terça-feira, 20 de dezembro de 2011

NOCTURNO

Amor, não sei de coisa mais violenta
que ficar de noite à tua espera.
É triste como uma manhã cinzenta
destruindo o coração da primavera.

E aqui, como um pássaro deitado,
julgando ouvir na chuva a tua voz,
a madrugada deita-se a meu lado
fingindo que na cama estamos nós.

Mas eu sinto chegar esta amargura
que vem fechar-me os olhos. E depois,
já nem sei se é um sonho ou se é loucura:
no quarto onde estou só, ficamos dois.

E nada mais me importa, já não espero
aquela que enche a noite de alegria.
Então, para dizer quanto te quero,
eu faço amor contigo até ser dia.

JOAQUIM PESSOA, in disco LP CANÇÕES DE EX-CRAVO E MALVIVER (Toma Lá Disco, 1977)

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Amor à Vista

Entras como um punhal
até à minha vida.
Rasgas de estrelas e de sal
a carne da ferida.

Instala-te nas minas.
Dinamita e devora.
Porque quem assassinas
é um monstro de lágrimas que adora.

Dá-me um beijo ou a morte.
Anda. Avança.
Deixa lá a esperança
para quem a suporte.

Mas o mar e os montes...
isso, sim.
Não te amedrontes.
Atira-os sobre mim.

Atira-os de espada.
Porque ficas vencida
ou desta minha vida
não fica nada.

Mar e montes teus beijos, meu amor,
sobre os meus férreos dentes.
Mar e montes esperados com terror
de que te ausentes.

Mar e montes teus beijos, meu amor!...

Fernando Echevarría, in “Poesia 1956-1979”

NOITE POR TI DESPIDA

Adulta é a noite onde cresce
o teu corpo azul. A claridade
que se dá em troca dos meus ombros
cansados Reflexos
coloridos. Amei
o amor. Amei-te meu amor sobre ervas
orvalhadas. Não eras tu porém
o fim dessa estrada
sem fim. Canto apenas (enquanto os álamos
amadurecem) a transparência, o caminho. A noite
por ti despida. Lume e perfume
do sol. Íntimo rumor do mundo.


CASIMIRO DE BRITO, in ODE & CEIA, Solidao Imperfeita (1955-58), [D. Quixote, 1985]

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

A Demora

O amor nos condena:
demoras
mesmo quando chegas antes.
Porque não é no tempo que eu te espero.

Espero-te antes de haver vida
e és tu quem faz nascer os dias.

Quando chegas
já não sou senão saudade
e as flores
tombam-me dos braços
para dar cor ao chão em que te ergues.

Perdido o lugar
em que te aguardo,
só me resta água no lábio
para aplacar a tua sede.

Envelhecida a palavra,
tomo a lua por minha boca
e a noite, já sem voz
se vai despindo em ti.

O teu vestido tomba
e é uma nuvem.
O teu corpo se deita no meu,
um rio se vai aguando até ser mar.

Mia Couto, in " idades cidades divindades"

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

ESPERA-ME

Nas praias que são o rosto branco das amadas mortas
Deixarei que o teu nome se perca repetido

Mas espera-me:
Pois por mais longos que sejam os caminhos
Eu regresso.


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in CORAL (1950), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

domingo, 4 de dezembro de 2011

Se eu podesse desamar


Se eu podesse desamar
a quen me sempre desamou,
e podess’ algún mal buscar
a quen mi sempre mal buscou!
Assy me vingaria eu,
se eu podesse coyta dar,
a quen mi sempre coyta deu.

Mays sol non posso eu enganar
meu coraçon que m’ enganou,
per quanto mi faz desejar
a quen me nunca desejou.
E per esto non dormio eu,
porque non poss’ eu coita dar
a quen mi sempre coyta deu.

Mays rog’ a Deus que desampar
a quen mh´assy desamparou,
ou que podess´eu destorvar
a quen me sempre destorvou.
E logo dormiria eu,
se eu podesse coyta dar,
a quen mi sempre coyta deu.

Vel que ousass’ en preguntar
a quen me nunca preguntou,
per que me fez en ssy cuydar,
poys ela nunca en min cuydou.
E por esto lazero eu,
porque non poss’ eu coyta dar,
a quen mi sempre coyta deu.

Pero da Ponte

Brea, Mercedes (dir.) (1996): Lírica Profana Galego-Portuguesa. Santiago: Centro de Investigacións Lingüísticas e Literarias Ramón Piñeiro - Xunta de Galicia

ABSOLVIÇÃO


Incendeiam-me ainda os beijos que me não deste
E cegam-se os acenos que me não fizeste
Da janela irreal onde o teu vulto
Era uma alucinação dos meus sentidos.
Mas, decorrida a vida, e oculto
Nestes versos doridos,
A saber que não sabes que te amei
E cantei,
E nem mesmo imaginas quem eu sou
E como é solitária e dói a minha humanidade,
Em vez de te acusar
E me culpar
Maldigo o árbítro da fatalidade
Que cruelmente nos desencontrou.

MIGUEL TORGA, in ANTOLOGIA POÉTICA (Coimbra, 4ª ed., 1994)

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

[POR QUE ME MATASTE]

Por que me mataste
Nesta noite sem dias,
Quando abriste as portas
Que te levaram a mim,
Percorrendo os longos corredores
Da minha vida?
Por que chegaste
Sem avisares,
Trazendo nos olhos
O pôr-do-sol e o canto das aves?
Por que partiste,
Quando estremeceu esta noite fria
Envolta em nevoeiro?

PAULO EDUARDO CAMPOS, in NA SERENIDADE DOS RIOS QUE ENLOUQUECEM (Amores Perfeitos, 2005)

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

ENCANTAMENTO

há uma palavra mágica que se diz. essa palavra
é sempre diferente. montanha, precipício, brilho.
essa palavra pode ser um olhar. a voz. um olhar.

essa palavra pode ser o espaço de silêncio onde
não se disse uma palavra. brilho, montanha.
essa palavra pode ser uma palavra, qualquer palavra.

há uma palavra mágica que se diz. há um momento.
depois dessa palavra, só depois dessa palavra,
pode começar o amor.


JOSÉ LUÍS PEIXOTO, in A CASA, A ESCURIDÃO ( Temas e Debates, 2002)

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

SERIA O AMOR PORTUGUÊS

Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que importa
que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
- tanto pó sobre os móveis tua ausência.

Se não és tu, que me importa?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.

FERNANDO ASSIS PACHECO, in A MUSA IRREGULAR (Asa, 1997)

A Tua Boca

A tua boca. A tua boca.
Oh, também a tua boca.
Um túnel para a minha noite.
Um poço para a minha sede.

Os fios dormentes de água
que a tua língua solta num grito cor-de-rosa
e a minha língua sorve e canta
e os meus dentes mordem derramando a seiva
da tua primavera sem palavras
o poema inquieto e livre que a tua boca oferece
à minha boca.

As loucas bebedeiras de ternura
por essa viagem até ao sangue.
Os beijos como fogueiras.
As línguas como rosas.

Oh, a tua boca para a minha boca.

Joaquim Pessoa, in 'Os Olhos de Isa'

domingo, 27 de novembro de 2011

POEMA SOBRE A RECUSA

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus dedos
se ter formado o afago
sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor
nem o interior da erva.

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva de ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda

MARIA TERESA HORTA, in VOZES E OLHARES NO FEMININO (Ed. Afrontamento, 2001)

PRESENTE

Queria neste poema a cor dos teus olhos
e queria em cada verso o som da tua voz:
depois, queria que o poema tivesse a forma
do teu corpo, e que ao contar cada sílaba
os meus dedos encontrassem os teus,
fazendo a soma que acaba no amor.

Queria juntar as palavras como os corpos
se juntam, e obedecer à única sintaxe
que dá um sentido à vida; depois,
repetiria todas as palavras que juntei
até perderem o sentido, nesse confuso
murmúrio em que termina o amor.

E queda que a cor dos teus olhos e o som
da tua voz saisem dos meus versos,
dando-me a forma do teu corpo: depois,
dir-te-ia que já não é preciso contar
as sílabas, nem repetir as palavras do poema,
para saber o que significa o amor.
Então, dar-te-ia o poema de onde saíste,
como a caixa vazia da memória, e levar-te-ia,
pela mão, contando os passos do amor.

