sábado, 29 de junho de 2013

Ai flores, ai flores do verde pino




-Ai flores, ai flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo!
        Ai Deus, e u é?

Ai, flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado!
       Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,
aquel que mentiu do que pos comigo!
       Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado
aquel que mentiu do que mi ha jurado!
       Ai Deus, e u é?

-Vós me preguntades polo voss'amigo,
e eu ben vos digo que é san'e vivo.
      Ai Deus, e u é?

Vós me preguntades polo voss'amado,
e eu ben vos digo que é viv'e sano.
      Ai Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é san'e vivo
e seerá vosc'ant'o prazo saído.
     Ai Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é viv'e sano
e seerá vosc'ant'o prazo passado.
      Ai Deus, e u é?~

D. Dinis

sexta-feira, 28 de junho de 2013

O meu tempo é eterno


O meu tempo é eterno.
Habito os céus
Que as aves deixaram vazios
Há já tanto tempo.
Talvez não saibas
Que povoas os meus pensamentos,
Que tomas forma nos meus sonhos.
Quando te vier buscar
Tomarei tuas mãos,
Trocaremos palavras
Pela eternidade do nosso olhar…
Eu sou o anjo do desespero.

PAULO EDUARDO CAMPOS, in NA SERENIDADE DOS RIOS QUE ENLOUQUECEM (Amores Perfeitos, Vila Nova de Famalicão, 2005)

ASSIM O AMOR


Assim o amor
Espantado meu olhar com teus cabelos
Espantado meu olhar com teus cavalos
E grandes praias fluidas avenidas
Tardes que oscilam demoradas
E um confuso rumor de obscuras vidas
E o tempo sentado no limiar dos campos
Com seu fuso sua faca e seus novelos

Em vão busquei eterna luz precisa

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in DUAL (1ª ed.. Moraes Ed, 1972), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

quinta-feira, 27 de junho de 2013

RESPIRO O TEU CORPO


Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.

EUGÉNIO DE ANDRADE, in POESIA DE EUGÈNIO DE ANDRADE (Modo de Ler, 2011)

terça-feira, 25 de junho de 2013

NOITE APAGADA


Neste céu imenso
Num sentir ausente
Ouço um canto
Ou será o mar, fresta de ar
Pássaro esvoaçante
Uma melodia estonteante
Que me leva para longe
Nesta incógnita me encontro
Nesta lua fugidia
São sombras que busco
Na noite fria
Onde o tédio invade
A alma vazia
E e torna serva da noite
Onde à tona procuro,
Sofregamente
Respostas, na poesia.

CECÍLIA VILAS BOAS, in O ECO DO SILÊNCIO (Esfera do Caos, 2012)

segunda-feira, 24 de junho de 2013

O AMOR


Não há para mim outro amor nem tardes limpas
A minha própria vida a desertei
Só existe o teu rosto geometria
Clara que sem descanso esculpirei.

E a noite onde sem fim me afundarei.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in O CRISTO CIGANO (1961), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2011)

sábado, 22 de junho de 2013

Evadir-me, esquecer-me, regressar


Evadir-me, esquecer-me, regressar
À frescura das coisas vegetais,
Ao verde flutuante dos pinhais
Percorridos de seivas virginais
E ao grande vento límpido do mar.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in DIA DO MAR (1947), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

terça-feira, 18 de junho de 2013

Os nossos dedos abriram mãos fechadas


Os nossos dedos abriram mãos fechadas
Cheias de perfume
Partimos à aventura através de vozes e de gestos
Pressentimos paixões como paisagens
E cada corpo era um caminho
Mas um se ergueu tomando tudo
E escorreram asas dos seus braços.

Florestas, pântanos e rios
Viajámos imóveis debruçados,
Enquanto o céu brilhava nas janelas.

