segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

TOCA-ME


Toca-me.
Sê em mim o começo
a alegria e a festa
Toca-me de leve
como um sopro
para que me incendeie
e te ilumine de raios
tempestades, emoções
Rouqueja-me os sons
do teu absoluto
e morre comigo
desta vez

EDGARDO XAVIER, in CORPO DE ABRIGO (Temas Originais, 2011)

domingo, 30 de dezembro de 2012

POST SCRIPTUM


Afasto de ti com
raiva surda

o corpo
as mãos
o pensamento

e apago secreta
uma a uma
as velas acesas do teu vento

liberta ponho o corpo
em seu lugar
visto a cidade
penteio um rio sedento

penso ganhar
e fujo
e não entendo

penso dormir
mas não consigo
o tempo

E cede-se o vazio
sobre o meu ventre

e segue-se a saudade
em seu sustento

E digo este meu vício
dos teus olhos
de um verde tão lento
muito lento

Se penso que te deixo
já te quero

Se penso que recuso
já te anseio

Se penso que te odeio
já te espero

e torno a oferecer-te
o que receio

Se penso que me calo
já te grito

Se penso que me escondo
já me ofereço

Se penso que não sinto
é porque minto

Se pensas que me olhas
já estremeço.

MARIA TERESA HORTA, in MINHA SENHORA DE MIM ( D. Quixote, 1971), in POESIA REUNIDA (D. Quixote, 2009)

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

CANÇÃO GRATA


Por tudo o que me deste:
- Inquietação, cuidado,
(Um pouco de ternura? É certo, mas tão pouco!)
Noites de insónia, pelas ruas, como um louco…
- Obrigado, obrigado!

Por aquela tão doce e tão breve ilusão,
(Embora nunca mais, depois que a vi desfeita,
Eu volte a ser quem fui), sem ironia: aceita
A minha gratidão!

Que bem me faz, agora, o mal que me fizeste!
- Mais forte, mais sereno, e livre, e descuidado…
Sem ironia, amor: - Obrigado, obrigado
Por tudo o que me deste!

CARLOS QUEIRÓS, in 366 POEMAS QUE FALAM DE AMOR, Antologia organizada por Vasco Graça Moura (Lisboa: Quetzal, 2003)

Tudo é Paixão


Assim me perguntaste,
assim te respondi:
tudo é paixão.

Como não lamber
da tua pele, o mel
que o desejo fabrica?

E como a minha boca
não recolher o néctar
da tua boca?

Ou como não sorver
das tuas mãos o pólen
da ternura?

E se, em vez de paixão,
for sexo apenas,
ou loucura?

Pode até não ser amor.
Mas, seja o que for,
não é pior.

Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'

DE MÃOS ABERTAS


Se eu pudesse,
Tocava o teu rosto em silêncio
E falava-te do mar,
Deixava tombar os meus cabelos
Sobre o teu ombro
Como uma bênção
E fechava os olhos
Consciente de ser em ti
Como um salgueiro.

ANA BRILHA, in A APOLOGIA DO SILÊNCIO (ed. da Autora, 2012)

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

METAFÍSICA



De cada vez que nos teus braços
Por uns momentos morro,
Nos abismos de mim o meu amor pede socorro
Como se à força alguém lhe desatasse os laços.

De cada vez apreendo
Que fica em muito pouco, ou nada, aquele tanto
Que o querer ter promete, enquanto
Se não tendo.

Desejar é que é ter! mas não nos basta.
Sonhar é que é possuir sem tédio nem cansaços.
Sei-o, mas só já morto nos teus braços.
Sofre a carne de ter, ou de ser casta.

Sobre o desejo farto, a alma se debruça,
Contempla o nada a que o fartá-lo aponta.
E atrás do mesmo nada eis que ela mesma, tonta,
Vai, se a carne reacende a escaramuça.

Entrar num corpo até onde se oculte
O para Lá do corpo - eis o supremo sonho.
De que desejos o componho,
Se ei-lo se descompõe quando o desejo avulte?

Sôfrega, a carne pede carne. Saciada,
Pede, ela própria, o que jamais sacia.
Para de novo se inflamar, é um dia.
Para de novo desgostar, um nada.

Ai, como não te amar e não te aborrecer,
Carne de leite e rosas, - terra inglória
Do longo prélio-entendimento sem vitória
Que é carne e alma, ter-não ter?

