domingo, 21 de abril de 2013

DIZ-ME O TEU NOME



Diz-me o teu nome - agora, que perdi
quase tudo, um nome pode ser o princípio
de alguma coisa. Escreve-o na minha mão

com os teus dedos - como as poeiras se
escrevem, irrequietas, nos caminhos e os
lobos mancham o lençol da neve com os
sinais da sua fome. Sopra-mo no ouvido,

como a levares as palavras de um livro para
dentro de outro - assim conquista o vento
o tímpano das grutas e entra o bafo do verão
na casa fria. E, antes de partires, pousa-o

nos meus lábios devagar: é um poema
açucarado que se derrete na boca e arde
como a primeira menta da infância.

Ninguém esquece um corpo que teve
nos braços um segundo - um nome sim.

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in NENHUM NOME DEPOIS ( Gótica, 2ª. Ed., 2005), in in POESIA REUNIDA (Quetzal, 2012)

sábado, 20 de abril de 2013

Abraça-me


Abraça-me. Quero ouvir o vento que vem da tua pele, e ver o sol nascer do intenso calor dos nossos corpos. Quando me perfumo assim, em ti, nada existe a não ser este relâmpago feliz, esta maçã azul que foi colhida na palidez de todos os caminhos, e que ambos mordemos para provar o sabor que tem a carne incandescente das estrelas. Abraça-me. Veste o meu corpo de ti, para que em ti eu possa buscar o sentido dos sentidos, o sentido da vida. Procura-me com os teus antigos braços de criança, para desamarrar em mim a eternidade, essa soma formidável de todos os momentos livres que a um e a outro pertenceram. Abraça-me. Quero morrer de ti em mim, espantado de amor. Dá-me a beber, antes, a água dos teus beijos, para que possa levá-la comigo e oferecê-la aos astros pequeninos.
Só essa água fará reconhecer o mais profundo, o mais intenso amor do universo, e eu quero que delem fiquem a saber até as estrelas mais antigas e brilhantes.
Abraça-me. Uma vez só. Uma vez mais.
Uma vez que nem sei se tu existes.

Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'

domingo, 14 de abril de 2013

Nous dormirons ensemble.


Que ce soit dimanche ou lundi
Soir ou matin minuit midi
Dans l'enfer ou le paradis
Les amours aux amours ressemblent
C'était hier que je t'ai dit
Nous dormirons ensemble

C'était hier et c'est demain
Je n'ai plus que toi de chemin
J'ai mis mon cœur entre tes mains
Avec le tien comme il va l'amble
Tout ce qu'il a de temps humain
Nous dormirons ensemble

Mon amour ce qui fut sera
Le ciel est sur nous comme un drap
J'ai refermé sur toi mes bras
Et tant je t'aime que j'en tremble
Aussi longtemps que tu voudras
Nous dormirons ensemble.

Louis Aragon

Não digas nada – a tua boca já me pertenceu


Não digas nada – a tua boca já me pertenceu
e agora tenho ciúmes das palavras. O que
disseres será um beijo pousado nos lábios de
outra mulher, dor e mais dor, traição maior
para quem acreditou que o teu amor era para
a morte. Não fales – tenho também ciúmes

da tua voz; ouvir-te é ficar só uma vez mais.


MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in POESIA REUNIDA-A Ideia do Fim (Quetzal, 2012)

sábado, 13 de abril de 2013

[PORQUE ME MATASTE]


Por que me mataste
Nesta noite sem dias,
Quando abriste as portas
Que te levaram a mim,
Percorrendo os longos corredores
Da minha vida?
Por que chegaste
Sem avisares,
Trazendo nos olhos
O pôr-do-sol e o canto das aves?
Por que partiste,
Quando estremeceu esta noite fria
Envolta em nevoeiro?

PAULO EDUARDO CAMPOS, in NA SERENIDADE DOS RIOS QUE ENLOUQUECEM (Amores Perfeitos, 2005)

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Um gesto sem paisagem


Um gesto sem paisagem
sem horizonte ou casa
sem o outro
não chega a ser um gesto
será talvez um esgar
um grito que sufoca
tal como um rio se perde
sem as suas margens.