E a cidade partiu como um navio
Através da noite.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in CORAL (1950), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

POEMA QUADRAGÉSIMO SEXTO


Peço-te. Não pises as violetas
que trago no olhar.
Falemos dos brilhos estilhaçados
desta casa súbita que é o teu corpo
devoluto. A noite devora as palavras possíveis,
o sofrimento que pulsa em tua boca
e torna a minha boca vulnerável.
O amor é um nada que a liberta, uma luz
que desce dos ombros para o ventre
e fecunda as sementes da tua virgindade,
essa que faz agora parte de uma dor quase
amigável, na lividez do tempo,
e que entregas em minhas mãos, beijando-as,
tornando-te parte dos meus versos, da
minha forma mais profunda de gostar
de ti.
Amar-te, é escrever-te.
Amar-te é deixar que me toques até ser teu,
até que te deites no meu corpo e adormeças
inteira dentro de mim.
Peço-te. Não pises as violetas
que trago no olhar. Cheiram a ti. São para ti.
Um "bouquet" de palavras que floriram
neste tempo de amor.

JOAQUIM PESSOA, in GUARDAR O FOGO (Edições Esgotadas, 2013)

segunda-feira, 17 de junho de 2013

RIO TRISTE


Longuíssimos braços têm
os olhos que tudo abraçam.
Somente, só os olhos vêem
os olhos que por mim passam.

Clandestinamente os lanço,
braços de mar, olhos de água.
Longo ser líquido avanço,
abraço a vida, e alago-a.

Destino do amor triste
que não se ouve nem se vê.
ama apenas porque existe.
Não sabe a quem nem porquê.

Nesta obrigação de estar
que a cada um de nós cabe,
coube-me esta de amar.
E ninguém sabe.

ANTÓNIO GEDEÃO, in "POESIA COMPLETA" (Ed. João Sá da Costa, 1996)

COMO EU QUERIA


Quero ler-te
Lentamente
Verso a verso
Como se fosses poesia

Quero sentir-te
Lentamente
Gota a gota
Como se fosses maresia

Respirares-me
Boca a boca
Lentamente

Como eu queria.

JOSÉ GABRIEL DUARTE, in NO OUTRO LADO DE MIM (Chiado Ed., 2012)

domingo, 16 de junho de 2013

Ecloga


Sonhei
contigo embora nenhum sonho
possa ter habitantes, tu a quem chamo
amor, cada ano pudesse trazer
um pouco mais de convicção a
esta palavra. É verdade o sonho
poderá ter feito com que, nesta
rarefacção de ambos, a tua presença se
impusesse - como se cada gesto
do poema te restituísse um corpo
que sinto ao dizer o teu nome,
confundindo os teus
lábios com o rebordo desta chávena
de café já frio. Então, bebo-o
de um trago o mesmo se pode fazer
ao amor, quando entre mim e ti
se instalou todo este espaço -
terra, água, nuvens, rios e
o lago obscuro do tempo
que o inverno rouba à transparência
da fontes. É isto, porém, que
faz com que a solidão não seja mais
do que um lugar comum saber
que existes, aí, e estar contigo
mesmo que só o silêncio me
responda quando, uma vez mais
te chamo.

Nuno Júdice

Princípios


Podíamos saber um pouco mais
da morte. Mas não seria isso que nos faria
ter vontade de morrer mais 
depressa.

Podíamos saber um pouco mais
da vida. Talvez não precisássemos de viver
tanto, quando só o que é preciso é saber
que temos de viver.

Podíamos saber um pouco mais
do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar
de amar ao saber exactamente o que é o amor, ou
amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada
sabemos do amor.

Nuno Júdice

Nunca são as coisas mais simples


Nunca são as coisas mais simples que aparecem
quando as esperamos. O que é mais simples,
como o amor, ou o mais evidente dos sorrisos, não se
encontra no curso previsível da vida. Porém, se
nos distraímos do calendário, ou se o acaso dos passos
nos empurrou para fora do caminho habitual,
então as coisas são outras. Nada do que se espera
transforma o que somos se não for isso:
um desvio no olhar; ou a mão que se demora
no teu ombro, forçando uma aproximação dos lábios.

Nuno Júdice

Poema XLIV


Saberás que não te amo e que te amo
posto que de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa do silêncio,
o fogo tem uma metade de frio.

Eu te amo para começar a amar-te,
para recomeçar o infinito
e para não deixar de amar-te nunca:
por isso não te amo ainda.

Te amo e não te amo como se tivesse
em minhas mãos as chaves da fortuna
e um incerto destino desafortunado.

Meu amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quando não te amo
e por isso te amo quando te amo.