JOSÉ RÉGIO, in FILHO DO HOMEM (Portugália, 1961)

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Soneto


Não pode Amor por mais que as falas mude
exprimir quanto pesa ou quanto mede.
Se acaso a comoção falar concede
é tão mesquinho o tom que o desilude.

Busca no rosto a cor que mais o ajude,
magoado parecer aos olhos pede,
pois quando a fala a tudo o mais excede
não pode ser Amor com tal virtude.

Também eu das palavras me arreceio,
também sofro do mal sem saber onde
busque a expressão maior do meu anseio.

E acaso perde, o Amor que a fala esconde,
em verdade, em beleza, em doce enleio?
Olha bem os meus olhos, e responde.

António Gedeão, in “Poesias Completas”

QUEIXA


Toda a noite te esperei.

Quando cheguei
Não estava ainda luar.
E fiquei
A esperar
Que viesses
Como tinhas prometido.

Toda a noite te esperei
e afinal não apareceste.

Fiquei esperando,
Esperando,
E as horas foram caindo,
Uma a uma,
Como gotas de cacimbo.

Entretanto,
Surgiu de trás da Igreja
O disco, em prata,
Da Lua.

Debaixo da cajajeira,
Junto à valeta da rua
E sob a luz que me encanta
Vi nascer a madrugada
Da cor da Semana Santa,
Vi como a noite fugia
E como raiava o dia.

Toda a noite te esperei
E afinal não apareceste...

Toda a noite te esperei
E afinal não apareceste...

Esperei
E desesperei.
Desesperei
E chorei...

AIRES ALMEIDA SANTOS, in POETAS ANGOLANOS (1962) in ANTOLOGIAS DE POESIA DA CADA DOS ESTUDANTES DO IMPÉRIO 1951-1963, Vol. I (ACEI, 1994)

UM POEMA


de amor se faz amor
de nada mais resulta amor
que amor se faz de amor
de nada mais.
resulta amor de amor
que amor se faz de nada.
mais resulta que amor de amor
se faz amor de nada.
mais.

E. M. de MELO e CASTRO, in ANTOLOGIA EFÉMERA: 1950-2000 (Nova Fronteira, 2007)

FELICIDADE


Pela flor pelo vento pelo fogo
pela estrela da noite tão límpida e serena
Pelo nácar do tempo pelo cipreste agudo
Pelo amor sem ironia por tudo
Que atentamente esperamos
Reconheci tua presença incerta
Tua presença fantástica e liberta.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in LIVRO SEXTO (Moraes Ed., 1962) in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

POEMA DA RECUSA


Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus dedos
se ter formado o afago
sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor
nem o interior da erva.

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva de ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda

MARIA TERESA HORTA, in VOZES E OLHARES NO FEMININO (Ed. Afrontamento, 2001)

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

SOB O CHUVEIRO AMAR


Sob o chuveiro amar, sabão e beijos,
ou na banheira amar, de água vestidos,
amor escorregante, foge, prende-se,
torna a fugir, água nos olhos, bocas,
dança, navegação, mergulho, chuva,
essa espuma nos ventres, a brancura
triangular do sexo — é água, esperma,
é amor se esvaindo, ou nos tornamos fonte?

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, in O AMOR NATURAL (1992)

domingo, 23 de dezembro de 2012

IDENTIDADE


Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta

Sou pólen sem insecto

Sou areia sustentando
o sexo das árvores

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço

MIA COUTO, in RAÍZ DE ORVALHO E OUTROS POEMAS, (Caminho, 1999)

sábado, 22 de dezembro de 2012

INCONSTÂNCIA


Procurei o amor, que me mentiu.
Pedi à Vida mais do que ela dava;
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!

Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!

Passei a vida a amar e a esquecer...
Atrás do sol dum dia outro a aquecer
As brumas dos atalhos por onde ando...

E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há-de partir também... nem eu sei quando...

FLORBELA ESPANCA, in LIVRO DE SOROR SAUDADE (1923)

DIA 255


Esta manhã foi a mais bela de todas as manhãs.
Cheia de ti. Do teu brilho, do teu cheiro, do teu
sorriso igual ao das maçãs.
Ainda tenho nos meus olhos o brilho dos teus
olhos. Nunca, como hoje, desejei estar contigo
numa ilha. Uma ilha deserta, mas cheia de nós.
E à tua pergunta natural: "o que é que estamos
aqui a fazer?", eu responderia também natural-
mente: "se cá estamos, é porque fazemos cá fal-
ta!".