NUNO JÚDICE, in O ESTADO DOS CAMPOS (Pub. Dom Quixote, 2003)

O AMOR

Não há para mim outro amor nem tardes limpas
A minha própria vida a desertei
Só existe o teu rosto geometria
Clara que sem descanso esculpirei.

E a noite onde sem fim me afundarei.


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in O CRISTO CIGANO (1961), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2011)

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

DA FALA

Quando ainda não sabia as palavras possíveis
para passar entre voz e silêncio dos outros,
tal como entre troncos das florestas mudas,
eu falava com as nuvens que vinham
sobre nós a cantar, de trémulas asas,
e aspergiam os aromas de êxtase.


FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO, in AS FÁBULAS (Quasi, 2002)

OFERTA

O que tenho para te dar? Uma gramática de sentimentos,
verbos sem o complemento de uma vida, os substantivos
mais pobres de um vocabulário íntimo — o amor, o desejo,
a ausência. Que frase construiremos com tão pouco? A
que léxico da paciência iremos roubar o que nos falta?

Então, ofereço-te uma outra casa. As paredes têm a
consistência do verso; o tecto, o peso de uma estrofe.
Abro-te as suas portas; e o sol entra pela janela de
uma sílaba, com o seu logo vocálico, como se uma
palavra pudesse aquecer o frio que te envolve.

E pergunto-te: que outras palavras queres? A música
sonora de um ócio? O espesso manto com que o veludo
se escreve? O fundo luminoso do azul? Poderia dar-te
todas as palavras na caixa do poema; ou emprestar-te
o canto efémero em que se escondem do mundo.

Mas não é isso que me pedes. E a vida que pulsa
por entre advérbios e adjectivos esfuma-se depressa,
quando procuramos seguir a linha do verso, O que fica?,
perguntas-me. Um encontro no canto da memória. Risos,
lágrimas, o terno murmúrio da noite. Nada, e tudo.

NUNO JÚDICE, in O ESTADO DOS CAMPOS (Pub. Dom Quixote, 2003)

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

[TENHO FRIO]

Tenho frio.
E os teus braços não estão aqui
Para me aquecerem.


PAULO EDUARDO CAMPOS, in NA SERENIDADE DOS RIOS QUE ENLOUQUECEM (Amores Perfeitos, 2005)

Bastava-nos Amar

Bastava-nos amar. E não bastava
o mar. E o corpo? O corpo que se enleia?
O vento como um barco: a navegar.
Pelo mar. Por um rio ou uma veia.

Bastava-nos ficar. E não bastava
o mar a querer doer em cada ideia.
Já não bastava olhar. Urgente: amar.
E ficar. E fazermos uma teia.

Respirar. Respirar. Até que o mar
pudesse ser amor em maré cheia.
E bastava. Bastava respirar

a tua pele molhada de sereia.
Bastava, sim, encher o peito de ar.
Fazer amor contigo sobre a areia.

Joaquim Pessoa, in 'Português Suave'

ADIAMENTO

Olhar-te bem nos olhos: que voragem!
Ouvir-te a voz na alma: que estridência!
É tão difícil termos coragem
de nos vermos enfim sem complacência.

É tão difícil regressar de viagem,
e descobrir no rastro tanta ausência...
Mas os meus olhos, súbito, reagem.
À tua voz chega o silêncio e vence-a.

Nos pulsos vibra ainda o mesmo rio
que no delta dos dedos se extasia
e moroso reflui ao coração.

O gesto de acusar-te? Suspendi-o.
Mas foi só aguardando melhor dia
em que tenha lugar a execução.

DAVID MOURÃO FERREIRA, in INFINITO PESSOAL (Guimarães Ed., 1962), in OBRA POÉTICA (Ed. Presença, 2006)

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Se Me Esqueceres

Quero que saibas
uma coisa.

Sabes como é:
se olho
a lua de cristal, o ramo vermelho
do lento outono à minha janela,
se toco
junto do lume
a impalpável cinza
ou o enrugado corpo da lenha,
tudo me leva para ti,
como se tudo o que existe,
aromas, luz, metais,
fosse pequenos barcos que navegam
até às tuas ilhas que me esperam.

Mas agora,
se pouco a pouco me deixas de amar
deixarei de te amar pouco a pouco.

Se de súbito
me esqueceres
não me procures,
porque já te terei esquecido.

Se julgas que é vasto e louco
o vento de bandeiras
que passa pela minha vida
e te resolves
a deixar-me na margem
do coração em que tenho raízes,
pensa
que nesse dia,
a essa hora
levantarei os braços
e as minhas raízes sairão
em busca de outra terra.

Porém
se todos os dias,
a toda a hora,
te sentes destinada a mim
com doçura implacável,
se todos os dias uma flor
uma flor te sobe aos lábios à minha procura,
ai meu amor, ai minha amada,
em mim todo esse fogo se repete,
em mim nada se apaga nem se esquece,
o meu amor alimenta-se do teu amor,
e enquanto viveres estará nos teus braços
sem sair dos meus.

Pablo Neruda, in "Poemas de Amor de Pablo Neruda"

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Pudesse Eu Contar as Vezes

Pudesse eu contar as vezes que ferrei os cantos da boca imaginando que eram teus os dentes que assim me amavam; que eram os teus lábios aqueles que, nessas ocasiões, eu mordia. Lembras-te de uma frase que costumavas citar, por tê-la escutado em qualquer parte, ou lido, já não sei bem? Aquela que dizia
- A minha anatomia enlouqueceu; sou toda coração.
Pois é como me tenho sentido, mais ou menos assim, com a anatomia enlouquecida, sem saber já quais são os meus dentes ou qual a minha boca; como se cada pedaço meu não fosse mais do que saudade de ti: o desejo de te voltar a ver, de te cobrir outra vez de beijos - olhos, boca, rosto, o corpo todo de beijos -, de te abraçar e sentir o teu cheiro, de tomar nas mãos o ramo crespo dos teus cabelos e inalar a fragrância do teu pescoço. Possuo agora, em mim apenas, nos limites da minha topografia, toda a exaltação dos nossos corpos e sinto que não chego para tanto porque a soma de nós dois excedeu sempre a existência física dos nossos corpos. É como se rebentasse por dentro e tivesse de esticar a alma - ou lá o que é - para me ser possível reter ao menos um pouco do que daí sobrou.

Manuel Jorge Marmelo, in 'O Amor É para os Parvos'

...

Deves viver, inesperada, à beira-morte,
prendendo teus gestos na curva do silêncio,
tocando a fronte dos deuses mais altos
como tu,
branca geometria de olhos puros,
construindo rosas, indícios, e uma vaga saudade
de noiva não nascida – a única
pelos humanos esperada eternamente
à nocturna varanda dos poemas.

Vítor Matos e Sá.

sábado, 19 de novembro de 2011

INSÓNIA

A lágrima cai, redonda,
na pele morta da alegria;
a boca torce um sorriso
que azeda nos lábios frios;
os olhos despertam, inutilmente,
de um sonho que não dormi...

Lá fora, o mundo todo em claridade...
e nas minhas palavras
o magro soluço
de uma grande verdade,
que pressenti:
ser o gemido de um choro,
a solidão de um desterro...
ser eu, enfim, o maior erro
que alguma vez cometi.


JOSÉ ALPEDRINHA (a publicar)

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Os Amantes com Casa


Andavam pela casa amando-se
no chão e contra as paredes.
Respiravam exaustos como se tivessem
nascido da terra
de dentro das sementeiras.
Beijavam-se magoados
até se magoarem mais.
Um no outro eram prisioneiros um do outro
e livres libertavam-se
para a vida e para o amor.
Vivendo a própria morte
voltavam a andar pela casa amando-se
no chão e contra as paredes.
Então era a música, como se
cada corpo atravessasse o outro corpo
e recebesse dele nova presença, agora
serena e mais pobre mas avidamente rica
por essa pobreza.
A nudez corria-lhes pelas mãos
e chegava aonde tudo é branco e firme.
Aquele fogo de carne
era a carne do amor,
era o fogo do amor,
o fogo de arder amando-se e por toda a casa,
contra as paredes, no chão.
Se mais não pressentissem bastaria
aquela linguagem de falar tocando-se
como dormem as aves.
E os olhos gastos
por amor de olhar,
por olhar o amor.
E no chão
contra as paredes se amaram e
pela casa andavam como
se dentro das sementeiras respirassem.
Prisioneiros libertados, um
no outro eram livres
e para a vida e para o amor se beijaram
magoando-se mais, até ficarem magoados.
E uma presença rica,
agora nova e mais serena,
avidamente recebeu a música que atravessou de
um corpo a outro corpo
chegando às mãos
onde toda a nudez é branca e firme.
Com uma carne de fogo,
incarnando o amor,
incarnando o fogo,
contra o chão das paredes se amaram
pressentindo que
andando pela casa bastaria tocarem-se
para ficarem dormindo
como acordam as aves.

