domingo, 30 de agosto de 2015

O FIM DA NOITE


ela guardava os sentimentos
como um animal ferido que se agarra
à vida por de dentro

e a vai perdendo devagar
enquanto sangra e sofre
emudecendo.

então beijavas-lhe
os seus próprios gemidos, a sua
desolada liberdade, o que no seu

olhar se enevoava.
não lhe peças mais nada,
não lhe digas

mais nada, mas não deixes
que a noite tome conta dela e
dite as suas leis.

VASCO GRAÇA MOURA, in O RETRATO DE FRANCISCA MATROCO E OUTROS POEMAS (1998), in POESIA REUNIDA, 2, (Quetzal, 2012)

sábado, 29 de agosto de 2015

O meu tempo é eterno


O meu tempo é eterno.
Habito os céus
Que as aves deixaram vazios
Há já tanto tempo.
Talvez não saibas
Que povoas os meus pensamentos,
Que tomas forma nos meus sonhos.
Quando te vier buscar
Tomarei tuas mãos,
Trocaremos palavras
Pela eternidade do nosso olhar…
Eu sou o anjo do desespero.

PAULO EDUARDO CAMPOS, in NA SERENIDADE DOS RIOS QUE ENLOUQUECEM (Amores Perfeitos, Vila Nova de Famalicão, 2005)

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

PÉTALAS PRATA


Cumpliciei o teu anoitecer, lânguido tormento da saudade, que exarou o 
regresso
à nascente.
Nas pétalas prata do teu dormir, cuidei do envolver suave até ao sopro do beijo voo. Os deuses das tuas metáforas bebem agora a espuma do
sigilo, em ânsias regimentais
únicas.
Gostei da comoção táctil do teu segredo e confidenciar o meu ousar
numa loucura mergulho, que elegeste.
Bem-hajas sibilo natureza, por abrires as portadas da minha leitura 
salina.

JOSÉ LUÍS OUTONO, in MARGINÁLIA, 10 POETAS (Edita-Me, 2015)

domingo, 23 de agosto de 2015

Vem


Vem 
Além de toda a solidão 
Perdi a luz do teu viver
Perdi o horizonte 

Está bem
Prossegue lá até quereres
Mas vem depois iluminar 
Um coração que sofre 

Pertenço-te 
Até ao fim do mar 
Sou como tu 
Da mesma luz 
Do mesmo amar 

Por isso vem 
Porque te quero
Consolar 
Se não está bem 
Deixa-te andar a navegar

Pedro Ayres de Magalhães

Poema sobre a recusa


Como é possível perder-te~
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus dedos
se ter formado o afago 
sem termos sido a cidade 
nem termos rasgado pedras 
sem descobrirmos a cor 
nem o interior da erva. 

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva de ternura 
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda

Maria Teresa Horta

Sem ti


E de súbito desaba o silêncio. 
É um silêncio sem ti, 
sem álamos, 
sem luas. 

Só nas minhas mãos
oiço a música das tuas.

Eugénio de Andrade, Coração do dia

sábado, 22 de agosto de 2015

NO VELUDO DOS TEUS OLHOS...


Sonhadora
De pensamentos ao largo
de olhos postos no vento
com o areal nos dedos
e o coração ao leme
deste momento

Sei-te em mim
No turbilhão
Que me aquece o sangue
Me acalma a mente
Me deixa exangue

E abandonada em mim
entrego-me-Te
Às palavras
Onde em cofre guardadas
Serão alma iluminada
Sentimentos

Só te peço...
Guarda-me-te
Deita fora a chave
Esquece os códigos
Que eu saberei lê-los
No veludo dos teus olhos...

ANA FONSECA, in NO LEITO DO MEU PENSAMENTO (Universus, 2011)
*

(excerto)

Tudo o que passámos, naqueles dias, não era definitivo, não tinha coordenadas futuras, seria, por fim, o crescendo que iria morrer de repente. Olhava-te no sono e pensava que sabia exactamente a data em que o amor se iria desfazer. A ilha estava congelada no nosso abraço. Nos teus pensamentos era tudo o que fazia sentido. Eu tinha um prazo. Uma vida à minha espera, um regresso feito de poucas memórias. Ficarias em terra, náufrago de mim, sem perceber os destroços de nós.

PATRÍCIA REIS, in MORDER-TE O CORAÇÃO (Dom Quixote, 2007, Portugal; Ed. Língua Geral, 2007, Brasil)

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

INTUIÇÕES


Esta é a hora da paixão. Pede-me para morrer
e morrerei.

O amor cegou-me os olhos da razão, por isso
caminho alegremente para o futuro.

Quando o amor não é contemporâneo, só
a um, dói a despedida.

ANGELA LEITE, in METÁFORAS SOBRE O AMOR (C. M. Oeiras, 2001)

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Mas há a vida


Mas há a vida
que é para ser
intensamente vivida, há o amor.

Que tem que ser vivido
até a última gota.
Sem nenhum medo.
Não mata.

Clarice Lispector

Esta manhã encontrei o teu nome


Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos
e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo
doeu-me onde antes os teus dedos foram aves
de verão e a tua boca deixou um rasto de canções.

No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha
camisola; e eu despi-a para ti, a dar-te um coração
que era o resto da vida - como um peixe respira
na rede mais exausta. Nem mesmo à despedida

foram os gestos contundentes: tudo o que vem de ti
é um poema. Contudo, ao acordar, a solidão sulcara
um vale nos cobertores e o meu corpo era de novo
um trilho abandonado na paisagem. Sentei-me na cama

e repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos,
mas as sílabas caíam no fim das palavras, a dor esgota
as forças, são frios os batentes nas portas da manhã

Maria do Rosário Pedreira

domingo, 16 de agosto de 2015

Faz-me o favor


Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supor o que dirá
Tua boca velada
É ouvir-te já.