[excerto]

JOAQUIM PESSOA, in ANO COMUM (Litexa, 2011)

TU


Com a noite dos teus olhos
escusava lua e estrelas.

Com a fonte da tua boca
não mais teria sede.

Com a raiz do teu ombro
para quê tecto ou abrigo?

Só a luz me faria falta
para poder olhar-te.

LUÍSA DACOSTA, in A MARESIA E O SARGAÇO DOS DIAS (Asa II, 2011)

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Agora o corpo é mais um barco que se solta



Agora o corpo é mais um barco que se solta.
Nele navegam primeiro os olhos e os receios.
E só depois a polpa dos dedos, à deriva, que
é quem faz o sabor das ondas nesse mar.

Levamos-lhe uma luz que é como uma promessa:
uma pequena chama azul e inquieta que treme
dentro das mãos e faz a boca abrir-se para
a espera. E não sei o que longe da margem

ilumina depois os nossos gestos: talvez
apenas a pele prateada dos peixes, o fulgor
da lua sobre a água como um gomo cheio
a desafiar os lábios, os reflexos do frio
metal das âncoras sob o olhar das estrelas.

Repara como de repente ficou distante o cais
e o outro barco amarrado ao sono da noite.
Esquece-o para sempre. Agora, adormeçamos
simplesmente, docemente, em casas de sal.

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in A CASA E O CHEIRO DOS LIVROS (Gótica, 2002), in POESIA REUNIDA (Quetzal, 2012)

Se vens à minha procura


Se vens à minha procura,
eu aqui estou. Toma-me, noite,
sem sombra de amargura,
consciente do que dou.

Nimba-te de mim e de luar.
Disperso em ti serei mais teu.
E deixa-me derramado no olhar
de quem já me esqueceu.

EUGÉNIO DE ANDRADE, in AS MÃOS E OS FRUTOS (1948), in POESIA (Modo de Ler, 2011)

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Ai eu coitada, como vivo em gram cuidado




Ai eu coitada, como vivo em gram cuidado
por meu amigo que hei alongado;    
muito me tarda    
o meu amigo na Guarda.

Ai eu coitada, como vivo em gram desejo
por meu amigo que tarda e nom vejo;  
muito me tarda   
o meu amigo na Guarda

poema [cantiga de amigo] atribuído ao rei português D. Sancho I

sábado, 15 de dezembro de 2012

......


No ponto onde o silêncio e a solidão
Se cruzam com a noite e com o frio,
Esperei como quem espera em vão,
Tão nítido e preciso era o vazio.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in POESIA (Ed. de autora, 1944), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Não digas nada!



Não digas nada!
Não, nem a verdade!
Há tanta suavidade
Em nada se dizer
E tudo se entender —
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada!
Deixa esquecer.
Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda esta viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz...
Não digas nada.

FERNANDO PESSOA, in POESIAS INÉDITAS (1930-1935), [ (Nota prévia de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1955 (imp. 1990)]

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

ENCANTAMENTO


há uma palavra mágica que se diz. essa palavra
é sempre diferente. montanha, precipício, brilho.
essa palavra pode ser um olhar. a voz. um olhar.

essa palavra pode ser o espaço de silêncio onde
não se disse uma palavra. brilho, montanha.
essa palavra pode ser uma palavra, qualquer palavra.

há uma palavra mágica que se diz. há um momento.
depois dessa palavra, só depois dessa palavra,
pode começar o amor.

JOSÉ LUÍS PEIXOTO, in A CASA, A ESCURIDÃO ( Temas e Debates, 2002)

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

[EIS-ME]


Eis-me
Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses
Para ficar sozinha ante o silêncio
Ante o silêncio e o esplendor da tua face

Mas tu és de todos os ausentes o ausente
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo em que não moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silêncio

Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes o ausente

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in LIVRO SEXTO (Moraes Ed, 1962) e OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

COISAS TUAS


Levo coisas tuas para poder estar contigo
na distância.
Para nunca te perder a companhia,
mesmo não estando.
Levo gravado o teu gesto,
o pranto, o riso, e,
(ora inocente, ora picante),
o teu sorriso,
que é a tua expressão,
o teu maior encanto.
E levo um objecto,
teu pertence,
como se o espaço tivesse autoridade
e o tempo nos afastasse.

Como se fosse preciso...


 MARGARIDA FARO, in 44 POEMAS (Fonte da Palavra, 2011)