Joaquim Pessoa, in 'Inéditos'

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

I

Preciso escrever-te, ou escrever-me, falar-te ou dizer-te através de mim e tudo isso num tempo intemporal, em que escrevo para a frente apenas porque algo nos faz crer que a vida, ou melhor, que um dia atrás do outro é ir para a frente, sabe-se lá... mas o meu mergulho é para trás, no meu tempo que foi de descoberta, um tempo que se desdobra a partir de outro e de outro... porque é lá atrás que te vou encontrar, é apenas tão-somente lá atrás que te posso resgatar, porque a ideia do amanhã contigo foi-se-me (ou quase); foi-se-me no dia em que abriste os braços para já não me abraçar.
E agora, vou mergulhar, mergulhar num mar de maré cheia, onde toco o que lá vive, um mar que está cá dentro, dentro de mim, onde te vejo e onde navegam todos os afectos que me unem a ti – é neles que vou buscar a forma que dou a estas palavras, com que quero falar-te, dizer-te, baixinho.


MARIA JOÃO SARAIVA, in A DOR QUE ME DEIXASTE (Trilhos ed., 2ª ed, 2011)

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Estou Mais Perto de Ti porque Te Amo

Estou mais perto de ti porque te amo.
Os meus beijos nascem já na tua boca.
Não poderei escrever teu nome com palavras.
Tu estás em toda a parte e enlouqueces-me.

Canto os teus olhos mas não sei do teu rosto.
Quero a tua boca aberta em minha boca.
E amo-te como se nunca te tivesse amado
porque tu estás em mim mas ausente de mim.

Nesta noite sei apenas dos teus gestos
e procuro o teu corpo para além dos meus dedos.
Trago as mãos distantes do teu peito.

Sim, tu estás em toda a parte. Em toda a parte.
Tão por dentro de mim. Tão ausente de mim.
E eu estou perto de ti porque te amo.

Joaquim Pessoa, in 'Os Olhos de Isa'

EM FRENTE DO MAR

Pergunto a mim próprio em que noite nos perdemos?,
que desencontro nos levou de um a outro lado das
nossas vidas? e que caminhos evitámos para que os nossos
passos se não voltassem a cruzar? Mas as perguntas que
te faço, hoje, já não têm resposta. Sento-me contigo,
nesta mesa da memória, e partilho o prato da solidão. Tu,
na cadeira vazia onde te imagino, sacodes o cabelo com
um aceno de ironia. E dou-te razão: as coisas podiam
ter sido de outro modo. Não te disse as palavras que
esperaste; e havia o mar, com as suas ondas, nessa tarde
em que me puxaste para longe da cidade, como se
a noite não nos obrigasse a voltar, quando o horizonte
se apagou a nossa frente. Depois disso, nenhuma
pergunta tem resposta. O que é absurdo há-de continuar
absurdo, como o horizonte não se voltou a abrir,
trazendo de volta os teus olhos que me pediam que
os olhasse, até que a noite me impedisse de o fazer.



NUNO JÚDICE, in O ESTADO DOS CAMPOS (Pub. Dom Quixote, 2003)

sábado, 12 de novembro de 2011

POEMA PERDIDO



Porque eu trazia rios de frescura
E claros horizontes de pureza
Mas tudo se perdeu ante a secura
De combater em vão

E as arestas finas e vivas do meu reino
São o claro brilhar da solidão.


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in CORAL (1950), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

Sei que estou só e gelo entre as folhagens

Sei que estou só e gelo entre as folhagens
Nenhuma gruta me pode proteger
Como um laço deslaça-se o meu ser
E nos meus olhos morrem as paisagens.

Desligo da minha alma a melodia
Que inventei no ar. Tombo das imagens
Como um pássaro morto das folhagens
Tombando se desfaz na terra fria.




SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, In CORAL, 1950, in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

AS FRÁGEIS HASTES



Não voltarei à fonte dos teus flancos
ao fogo espesso do verão
a escorrer infatigável
dos espelhos, não voltarei.

Não voltarei ao leito breve
onde quebrámos uma a uma
todas as frágeis
hastes do amor.

Eis o outono: cresce a prumo.
Anoitecidas águas
em febre em fúria em fogo
arrastam-me para o fundo.



EUGÉNIO DE ANDRADE, in OBSCURO DOMÍNIO (1971) e POESIA DE EUGÉNIO DE ANDRADE (Modo de Ler, 2011)

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

domingo, 6 de novembro de 2011




"Quando fazemos tudo para que nos amem e não conseguimos, resta-nos um último recurso: não fazer mais nada. Por isso, digo, quando não obtivermos o amor, o afeto ou a ternura que havíamos solicitado, melhor será desistirmos e procurar mais adiante os sentimentos que nos negaram. Não fazer esforços inúteis, pois o amor nasce, ou não, espontaneamente, mas nunca por força de imposição. Às vezes, é inútil esforçar-se demais, nada se consegue;outras vezes, nada damos e o amor se rende aos nossos pés. Os sentimentos são sempre uma surpresa. Nunca foram uma caridade mendigada, uma compaixão ou um favor concedido. Quase sempre amamos a quem nos ama mal, e desprezamos quem melhor nos quer. Assim, repito, quando tivermos feito tudo para conseguir um amor, e falhado, resta-nos um só caminho...o de mais nada fazer."




CLARICE LISPECTOR

sábado, 5 de novembro de 2011

NOS TEUS BRAÇOS


Nos teus braços,
Morreria
Se ontem fosse amanhã.
Morreria
Por gostar
Da maneira como gostas,
Se caísse em teus braços.
Se os meus braços vacilassem,
Evitaria o teu olhar.
E morreria outra vez
Para poder ter
O motivo de te encontrar.
Nos teus braços,
Morreria.
Novamente…




PAULO EDUARDO CAMPOS, in NA SERENIDADE DOS RIOS QUE ENLOUQUECEM (Amores Perfeitos, 2005)

E por vezes as noites duram meses

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos. E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos.


David Mourão-Ferreira

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Devias estar aqui rente aos meus lábios

Devias estar aqui rente aos meus lábios
para dividir contigo esta amargura
dos meus dias partidos um a um

- Eu vi a terra limpa no teu rosto,
Só no teu rosto e nunca em mais nenhum

Eugénio de Andrade

E ao anoitecer




e ao anoitecer adquires nome de ilha ou de vulcão
deixas viver sobre a pele uma criança de lume
e na fria lava da noite ensinas ao corpo
a paciência o amor o abandono das palavras
o silêncio
e a difícil arte da melancolia

Al Berto

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

"O amor é grande e cabe nesta janela sobre o mar. O mar é grande e cabe na cama e no colchão de amar. O amor é grande e cabe no breve espaço de beijar."

Carlos Drummond de Andrade

domingo, 30 de outubro de 2011

Coração sem imagens

Deito fora as imagens,
Sem ti para que me servem
as imagens?

Preciso habituar-me
a substituir-te
pelo vento,
que está em toda a parte
e cuja direcção
é igualmente passageira
e verídica.

Preciso habituar-me ao eco dos teus passos
numa casa deserta,
ao trémulo vigor de todos os teus gestos
invisíveis,
à canção que tu cantas e que mais ninguém ouve
a não ser eu.

Serei feliz sem as imagens.
As imagens não dão
felicidade a ninguém.

Era mais difícil perder-te,
e, no entanto, perdi-te.

Era mais difícil inventar-te,
e eu te inventei.