É ouvir-te melhor
Do que o dirias.
O que és nao vem à flor
Das caras e dos dias.

Tu és melhor -- muito melhor!--
Do que tu. Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.

Mário Cesariny

QUANDO PELA NOITE CHEGAS DISSOLVEM-SE AS TREVAS


Quando pela noite chegas dissolvem-se as trevas
e eu partir não quero, porque esta é a noite
que ilumina o dia, canto do silêncio, eco subtil
no discurso do mundo. Quando pela noite chegas
é meu o teu amor, e a morte tarde doce como mel.

ANA MARQUES GASTÃO, in 366 POEMAS QUE FALAM DE AMOR, org. de VASCO GRAÇA MOURA, org. de Vasco Graça Moura (Quetzal, 2003)

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Poema LXVI


Não te quero senão porque te quero
e de querer-te a não querer-te chego
e de esperar-te quando não te espero
passa meu coração do frio ao fogo.

Te quero só porque a ti te quero,
te odeio sem fim, e odiando-te te rogo,
e a medida de meu amor viageiro
é não ver-te e amar-te como um cego.

Talvez consumirá a luz de janeiro,
seu raio cruel, meu coração inteiro,
roubando-me a chave do sossego.

Nesta história só eu morro
e morrerei de amor porque te quero,
porque te quero, amor, a sangue e fogo.

Pablo Neruda,  Cem sonetos de amor

terça-feira, 11 de agosto de 2015

MUSICA MIRABILIS


Talvez a ternura
crepite no pulso,
talvez o vento
súbito se levante,
talvez a palavra
atinja o seu cume,
talvez um segredo
chegue ainda a tempo

- e desperte o lume.

EUGÉNIO DE ANDRADE, in MAR DE SETEMBRO (Limiar, 1977) , in POESIA DE EUGÉNIO DE ANDRADE (Modo de Ler, 2011)

Quero-te Apenas Porque a Ti Eu Quero


Não te quero senão porque te quero 
e de querer-te a não querer-te chego 
e de esperar-te quando não te espero
passa meu coração do frio ao fogo.

Quero-te apenas porque a ti eu quero,
a ti odeio sem fim e, odiando-te, te suplico,
e a medida do meu amor viajante
é não ver-te e amar-te como um cego.

Consumirá talvez a luz de Janeiro,
o seu raio cruel, meu coração inteiro,
roubando-me a chave do sossego.

Nesta história apenas eu morro
e morrerei de amor porque te quero,
porque te quero, amor, a sangue e fogo.

Pablo Neruda, in "Cem Sonetos de Amor"

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

TOCA-ME


Toca-me.
Sê em mim o começo
a alegria e a festa
Toca-me de leve
como um sopro
para que me incendeie
e te ilumine de raios
tempestades, emoções
Rouqueja-me os sons
do teu absoluto
e morre comigo
desta vez

EDGARDO XAVIER, in CORPO DE ABRIGO (Temas Originais, 2011)

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

NOITE


Sozinha estou entre paredes brancas
Pela janela azul entrou a noite
Com seu rosto altíssimo de estrelas.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in MAR NOVO (1958) in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Príncipe


Príncipe:
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu batia à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito tudo era apenas
lábios pálpebras intumescências
cobrindo o corpo de flutuantes volteios
de palpitações trémulas adejando pelo rosto.
Beijava os teus olhos por dentro
beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão sobre o meu pensamento
corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te.

São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me

Ana Hatherly, in "Um Calculador de Improbabilidades"

terça-feira, 4 de agosto de 2015

TARDE


O que eu queria dizer-te nesta tarde
Nada tem de comum com as gaivotas

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in NO TEMPO DIVIDIDO (1ª ed., Guimarães Ed., 1954), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010; Assírio & Alvim, 2015)

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Sujei o teu nome


Sujei o teu nome
para me libertar de ti
o sujo foi sombra
teu nome esqueci-o


O sujo era ferida
e eu falso cantava
Não reconhecia a minha voz
Ai que deserta liberdade

Preso de novo
que rede tamanha
de laços e vozes
Um eco talvez
Um eco incessante

ANTÓNIO RAMOS ROSA, in MATÉRIA DE AMOR (Ed. Presença, 1983)

domingo, 2 de agosto de 2015

A BRASA DO TEU CORPO


A brasa do teu corpo

a queimar a palma
acesa
da mão do meu desejo

MARIA TERESA HORTA, in AS PALAVRAS DO CORPO (Publ. D. Quixote, 2012)

EM FRENTE DO MAR


Pergunto a mim próprio em que noite nos perdemos?,
que desencontro nos levou de um a outro lado das
nossas vidas? e que caminhos evitámos para que os nossos
passos se não voltassem a cruzar? Mas as perguntas que
te faço, hoje, já não têm resposta. Sento-me contigo,
nesta mesa da memória, e partilho o prato da solidão. Tu,
na cadeira vazia onde te imagino, sacodes o cabelo com
um aceno de ironia. E dou-te razão: as coisas podiam
ter sido de outro modo. Não te disse as palavras que
esperaste; e havia o mar, com as suas ondas, nessa tarde
em que me puxaste para longe da cidade, como se
a noite não nos obrigasse a voltar, quando o horizonte
se apagou a nossa frente. Depois disso, nenhuma
pergunta tem resposta. O que é absurdo há-de continuar
absurdo, como o horizonte não se voltou a abrir,
trazendo de volta os teus olhos que me pediam que
os olhasse, até que a noite me impedisse de o fazer.

NUNO JÚDICE, in O ESTADO DOS CAMPOS (Pub. Dom Quixote, 2003)