flor, corrente
comigo hão-de chorar de amor enredos.

Mas ah! que adoro uma alma que não sente!
Guarda, Amor, os teus pérfidos segredos
que eu derramo os meus ais inutilmente.

LEONOR DE ALMEIDA PORTUGAL LORENA E LENCASTRE (MARQUESA DE ALORNA), in POESIAS, org. de HERNANI CIDADE (Sá da Costa, 1960)

UM POUCO DE SILÊNCIO


pedíamos um pouco de silêncio.
os corpos sem outro uso abrigavam-se
como as nossas mãos em torno do sol

lembro-me tão bem dessas manhãs:
sentíamos acontecer no orvalho
a invenção redonda dos dias

era apenas um pouco de silêncio.
o sol dançava entre os dedos,
as rosas perturbavam o tempo

JOÃO RICARDO LOPES, in DIAS DESIGUAIS (Labirinto, 2005)