Posso passar sem as imagens
assim como posso
passar sem ti.

E hei-de ser feliz ainda que
isso não seja ser feliz.

Raul de Carvalho

.....

Do nosso rio de água,
pura, doce e transparente,
eu sou o leito,
tu és nascente,
não deixes de verter
ajuda-me a correr,

Não sei viver contigo ausente...


JOSÉ DUARTE (a publicar)

sábado, 29 de outubro de 2011

ATÉ AMANHÃ


Sei agora como nasceu a alegria,
como nasce o vento entre barcos de papel,
como nasce a água ou o amor
quando a juventude não é uma lágrima.

É primeiro só um rumor de espuma
à roda do corpo que desperta,
sílaba espessa, beijo acumulado,
amanhecer de pássaros no sangue.

É subitamente um grito,
um grito apertado nos dentes,
galope de cavalos num horizonte
onde o mar é diurno e sem palavras.

Falei de tudo quanto amei.
De coisas que te dou para que tu as ames comigo:
a juventude, o vento e as areias.



EUGÉNIO DE ANDRADE, in ATÉ AMANHÃ (1ª ed., 1956, Limiar, 13ª, 2002)

TERNURA

Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Traço a doçura dos que aceitam melancolicamente.

E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mão cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar estático da aurora.




VINICIUS DE MORAIS, in ANTOLOGIA POÉTICA (Pub. D. Quixote, 2008)





SONETO

Lábios que encontram outros lábios
num meio de caminho, como peregrinos
interrompendo a devoção, nem pobres
nem sábios numa embriaguez sem vinho

que silêncio os entontece quando
de súbito se tocam e, cegos ainda,
procuram a saída que o olhar esquece
num murmúrio de vagos segredos?

É de tarde, na melancolia turva
dos poentes, ouvindo um tocar de sinos
escorrer sob o azul dos céus quentes,

que essa imagem desce de agosto, ou
setembro, e se enrola sem desgosto
no chão obscuro desse amor que lembro.





Nuno JÚDICE


Felicidade
é abrir-te devagar como uma porta
rangendo murmúrios
para o meu corpo entrar.

E depois, depois voltar a fechá-la atrás de mim
e caminhar em ti em ritmos certos
para que os meus passos se confundam com o
bater do teu coração.

E depois, depois semear em ti trigo novo
e soltar papoilas nuas da minha boca
para que se misturem com o teu sangue.

E depois,
depois perder-me nesse sonho sem regresso
só com a luz dos teus olhos
a levarem notícias do mundo!...

JOÃO MORGADO, in COLECTÂNEA DE POESIA CONTEMPORÂNEA DA BEIRA INTERIOR, (Kreamus,2001)

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Fumo

Longe de ti são ermos os caminhos,
Longe de ti não há luar nem rosas;
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!


Florbela Espanca

domingo, 23 de outubro de 2011

As Facas

Quatro letras nos matam quatro facas
que no corpo me gravam o teu nome.
Quatro facas amor com que me matas
sem que eu mate esta sede e esta fome.


Este amor é de guerra. (De arma branca).
Amando ataco amando contra-atacas
este amor é de sangue que não estanca.
Quatro letras nos matam quatro facas.


Armado estou de amor. E desarmado.
Morro assaltando morro se me assaltas.
E em cada assalto sou assassinado.


Quatro letras amor com que me matas.
E as facas ferem mais quando me faltas.
Quatro letras nos matam quatro facas.

Manuel Alegre, in “Obra Poética”

SE TU VIESSES VER-ME...

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...


FLORBELA ESPANCA, in SONETOS (Alétheia Ed., 2010)

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Dia 349





Ontem fui uma luz. Hoje sou uma luz.
Uma luz serei entre as tuas espáduas e no interior
da tua boca, na tua nuca incandescente, no ombro que
a minha língua percorre, faminta e transtornada.
A tua pele é um doce delírio, um fogo em território de paixão,
percorrido à velocidade desta luz. Sobre ela correm
animais assustados, fugindo da voracidade dos meus lábios,
dos meus dentes que mordem a surpresa.
E em cada centímetro do teu corpo beijo árvores e casas
de uma cidade branca onde Deus habita, e onde esvoaça
para o céu da minha boca um coro de anjos transparentes
que exultam aleluias no meu sangue.
O meu corpo é uma pátria de desejo. A tua boca
um poema manuscrito, dito em silêncio à minha boca
que mastiga as tuas palavras de seda, e de sede. E de incêndio.
Beijo a tua voz, e mordo nos teus gemidos as raízes da água,
as raízes do dia, as raízes da música, enquanto
longe dos nossos beijos, tudo grita, tudo se cala gritando.
Só a noite chegará atrasada à festa do teu corpo
no meu corpo. Da tua voz na minha voz. Das tuas mãos
nas minhas mãos. Da tua pele na minha pele.
E nem mesmo ela conseguirá aperceber-se de qual
de nós é o sorriso que quase a ilumina. Porque
as nossas bocas permanecerão
coladas.


JOAQUIM PESSOA, in ANO COMUM (Litexa Ed., 2011)

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Herido de amor






Amor, amor
que está herido.
Herido de amor huido ;
herido,
muerto de amor.
Decid a todos que ha sido
el ruiseñor.
Bisturí de cuatro filos,
garganta rota y olvido.
Cógeme la mano, amor,
que vengo muy mal herido,
herido de amor huido,
¡herido !
¡muerto de amor !

Federico García Lorca

terça-feira, 18 de outubro de 2011

O poeta pede a seu amor que lhe escreva

Amor de minhas entranhas, morte viva,
em vão espero tua palavra escrita
e penso, com a flor que se murcha,
que se vivo sem mim quero perder-te.
O ar é imortal. A pedra inerte
nem conhece a sombra nem a evita.
Coração interior não necessita
o mel gelado que a lua verte.

Porém eu te sofri. Rasguei-me as veias,
tigre e pomba, sobre tua cintura
em duelo de mordiscos e açucenas.
Enche, pois, de palavras minha loucura
ou deixa-me viver em minha serena
noite da alma para sempre escura.

Federico Garcia Lorca

Se as minhas mãos pudessem desfolhar

Eu pronuncio teu nome
nas noites escuras,
quando vêm os astros
beber na lua
e dormem nas ramagens
das frondes ocultas.
E eu me sinto oco
de paixão e de música.
Louco relógio que canta
mortas horas antigas.

Eu pronuncio teu nome,
nesta noite escura,
e teu nome me soa
mais distante que nunca.
Mais distante que todas as estrelas
e mais dolente que a mansa chuva.

Amar-te-ei como então
alguma vez? Que culpa
tem meu coração?
Se a névoa se esfuma,
que outra paixão me espera?
Será tranqüila e pura?
Se meus dedos pudessem
desfolhar a lua!!

Federico Garcia Lorca

domingo, 16 de outubro de 2011

ESPERA

Deito-me tarde
Espero por uma espécie de silêncio
Que nunca chega cedo
Espero a atenção a concentração da hora tardia
Ardente e nua
É então que os espelhos acendem o seu segundo brilho
É então que se vê o desenho do vazio
É então que se vê subitamente
A nossa própria mão poisada sobre a mesa

É então que se vê passar o silêncio

Navegação antiquíssima e solene



SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in GEOGRAFIA (1967), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

ADEUS





É um adeus...
Não vale a pena sofismar a hora!
É tarde nos meus olhos e nos teus...
Agora,
O remédio é partir discretamente,
Sem palavras,
Sem lágrimas,
Sem gestos.
De que servem lamentos e protestos
Contra o destino?
Cego assassino
A que nenhum poder
Limita a crueldade,
Só o pode vencer a humanidade
Da nossa lucidez desencantada.
Antes da iniquidade
Consumada,
Um poema de líquido pudor,
Um sorriso de amor,
E mais nada.

