quarta-feira, 27 de março de 2013

Não fui eu que pintei o sol no céu


Não fui eu que pintei o sol no céu,
nem as nuvens no Ar
com água de prata.

Quando nasci já tudo estava no mundo
com relvas e azuis, poentes e sombras,
pobres e cicatrizes...

Porque então estes remorsos
de andar a sofrer não sei por quem
a culpa de haver rosas e haver vida?

Palavra! não fui eu
quem atirou a lua para o céu!

JOSÉ GOMES FERREIRA, in POETA MILITANTE I - VIAGEM EM SÉCULO VINTE EM MIM (Moraes Ed., 1977; 4ª ed. Pub. D. Quixote, 1990)

ABRIGO


Abrigo-me de ti
de mim não sei
há dias em que fujo
e que me evado

há horas em que a raiva
não sequei
nem a inveja rasguei
ou a desfaço

Há dias em que nego
e outros onde nasço

há dias só de fogo
e outros tão rasgados

Aqueles onde habito
com tantos dias vagos.

MARIA TERESA HORTA, in MINHA SENHORA DE MIM, (Ed. Futura, Lisboa, 1974), in in POESIA REUNIDA (Publ. D. Quixote, 2009)

MORRER DE AMOR



Morrer de amor
ao pé da tua boca

Desfalecer
à pele
do sorriso

Sufocar
de prazer
com o teu corpo

Trocar tudo por ti
se for preciso

MARIA TERESA HORTA, in DESTINO ( Quetzal, 1988 )

Dia 168


(...) Quando voltares, toma a minha mão. Tenho saudades de mim em ti.
Tenho muitas saudades de morar dentro dos livros, e de fazer amor contigo em todas as páginas.

(excerto)
JOAQUIM PESSOA, in ANO COMUM [Introdução de Robert Simon; Posfácio de Teresa Sá Couto (Litexa Editora, 2011)]

segunda-feira, 25 de março de 2013

....


V


Eu venho do sonho e fujo da vida.
Errei no caminho para a paz prometida.

Só sei que me chama um canto de mar.
E a nau dos sonhos no céu a varar.

Ó meu capitão da barca perdida
A errar entre o sonho e o engano da vida!

NATÁLIA CORREIA, in RIO DE NÚVENS (1947), in POESIA COMPLETA - O SOL NAS NOITES E O LUAR NOS DIAS (Dom Quixote, 2007)

sexta-feira, 15 de março de 2013

Penumbra


QUARTO DE LUA


Disseste-me um segredo baixinho
Envolveste-me em noites de luar amigo
Num odor de palavra jasmim
Em convites de seda doce
Em sorrisos de cantos (e)ternos
Em maresias de noites simples
Em estendais de poesia livre
Em flor constante… que partes
Na chegada próxima…
Onde desespero
E já te aguardo!

JOSÉ LUÍS OUTONO, in MAR DE SENTIDOS (Edições Vieira da Silva, 2012)

quarta-feira, 13 de março de 2013

SONETO DO ESCURO


Amor, tenho saudades de outra vida
feita só de mil dias transparentes:
Não te esqueças de mim se vires perdida
esta voz nas palavras mais ausentes.

Porque é perto da morte que escrevemos,
cada verso contém uma ameaça:
e a ternura maior que nos dizemos
é feita de penumbra fria e baça.

Se a voz se dá no verso e na medida
é medo, meu amor, mais que vontade:
o verso nada pode contra a vida;
sabê-lo é a nossa liberdade.

É medo que nos versos esconjuro,
como riso vibrando no escuro!~

LUIS FILIPE CASTRO MENDES, in OS AMANTES OBSCUROS, in POESIA REUNIDA (Quetzal, 1999)

terça-feira, 12 de março de 2013

POEMA OCTOGÉSIMO


Frágeis como os ossos de um cristal,
os meus pensamentos aninham-se na noite
para construir o poema. A minha dor branca prefere
a luz que prenuncia a madrugada, luz bailarina
que me ilumina a pele molhada de alegria
sempre que faço em ti o trabalho doce da abelha
e me deito sobre o teu corpo para provar da vida
o melhor de todos os néctares, o mais completo
dos versos que o teu sangue me dá. Continuo
a escrever-te com o corpo. Quero ganhar
o nobel da ternura.