ANTÓNIO RAMOS ROSA, in A INTACTA FERIDA (Relógio d'Água, 1991)ens


quarta-feira, 10 de abril de 2013

Lê , são estes os nomes das coisas


Lê , são estes os nomes das coisas que
deixaste – eu, livros, o teu perfume
espalhado pelo quarto; sonhos pela
metade e dor em dobro, beijos por
todo o corpo como cortes profundos
que nunca vão sarar; e livros, saudade,
a chave de uma casa que nunca foi a
nossa, um roupão de flanela azul que
tenho vestido enquanto faço esta lista:

livros, risos que não consigo arrumar,
e raiva – um vaso de orquídeas que
amavas tanto sem eu saber porquê e
que talvez por isso não voltei a regar; e
livros, a cama desfeita por tantos dias,

uma carta sobre a tua almofada e tanto
desgosto, tanta solidão; e numa gaveta
dois bilhetes para um filme de amor que
não viste comigo, e mais livros, e também
uma camisa desbotada com que durmo
de noite para estar mais perto de ti; e, por

todo o lado, livros, tantos livros, tantas
palavras que nunca me disseste antes da
carta que escreveste nessa manhã, e eu,

eu que ainda acredito que vais voltar, que
voltas, mesmo que seja só pelos teus livros

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in POESIA REUNIDA (Quetzal, 2012)

domingo, 7 de abril de 2013

AUSÊNCIA


Eu haverei de erguer a vasta vida
que ainda é o teu espelho:
cada manhã hei-de reconstruí-la.
Desde que te afastaste,
quantos lugares se tornaram vãos
e sem sentido, iguais
a luzes acesas de dia.
Tardes que te abrigaram a imagem,
música em que sempre me esperavas,
palavras desse tempo,
terei de as destruir com as minhas mãos.
Em que ribanceira esconderei a alma
pra que não veja a tua ausência,
que como um sol terrível, sem ocaso,
brilha definitiva e sem piedade?
A tua ausência cerca-me
como corda à garganta.
O mar ao que se afunda.

JORGE LUIS BORGES, in FERVOR DE BUENOS AIRES, in OBRAS COMPLETAS I 1923-1949, trad. de FERNANDO PINTO DO AMARAL (Teorema, 1998)

sábado, 6 de abril de 2013

APELO


Atravessa os campos da noite
e vem.

A minha pele
ainda cálida de sol
te será margem.

Nas fontes, vivas,
do meu corpo
saciarás a tua sede.

Os ramos dos meus braços
serão sombra rumorejante
ao teu sono, exausto.

Atravessa os campos da noite
e vem.

LUISA DACOSTA, in CEM POEMAS PORTUGUESES NO FEMININO,Selec., Organiz. e introd. de José Fanha e José Jorge Letria (Terramar, 2005)

quinta-feira, 4 de abril de 2013

TECES NOS TEUS OLHOS


Teces nos teus olhos
O frio da madrugada.
As fontes, onde as aves
Beberam os gritos.
Teces a espuma deste mar
Que te levou de mim,
Os domingos de sol
Numa tarde de Maio,
Quando o silêncio renasce
Da sua morte.
Foi para ti que inventei o sonho,
Para que os anjos tristes
Que te acompanhavam,
Te desamparassem.
Foi neste mar imenso,
Nesta praia deserta,
Que nasceu no teu rosto
A madrugada.

PAULO EDUARDO CAMPOS, in NA SERENIDADE DOS RIOS QUE ENLOUQUECEM (Amores Perfeitos, 2005)

(...)


Pairei nesse teu mar
Doce, quente e profundo
Na esperança de ancorar
Esperei,
Amei,
Até o tempo me deixar.

JOSÉ GABRIEL DUARTE in NO OUTRO LADO DE MIM (Chiado Ed., 2012)

segunda-feira, 1 de abril de 2013

PENSO EM TI NO SILÊNCIO DA NOITE, QUANDO TUDO É NADA


Penso em ti no silêncio da noite, quando tudo é nada,
E os ruídos que há no silêncio são o próprio silêncio,
Então, sozinho de mim, passageiro parado
De uma viagem em Deus, inutilmente penso em ti.

Todo o passado, em que foste um momento eterno
E como este silêncio de tudo.
Todo o perdido, em que foste o que mais perdi,
É como estes ruídos,
Todo o inútil, em que foste o que não houvera de ser
É como o nada por ser neste silêncio nocturno.

Tenho visto morrer, ou ouvido que morrem,
Quantos amei ou conheci,
Tenho visto não saber mais nada deles de tantos que foram
Comigo, e pouco importa se foi um homem ou uma conversa;
Ou um [...] assustado e mudo,
E o mundo hoje para mim é um cemitério de noite
Branco e negro de campas e [...] e de luar alheio
E é neste sossego absurdo de mim e de tudo que penso em ti.

ÁLVARO DE CAMPOS (FERNANDO PESSOA), in LIVRO DE VERSOS (Estampa, 1933)