Miguel Torga

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

VEM COMIGO

vem comigo
ver as pirâmides fantásticas do vento
no interior luminoso da terra encontrarás
o segredo de quartzo para desvendares o tempo
onde contemplamos a fulva doçura das cerejas

iremos para onde os restos de vida não acordem
a dor da imensa árvore a sombra
dos cabelos carregados de pólenes e de astros
crescemos lado a lado com o dragão
o súbito relâmpago dos frutos amadurecendo
iluminará por um instante as águas do jardim
e o alecrim perfumará os noctívagos passos
há muito prisioneiros no barro
onde o rosto se transforme e morre
e já não nos pertence

vem comigo
praticar essa arte imemorial de quem espera
não se sabe o quê junto à janela
encolho-me
como se fechasse uma gaveta para sempre
caminhasse onde caiu um lenço
mas levanto os olhos
quando o verão entra pelo quarto e devassa
esta humilde existência de papel

vem comigo
as palavras nada podem revelar
esqueci-as quase todas onde vislumbro um fogo
pegando fogo ao corpo mais próximo do meu





AL BERTO, in O MEDO (1987)

MEDO DE AMAR


O céu está parado, não conta nenhum segredo
A estrada está parada, não leva a nenhum lugar
A areia do tempo escorre de entre meus dedos
Ai que medo de amar!

O sol põe em relevo todas as coisas que não pensam
Entre elas e eu, que imenso abismo secular...
As pessoas passam, não ouvem os gritos do meu silêncio
Ai que medo de amar!

Uma mulher me olha, em seu olhar há tanto enlevo
Tanta promessa de amor, tanto carinho para dar
Eu me ponho a soluçar por dentro, meu rosto está seco
Ai que medo de amar!

Dão me uma rosa, aspiro fundo em seu recesso
E parto a cantar canções, sou um patético jogral
Mas viver me dói tanto! e eu hesito, estremeço...
Ai que medo de amar!

E assim me encontro: entro em crepúsculo, entardeço
Sou como a última sombra se estendendo sobre o mar
Ah! amor, meu tormento!... como por ti padeço...
Ai que medo de amar!

Vinicius de Moraes

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Se eu não te amar mais




Se eu não te amar mais me
Caia o mar nos ombros
Me caia
Este silêncio pelos ossos dentro
Me cegue os olhos esta sombra
Me cerre
Esta noite num escuro mais profundo
Do que a chuva de ti de mãos tão leves
A figueira do meu sangue se emudeça
De pássaros à espera dos teus passos
De outra voz por sobre a minha
Morta
E as ruas do teu corpo eu desaprenda
Como desaprendi os dedos que em tocam
E se eu não te amar mais me caia a casa
De costa no teu peito como o vento



António Lobo Antunes

CANTIGA, PARTINDO-SE




Senhora, partem tam tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Tam tristes, tam saudosos,
tam doentes da partida,
tam cansados, tam chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.

Partem tam tristes os tristes
tam fora d‘esperar bem
que nunca tam tristes vistes,
outros nenhuns por ninguém.

João Roiz de Castelo-Branco


A hora da partida

A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.

A hora da partida soa quando
as árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.

Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida.



Sophia de Mello Breyner Andresen

domingo, 9 de outubro de 2011

AMOR





o teu rosto à minha espera, o teu rosto
a sorrir para os meus olhos, existe um
trovão de céu sobre a montanha.

as tuas mãos são finas e claras, vês-me
sorrir, brisas incendeiam o mundo,
respiro a luz sobre as folhas da olaia.

entro nos corredores de outubro para
encontrar um abraço nos teus olhos,
este dia será sempre hoje na memória.

hoje compreendo os rios. a idade das
rochas diz-me palavras profundas,
hoje tenho o teu rosto dentro de mim.











JOSÉ LUÍS PEIXOTO, in A CASA, A ESCURIDÃO (Temas e Debates, 2002)

sábado, 8 de outubro de 2011

Procuro-te

Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.

Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.

Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.

Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.

Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.

Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre — procuro-te.

Eugénio de Andrade, in "As Palavras Interditas"

NO TEU ROSTO

No teu rosto
competem mil madrugadas

Nos teus lábios
a raiz do sangue
procura suas pétalas

A tua beleza
é essa luta de sombras
é o sobressalto da luz
num tremor de água
é a boca da paixão
mordendo o meu sossego








MIA COUTO, in "RAIZ DE ORVALHO E OUTROS POEMAS" (Caminho, 2009)

Esquece-te de Mim, Amor

Esquece-te de mim, Amor,
das delícias que vivemos
na penumbra daquela casa,
Esquece-te.
Faz por esquecer
o momento em que chegámos,
assim como eu esqueço
que partiste,
mal chegámos,
para te esqueceres de mim,
esquecido já
de alguma vez
termos chegado.

António Mega Ferreira, in “Os Princípios do Fim”

Nunca Ninguém Amou Completamente

Vou deitar-te na eternidade, que é esse o teu lugar, é esse, é esse. E agora só tenho que te amar tudo de ti, não deixar nada de fora. Porque, sabê-lo-ás? Nunca ninguém amou completamente, houve sempre uma forma de amar fragmentária, parcial. Amou-se sempre em função de uma fracção do amor como se usou um vestuário segundo a moda, desde o calção ou o penante de plumas. Vou-te amar como Deus. Não, não. Deus não sente prazer nem movimento progressivo até ao prazer, coitado, é tão infeliz. Vou-te amar como um homem desde que os há, desde o tempo das cavernas até hoje e com um pequeno suplemento que é só meu.

Vergílio Ferreira, in "Em Nome da Terra"

Dia 52

Tenho sede quando te beijo. Quando não te beijo tenho sede.


JOAQUIM PESSOA, in ANO COMUM, (Litexa Ed. 2011)

Aves

ter-te suspensa
do meu lume
na fogosa boca
o ardume
a explodir
tu
ardida e intacta
sonho e nuvem
voz exacta
um soltar
de aves
em pânico
na relva do olhar

Fernando Namora, in 'Nome Para Uma Casa'

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Meu Deus, me dê a Coragem

Meu Deus, me dê a coragem
de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,
todos vazios de Tua presença.
Me dê a coragem de considerar esse vazio
como uma plenitude.
Faça com que eu seja a Tua amante humilde,
entrelaçada a Ti em êxtase.
Faça com que eu possa falar
com este vazio tremendo
e receber como resposta
o amor materno que nutre e embala.
Faça com que eu tenha a coragem de Te amar,
sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo.
Faça com que a solidão não me destrua.
Faça com que minha solidão me sirva de companhia.
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.
Faça com que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir
como se estivesse plena de tudo.
Receba em teus braços
o meu pecado de pensar.

Clarice Lispector

Mas há a vida

Mas há a vida
que é para ser
intensamente vivida, há o amor.

Que tem que ser vivido
até a última gota.
Sem nenhum medo.
Não mata.




Clarice Lispector

NÃO VOU PÔR-TE FLORES DE LARANJEIRA NO CABELO

Não vou pôr-te flores de laranjeira no cabelo
nem fazer explodir a madrugada nos teus olhos.

Eu quero apenas amar-te lentamente
como se todo o tempo fosse nosso
como se todo o tempo fosse pouco
como se nem sequer houvesse tempo.

Soltar os teus seios.
Despir as tuas ancas.
Apunhalar de amor o teu ventre.





JOAQUIM PESSOA, in OS OLHOS DE ISA (1980), in 12 POEMAS - ANTOLOGIA POÉTICA (Litexa, 3º Ed., 1989)

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Tem o amor a arte de tornar eterno



Tem o amor a arte de tornar eterno
aquele que por amor tem de morrer
e até de morrer jovem amiúde pois os deuses amam
aquele que perece em plena juventude
e assim se fixa petrifica e permanece

Ruy Belo

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

"Há momentos na vida em que sentimos tanto a falta de alguém, que o que mais queremos é tirar essa pessoa de nossos sonhos... e abraçá-la."


Clarice Lispector

LABIRINTO




Labirinto ou não foi nada
Talvez houvesse uma flor
aberta na tua mão.
Podia ter sido amor,
e foi apenas traição.

É tão negro o labirinto
que vai dar à tua rua. . .
Ai de mim, que nem pressinto
a cor dos ombros da Lua!

Talvez houvesse a passagem
de uma estrela no teu rosto.
Era quase uma viagem:
foi apenas um desgosto.

É tão negro o labirinto
que vai dar à tua rua...
Só o fantasma do instinto
na cinza do céu flutua.

Tens agora a mão fechada;
no rosto, nenhum fulgor.
Não foi nada, não foi nada:
podia ter sido amor.