JOAQUIM PESSOA, in GUARDAR O FOGO (a publicar em 2013)
[com Texto introdutório das Prof. Maria da Conceição Andrade e Maria Fernanda Navarro da Universidade do Algarve]

quinta-feira, 7 de março de 2013

Se é assim que desejas


Se é assim que desejas,
se for assim do teu gosto,
cessarei de cantar!
Se com isso agitar
teu coração,
do meu olhar o triste brilho
desviarei do teu rosto...
E se eu, de súbito, te assustar
no teu passeio despreocupado,
afastar-me-ei do teu lado
e tomarei outro brilho...

Se eu te embaraçar - ai de mim -
quando teceres as tuas flores,
flor encantada,
esquivar-me-ei do teu
solitário jardim
e da tua doce imagem...
E se eu tornar a água turva
e agitada,
jamais remarei a minha barca
para a tua margem...

Rabindranath Tagore (1861-1941)

quarta-feira, 6 de março de 2013

OS SILÊNCIOS


Não entendo os silêncios
que tu fazes
nem aquilo que espreitas
só comigo

Se escondes a imagem
e a palavra
e adivinhas aquilo
que não digo

Se te calas
eu oiço e eu invento
Se tu foges
eu sei não te persigo

Estendo-te as mãos
dou-te a minha alma
e continuo a querer
ficar contigo

MARIA TERESA HORTA, in SÓ DE AMOR (Quetzal Editores, 1999)

sábado, 2 de março de 2013

UM AMOR


Aproximei-me de ti; e tu, pegando-me na mão.
puxaste-me para os teus olhos
transparentes como o fundo do mar para os afogados. Depois, na rua,
ainda apanhámos o crepúsculo.
As luzes acendiam-se nos autocarros; um ar
diferente inundava a cidade. Sentei-me
nos degraus, do cais, em silêncio.
Lembro-me do som dos teus passos,
uma respiração apressada, ou um princípio de lágrimas,
e a tua figura luminosa atravessando a praça
até desaparecer. Ainda ali fiquei algum tempo, isto é,
o tempo suficiente para me aperceber de que, sem estares ali,
continuavas ao meu lado. E ainda hoje me acompanha
essa doente sensação que
me deixaste como amada
recordação.


Nuno Júdice
in «Poesia reunida 1967 - 2000»,
"A Partilha dos Mitos" [1982],
Pref. Teresa Almeida, D. Quixote

NUNCA AS COISAS MAIS SIMPLES


Nunca são as coisas mais simples que aparecem
quando as esperamos. O que é mais simples,
como o amor, ou o mais evidente dos sorrisos, não se
encontra no curso previsível da vida. Porém, se
nos distraímos do calendário, ou se o acaso dos passos
nos empurrou para fora do caminho habitual,
então as coisas são outras. Nada do que se espera
transforma o que somos se não for isso:
um desvio no olhar; ou a mão que se demora
no teu ombro, forçando uma aproximação
dos lábios.


Nuno Júdice
in «Poesia Reunida 1967-2000»

Desfecho



Não tenho mais palavras.
Gastei-as a negar-te...
(Só a negar-te eu pude combater
O terror de te ver
Em toda a parte).
Fosse qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente,
Do teu vulto calado,
E paciente...
E lutei, como luta um solitário
Quando, alguém lhe perturba a solidão                                                                                                      Fechado num ouriço de recusas,                                                                                                     Soltei a voz, arma que tu não usas,                                                                                                    Sempre silencioso na agressão.                                                                                                 Mas o tempo moeu na sua mó
                                                                                                        O joio amargo do que te dizia...
                                                                                                        Agora somos dois obstinados,
                                                                                                        Mudos e malogrados,
                                                                                                        Que apenas vão a par na teimosia.


                                                                                                                   Miguel Torga, Câmara Ardente