DAVID MOURÃO FERREIRA, in OBRA POÉTICA (1948-1988), ( Ed Presença, 5ª ed., 2006)

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Ascensão



Nunca estive tão perto da verdade.
Sinto-a contra mim, Sei que vou com ela.

Tantas vezes falei negando sempre,
esgotando todas as negações possíveis,
conduzindo-as ao cerco da verdade,
que hoje, côncavo tão côncavo,

sou inteiramente liso interiormente,
sou um aquário dos mares,
sou apenas um balão cheio dessa verdade do mundo.

Sei que vou com ela,
sinto-a contra mim, -
nunca estive tão perto da verdade.

Jorge de Sena, in 'Perseguição'

domingo, 25 de setembro de 2011

Soneto do Amor Total

AMO-TE TANTO, meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade
Amo-te, enfim, como grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente

E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo, de repente
Hei-de morrer de amar mais do que pude.

Vinicius de Moraes, in 'O Operário em Construção'

QUERO-TE PARA ALÉM DAS COISAS JUSTAS

Quero-te para além das coisas justas
e dos dias cheios de grandeza.
A dor não tem significado quando me roubam as árvores,
as ágatas, as águas.
O meu sol vem de dentro do teu corpo,
a tua voz respira a minha voz.
De quem são os ídolos, as culpas, as vírgulas
dos beijos? Discuto esta noite
apenas o pudor de preferir-te
entre as coisas vivas.

JOAQUIM PESSOA, in OS DIAS DA SERPENTE (1981), in OBRA POÉTICA 03 (Litexa, 2002)

sábado, 24 de setembro de 2011

O Verão

Estás no verão,
num fio de repousada água, nos espelhos perdidos sobre
a duna.
Estás em mim,
nas obscuras algas do meu nome e à beira do nome
pensas:
teria sido fogo, teria sido ouro e todavia é pó,
sepultada rosa do desejo, um homem entre as mágoas.
És o esplendor do dia,
os metais incandescentes de cada dia.
Deitas-te no azul onde te contemplo e deitada reconheces
o ardor das maçãs,
as claras noções do pecado.
Ouve a canção dos jovens amantes nas altas colinas dos
meus anos.
Quando me deixas, o sol encerra as suas pérolas, os
rituais que previ.
Uma colmeia explode no sonho, as palmeiras estão em
ti e inclinam-se.
Bebo, na clausura das tuas fontes, uma sede antiquíssima.
Doce e cruel é setembro.
Dolorosamente cego, fechado sobre a tua boca. 


José Agostinho Baptista, in “Paixão e Cinzas”

Melodia

Este é o orvalho dos teus olhos.
Esta é a rosa dos teus vales.
O silêncio dos olhos está no silêncio das rosas.
Tu estás no meio,
entre a dor e o espanto da treva.
Arrancas-te ao mundo e és a perfumada
distância do mundo.
Chego sem saber, à beira dos séculos.
Despenho-me nos teus lagos quando para ti
canta o cisne mais triste.
O pólen esvoaça no meu peito, junto às tuas
nuvens.
Esta é a canção do teu amor.
Esta é a voz onde vive a tua canção.
As tuas lágrimas passam pela minha terra
a caminho do mar.



José Agostinho Baptista

NUNCA MAIS TE DAREI O TEMPO PURO




Nunca mais te darei o tempo puro
Que em dias demorados eu teci
Pois o tempo já não regressa a ti
E assim eu não regresso e não procuro
O deus que sem esperança te pedi.





SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in MAR NOVO
(Guimarães Ed., 1958), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Amor Pacífico e Fecundo


Não quero amor
que não saiba dominar-se,
desse, como vinho espumante,
que parte o copo e se entorna,
perdido num instante.

Dá-me esse amor fresco e puro
como a tua chuva,
que abençoa a terra sequiosa,
e enche as talhas do lar.
Amor que penetre até ao centro da vida,
e dali se estenda como seiva invisível,
até aos ramos da árvore da existência,
e faça nascer
as flores e os frutos.
Dá-me esse amor
que conserva tranquilo o coração,
na plenitude da paz!

Rabindranath Tagore, in "O Coração da Primavera"
Tradução de Manuel Simões

Elogio da Dialéctica

A injustiça avança hoje a passo firme
Os tiranos fazem planos para dez mil anos
O poder apregoa: as coisas continuarão a ser como são
Nenhuma voz além da dos que mandam
E em todos os mercados proclama a exploração;
Isto é apenas o meu começo

Mas entre os oprimidos muitos há que agora dizem
Aquilo que nós queremos nunca mais o alcançaremos

Quem ainda está vivo não diga: nunca
O que é seguro não é seguro
As coisas não continuarão a ser como são
Depois de falarem os dominantes
Falarão os dominados
Quem pois ousa dizer: nunca
De quem depende que a opressão prossiga? De nós
De quem depende que ela acabe? Também de nós
O que é esmagado que se levante!
O que está perdido, lute!
O que sabe ao que se chegou, que há aí que o retenha
E nunca será: ainda hoje
Porque os vencidos de hoje são os vencedores de amanhã.

Bertolt Brecht

Eu Sei Que Vou Te Amar

Eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida eu vou te amar
A cada despedida eu vou te amar
Desesperadamente
Eu sei que eu vou te amar

E cada verso meu será pra te dizer
Que eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida

Eu sei que vou chorar
A cada ausência tua eu vou chorar
Mas cada volta tua há de apagar
O que essa ausência tua me causou

Eu sei que vou sofrer
A eterna desventura de viver
A espera de viver ao lado teu
Por toda a minha vida

Vinicius de Moraes


Serenata

Permita que eu feche os meus olhos,
pois é muito longe e tão tarde!
Pensei que era apenas demora,
e cantando pus-me a esperar-te.

Permite que agora emudeça:
que me conforme em ser sozinha.
Há uma doce luz no silencio,
e a dor é de origem divina.

Permite que eu volte o meu rosto
para um céu maior que este mundo,
e aprenda a ser dócil no sonho
como as estrelas no seu rumo.


Cecília Meireles

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio

Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio
E suportar é o tempo mais comprido.

Peço-Te que venhas e me dês a liberdade,
Que um só dos teus olhares me purifique e acabe.

Há muitas coisas que eu quero ver.

Peço-Te que sejas o presente.
Peço-Te que inundes tudo.
E que o teu reino antes do tempo venha.
E se derrame sobre a Terra
Em primavera feroz precipitado.



Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, 20 de setembro de 2011

"E ninguém é eu, e ninguém é você. Esta é a solidão."


Clarice Lispector

domingo, 18 de setembro de 2011

É por Ti que Vivo

Amo o teu túmido candor de astro
a tua pura integridade delicada
a tua permanente adolescência de segredo
a tua fragilidade acesa sempre altiva

Por ti eu sou a leve segurança
de um peito que pulsa e canta a sua chama
que se levanta e inclina ao teu hálito de pássaro
ou à chuva das tuas pétalas de prata

Se guardo algum tesouro não o prendo
porque quero oferecer-te a paz de um sonho aberto
que dure e flua nas tuas veias lentas
e seja um perfume ou um beijo um suspiro solar

Ofereço-te esta frágil flor esta pedra de chuva
para que sintas a verde frescura
de um pomar de brancas cortesias
porque é por ti que vivo é por ti que nasço
porque amo o ouro vivo do teu rosto

António Ramos Rosa, in 'O Teu Rosto'

sábado, 17 de setembro de 2011

Eu Simplesmente Amo-te

Eu amo-te sem saber como, ou quando, ou a partir de onde. Eu simplesmente amo-te, sem problemas ou orgulho: eu amo-te desta maneira porque não conheço qualquer outra forma de amar sem ser esta, onde não existe eu ou tu, tão intimamente que a tua mão sobre o meu peito é a minha mão, tão intimamente que quando adormeço os teus olhos fecham-se.

Pablo Neruda, in "Cem Sonetos de Amor"

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Era assim:



 
era assim:
                  
                  queres?
                  queres algo?
                  queres desejar?
                  desejas querer?
                  desejas-me?
                  desejas querer-me?
                  queres desejar-me?
                  queres querer-me?
                  queres que te deseje?
                  desejas que te queira?
                  queres que te queira?
quanto me
queres?
                                                         quanto me
desejas?
ah   quanto te quero
                         quando te quero
                         quando me queres...



Ana Hatherly
um calculador de improbabilidades
Quimera
2001

I - Canto-te


 
Canto-te      para que tu definitivamente
existas
Canto o teu nome porque só as coisas cantadas
realmente são e só o nome pronunciado inicia
a mágica corrente
Canto o teu nome como o homem fazia eclodir
o fogo do atrito das pedras
Canto o teu nome como o feiticeiro invoca
a magia do remédio
Canto o teu nome como um animal uiva
de
Como os animais pequenos bebem nos regatos depois
das grandes feras
Canto-te
e tu definitivamente existes nos meus olhos
Sempre abertos porque é sempree os meus olhos
são os olhos da criança que nós somos sempre
diante da imensidão do teu espaço

Canto-te
e os meus olhos sempre abertos são a pergunta
instante pendente de eu te interrogar

e interrogo as coisas em seu ser noctumo
em seu estar sombriamente presentes na tua claridade
obscura
E como é sempre
meus olhos abertos prescrutam-te

símbolo de tudo o que me foge
como apertar o ar dentro das mãos
e querer agarrar-te

oh substância 
Canto-te

com a fragilidade de tudo que existe perante
uma eternidade demasiado nocturna para os nossos
olhos infantis perante a tua antiguidade
futura
E a nossa voz é uma pequena onda no dorso 
do teu oceano de matéria
Um leve arrepio apenas na espantosa espessura
de teu éter
Ah no ar é que tudo acontece
no ar nocturno das idades esquecidas
que previamente desconheceremos
No espaço é que tudo acontece
e o espaço é uma grande        muito quieta 
onde os nossos olhos penetram
no não sabermos até onde
ali 
além 
no além onde tudo acontece
Oh
oh espaço de tudo ser tão ligeiro e impalpável
e sermos nós a respiração da
teu bafo ritmado
imperceptível distância
Oh       augusta majestática dignidade do silêncio
Oh impassibilidade da tua mecânica celeste
Oh organismo primeiro de todos os fins secretos 
da compreensão das coisas
Oh inorgânico organismo dos seres
que se devoram 
Oh       diz
a quem servimos nós de pasto
Canto-te
como quem pronuncia o Mantra esotérico do teu nome
Canto-te e grito
para que a poeira que se infiltra em todas as
coisas se erga de ti como um plâncton 
Oh Madre 
matriz das criaturas inferiores que rastejam
a teus pés cobertas de pó 
esse pó que a cada momento ameaça submergir-nos
Oh aranha enorme tecendo tua teia de pó
Oh       que desintegras tudo e tudo tu constróis
Ah       como nós lambemos tuas duras mãos
Oh       que fustigas nossos olhos com tua sombra
Enorme
Oh
que deixas tanto espaço para o silêncio
         das mil pétalas
         dos mil braços esplendorosos em seu abandono
         dos murmúrios
          dos afagos
          sangue derramado sobre o mundo
Oh
Porque és sempre tão premente?
e sempre estás ausentemente
na tua constância em todas as coisas?

Oh sono
Oh         morte tão desejada e longa
         mágica povoada de átomos
milhões de espíritos enchem o teu sopro
E penetras em nós como uma bala
E tudo morre quando tu chegas
E tudo se dilui e se transforma em ti
            alada presciência de tudo acontecer
tão longe de nós e tão antigamente
e tudo nos ultrapassar com soberana indiferença
ante os nossos olhos cegos pelo teu negrume
Oh 
brilha para dentro de mim
Acende teus luzeiros em meus olhos
Ergue teus braços oh            prenhe de tudo
Oh vaso
Oh via láctea de nos amamentares com teu leite
de sombra
Oh       úbere e pródiga
Aleita tua ninhada faminta
Grande fera luzidia
Grande mito
Grande deus antigo
Oh         urna onde todos dormimos
Oh
Meus olhos choram já de tanto prescrutar-te
E canto-te
Canto-te
Para que tu existas
E eu não veja mais nada além de ti
E nada mais deseje senão que venhas outra vez
levar-me para dentro do teu ventre
de nunca mais haver
E nada mais haver que


Oh tu         definitivamente além



Ana Hatherly
Poemas de Eros Frenético e Contemporâneos
um calculador de improbabilidades
Quimera, 1ª edição 2001

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

A Sofreguidão de um Instante



Tudo renegarei menos o afecto,
e trago um ceptro e uma coroa,
o primeiro de ferro, a segunda de urze,
para ser o rei efémero
desse amor único e breve
que se dilui em partidas
e se fragmenta em perguntas
iguais às das amantes
que a claridade atordoa e converte.
Deixa-me reinar em ti
o tempo apenas de um relâmpago
a incendiar a erva seca dos cumes.
E se tiver que montar guarda,
que seja em redor do teu sono,
num êxtase de lábios sobre a relva,
num delírio de beijos sobre o ventre,
num assombro de dedos sob a roupa.
Eu estava morto e não sabia, sabes,
que há um tempo dentro deste tempo
para renascermos com os corais
e sermos eternos na sofreguidão de um instante.

José Jorge Letria, in "Variantes do Oiro"

Segue o Teu Destino

Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nos queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-proprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

Ricardo Reis, in "Odes"
Heterónimo de Fernando Pessoa

Há palavras que nos beijam



Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Húmido de beijos e de lágrimas

Húmido de beijos e de lágrimas,
ardor da terra com sabor a mar,
o teu corpo perdia-se no meu.

(Vontade de ser barco ou de cantar.)



Eugénio de Andrade

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Nega-me o pão, o ar

Nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.

Pablo Neruda

Não Tenho para Ti Quotidiano


Não tenho para ti quotidiano
mais que a polpa seca ou vento grosso,
ter existido e existir ainda,
querer a mais a mola que tu sejas,
saber que te conheço e vai chegar
a mão rasa de lona para amar.

Não tenho braço livre mais que olhar
para ele, e o que faz que tu não queiras.
Tenho um tremido leito em vala aberta,
olhos maduros, cartas e certezas.

Neste comboio longo, surdo e quente,
vou lá ao fundo, marco o Ocupado.
Penso em ti, meu amor, em qualquer lado.
Batem-me à porta e digo que está gente.

Pedro Tamen, in "Daniel na Cova dos Leões"

Escrito de Memória

Formado em direito e solidão,
às escuras te busco enquanto a chuva brilha.
É verdade que olhas, é verdade que dizes.
Que todos temos medo e água pura.

A que deuses te devo, se te devo,
que espanto é este, se há razão pra ele?
Como te busco, então, se estás aqui,
ou, se não estás, por te quero tida?
Quais olhos e qual noite?
Aquela
em que estiveste por me dizeres o nome.

Pedro Tamen, in “Tábua das Matérias”

sábado, 10 de setembro de 2011

O Amor

Estou a amar-te como o frio
corta os lábios.

A arrancar a raiz
ao mais diminuto dos rios.

A inundar-te de facas,
de saliva esperma lume.

Estou a rodear de agulhas
a boca mais vulnerável

A marcar sobre os teus flancos
o itinerário da espuma

Assim é o amor: mortal e navegável.

Eugénio de Andrade, in "Obscuro Domínio"

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Ausência






Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face.
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas.
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.




Vinícius de Moraes

Ainda que Mal

Ainda que mal pergunte,
ainda que mal respondas;
ainda que mal te entenda,
ainda que mal repitas;
ainda que mal insista,
ainda que mal desculpes;
ainda que mal me exprima,
ainda que mal me julgues;
ainda que mal me mostre,
ainda que mal me vejas;
ainda que mal te encare,
ainda que mal te furtes;
ainda que mal te siga,
ainda que mal te voltes;
ainda que mal te ame,
ainda que mal o saibas;
ainda que mal te agarre,
ainda que mal te mates;
ainda assim te pergunto
e me queimando em teu seio,
me salvo e me dano: amor.

Carlos Drummond de Andrade, in 'As Impurezas do Branco'

Amor


o teu rosto à minha espera, o teu rosto
a sorrir para os meus olhos, existe um
trovão de céu sobre a montanha.

as tuas mãos são finas e claras, vês-me
sorrir, brisas incendeiam o mundo,
respiro a luz sobre as folhas da olaia.

entro nos corredores de outubro para
encontrar um abraço nos teus olhos,
este dia será sempre hoje na memória.

hoje compreendo os rios. a idade das
rochas diz-me palavras profundas,
hoje tenho o teu rosto dentro de mim.

José Luís Peixoto, in "A Casa, A Escuridão"

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

chove

o mundo húmido, poético
ganha outra densidade
- longe do medo.

gosto de observar a chuva

a paz
nas suas vestes

a chuva é plena de instantes intocáveis

nós somos
simplesmente humanos

Ondjaki

dentro de mim faz sul

que língua falam os pássaros
de madrugada
que não a do amor?

escuto a madrugada
- lento manancial de céus.

os pássaros
São mais sabedores

Ondjaki

penúltima vivência




quero só
o silêncio da vela.
o afogar-me
na temperatura
da cera.
quero só
o silêncio de volta:
infinituar-me
em poros que hajam
num chão de ser cera.

Ondjaki

Poema de Amor para Uso Tópico

Quero-te, como se fosses
a presa indiferente, a mais obscura
das amantes. Quero o teu rosto
de brancos cansaços, as tuas mãos
que hesitam, cada uma das palavras
que sem querer me deste. Quero
que me lembres e esqueças como eu
te lembro e esqueço: num fundo
a preto e branco, despida como
a neve matinal se despe da noite,
fria, luminosa,
voz incerta de rosa.

Nuno Júdice, in “Poesia Reunida”

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Por que me falas nesse idioma?

Por que me falas nesse idioma? perguntei-lhe, sonhando.
Em qualquer língua se entende essa palavra.
Sem qualquer língua.
O sangue sabe-o.
Uma inteligência esparsa aprende
esse convite inadiável.
Búzios somos, moendo a vida
inteira essa música incessante.
Morte, morte.
Levamos toda a vida morrendo em surdina.
No trabalho, no amor, acordados, em sonho.
A vida é a vigilância da morte,
até que o seu fogo veemente nos consuma
sem a consumir.



Cecília Meireles

Vertentes

As palavras esperam o sono
e a música do sangue sobre as pedras corre
a primeira treva surge
o primeiro não a primeira quebra

A terra em teus braços é grande
o teu centro desenvolve-se como um ouvido
a noite cresce uma estrela vive
uma respiração na sombra o calor das árvores

Há um olhar que entra pelas paredes da terra
sem lâmpadas cresce esta luz de sombra
começo a entender o silêncio sem tempo
a torre extática que se alarga

A plenitude animal é o interior de uma boca
um grande orvalho puro como um olhar

Deslizo no teu dorso sou a mão do teu seio
sou o teu lábio e a coxa da tua coxa
sou nos teus dedos toda a redondez do meu corpo
sou a sombra que conhece a luz que a submerge

A luz que sobe entre
as gargantas agrestes
deste cair na treva
abre as vertentes onde
a água cai sem tempo

António Ramos Rosa, in “Matéria de Amor”

Viver na Beira-Mar

Nunca o mar foi tão ávido
quanto a minha boca. Era eu
quem o bebia. Quando o mar
no horizonte desaparecia e a areia férvida
não tinha fim sob as passadas,
e o caos se harmonizava enfim
com a ordem, eu
havia convulsamente
e tão serena bebido o mar.

Fiama Hasse Pais Brandão, in "Três Rostos - Ecos"

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Faz-me o favor

Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supor o que dirá
Tua boca velada
É ouvir-te já.

É ouvir-te melhor
Do que o dirias.
O que és nao vem à flor
Das caras e dos dias.

Tu és melhor -- muito melhor!--
Do que tu. Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.

Mário Cesariny

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Levar-te à boca



Levar-te à boca,
beber a água
mais funda do teu ser -

se a luz é tanta,
como se pode morrer?

Eugénio de Andrade

domingo, 4 de setembro de 2011

Este céu passará




Este céu passará e então
teu riso descerá dos montes pelos rios
até desaguar no nosso coração

Ruy Belo

sábado, 3 de setembro de 2011

Carta (Esboço)

Lembro-me agora que tenho de marcar um
encontro contigo, num sítio em que ambos
nos possamos falar, de facto, sem que nenhuma
das ocorrências da vida venha
interferir no que temos para nos dizer. Muitas
vezes me lembrei de que esse sítio podia
ser, até, um lugar sem nada de especial,
como um canto de café, em frente de um espelho
que poderia servir de pretexto
para reflectir a alma, a impressão da tarde,
o último estertor do dia antes de nos despedirmos,
quando é preciso encontrar uma fórmula que
disfarce o que, afinal, não conseguimos dizer. É
que o amor nem sempre é uma palavra de uso,
aquela que permite a passagem à comunicação ;
mais exacta de dois seres, a não ser que nos fale,
de súbito, o sentido da despedida, e que cada um de nós
leve, consigo, o outro, deixando atrás de si o próprio
ser, como se uma troca de almas fosse possível
neste mundo. Então, é natural que voltes atrás e
me peças: «Vem comigo!», e devo dizer-te que muitas
vezes pensei em fazer isso mesmo, mas era tarde,
isto é, a porta tinha-se fechado até outro
dia, que é aquele que acaba por nunca chegar, e então
as palavras caem no vazio, como se nunca tivessem
sido pensadas. No entanto, ao escrever-te para marcar
um encontro contigo, sei que é irremediável o que temos
para dizer um ao outro: a confissão mais exacta, que
é também a mais absurda, de um sentimento; e, por
trás disso, a certeza de que o mundo há-de ser outro no dia
seguinte, como se o amor, de facto, pudesse mudar as cores
do céu, do mar, da terra, e do próprio dia em que nos vamos
encontrar, que há-de ser um dia azul, de verão, em que
o vento poderá soprar do norte, como se fosse daí
que viessem, nesta altura, as coisas mais precisas,
que são as nossas: o verde das folhas e o amarelo
das pétalas, o vermelho do sol e o branco dos muros.


Nuno Júdice, in “Poesia Reunida”

Definição


Quem esquece o amor, e o dissipa, saberá
que sentimento corrompe, ou apenas se o coração
se encontra no vazio da memória? O vento
não percorre a tarde com o seu canto alucinado,
que só os loucos pressentem, para que tu
o ignores; nem a sabedoria melancólica das árvores
te oferece uma sombra para que lhe
fujas com um riso ágil de quem crê
na superfície da vida. Esses são alguns limites
que a natureza põe a quem resiste à convicção
da noite. O caminho está aberto, porém,
para quem se decida a reconhecê-los; e os própnos
passos encontram a direcção fácil nos sulcos
que o poema abriu na erva gasta da linguagem. Então,
entra nesse campo; não receies o horizonte
que a tempestade habita, à tarde, nem o vulto inquieto
cujos braços te chamam. Apropria-te do calor
seco dos vestíbulos. Bebe o licor
das conchas residuais do sexo. Assim, os teus lábios
imprimem nos meus uma marca de sangue, manchando
o verso. Ambos cedemos à promiscuidade do poente,
ignorando as nuvens e os astros. O amor
é esse contacto sem espaço,
o quarto fechado das sensações,
a respiração que a terra ouve
pelos ouvidos da treva.

Nuno Júdice, in "Um Canto na Espessura do Tempo"

Sempre na véspera de eu chegar



De que serviu ir correr mundo,
arrastar, de cidade em cidade, um amor
que pesava mais do que mil malas; mostrar
a mil homens o teu nome escrito em mil
alfabetos e uma estampa do teu rosto
que eu julgava feliz? De que me serviu


recusar esses mil homens, e os outros mil
que fizeram de tudo para eu parar, mil
vezes me penteando as pregas do vestido
cansado de viagens, ou dizendo o seu nome
tão bonito em mil línguas que eu nunca
entenderia? Porque era apenas atrás de ti


que eu corria o mundo, era com a tua voz
nos meus ouvidos que eu arrastava o fardo
do amor de cidade em cidade, o teu nome
nos meus lábios de cidade em cidade, o teu
rosto nos meus olhos durante toda a viagem,


mas tu partias sempre na véspera de eu chegar.



MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA
Nenhum nome depois
(2004)