Pablo Neruda, in Cem Poemas de Amor

sábado, 15 de junho de 2013

Nomeei-te no meio dos meus sonhos


Nomeei-te no meio dos meus sonhos
chamei por ti na minha solidão
troquei o céu azul pelos teus olhos
e o meu sólido chão pelo teu amor

Ruy Belo

Levar-te à boca

Levar-te à boca,
beber a água
mais funda do teu ser -

se a luz é tanta,
como se pode morrer?

Eugénio de Andrade

Que pode uma criatura


Que pode uma criatura senão,
entre outras criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 13 de junho de 2013

QUANDO O AMOR MORRER


Quando o amor morrer dentro de ti,
Caminha para o alto onde haja espaço,
E com o silêncio outrora pressentido
Molda em duas colunas os teus braços.
Relembra a confusão dos pensamentos,
E neles ateia o fogo adormecido
Que uma vez, sonho de amor, teu peito ferido
Espalhou generoso aos quatro ventos.
Aos que passarem dá-lhes o abrigo
E o nocturno calor que se debruça
Sobra as faces brilhantes de soluços.
E se ninguém vier, ergue o sudário
Que mil saudosas lágrimas velaram;
Desfralda na tua alma o inventário
Do templo onde a vida ora de bruços
A Deus e aos sonhos que gelaram.


RUY CINATTI, in OBRA POÉTICA (Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1992. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral)

O Beijo


Congresso de gaivotas neste céu
Como uma tampa azul cobrindo o Tejo.
Querela de aves, pios, escarcéu.
Ainda palpitante voa um beijo.

Donde teria vindo! (Não é meu...)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandado de captura ou de despejo?

É uma ave estranha: colorida,
Vai batendo como a própria vida,
Um coração vermelho pelo ar.

E é a força sem fim de duas bocas,
De duas bocas que se juntam, loucas!
De inveja as gaivotas a gritar...

Alexandre O'Neill, in 'No Reino da Dinamarca'

domingo, 9 de junho de 2013

Eu Queria uma Liberdade Olímpica


Acordei hoje com tal nostalgia de ser feliz. Eu nunca fui livre na minha vida inteira. Por dentro eu sempre me persegui. Eu me tornei intolerável para mim mesma. Vivo numa dualidade dilacerante. Eu tenho uma aparente liberdade mas estou presa dentro de mim. Eu queria uma liberdade olímpica. Mas essa liberdade só é concedida aos seres imateriais. Enquanto eu tiver corpo ele me submeterá às suas exigências. Vejo a liberdade como uma forma de beleza e essa beleza me falta.

Clarice Lispector, in 'Um Sopro de Vida'

quarta-feira, 5 de junho de 2013

REALIDADE


Em ti o meu olhar fez-se alvorada
E a minha voz fez-se gorgeio de ninho...
E a minha rubra boca apaixonada
Teve a frescura pálida do linho...

Embriagou-me o teu beijo como um vinho
Fulvo de Espanha, em taça cinzelada...
E a minha cabeleireira desatada
Pôs a teus pés a sombra dum caminho...

Minhas pálpebras são cor de verbena,
Eu tenho os olhos garços, sou morena,
E para te encontrar foi que eu nasci...

Tens sido vida fora o meu desejo
E agora, que te falo, que te vejo,
Não sei se te encontrei... se te perdi...

FLORBELA ESPANCA, in SONETOS, (Alétheia Ed., 2010)

terça-feira, 4 de junho de 2013

Andam palavras na noite


Andam palavras na noite
Cansadas de me chamar.
Trago os meus lábios salgados
E algas no paladar.

Eu sou um grande oceano
Que só fala a voz do mar!
Mas já sinto o mar cansado
De pedir o luar ao céu
Que a Noite não lhe quer dar!

NATÁLIA CORREIA, in RIO DE NUVENS (1947), in POESIA COMPLETA - O SOL NAS NOITES E O LUAR NOS DIAS (Dom Quixote, 2007)

segunda-feira, 3 de junho de 2013

V


Eu venho do sonho e fujo da vida.
Errei no caminho para a paz prometida.

Só sei que me chama um canto de mar.
E a nau dos sonhos no céu a varar.

Ó meu capitão da barca perdida
A errar entre o sonho e o engano da vida!

NATÁLIA CORREIA, in RIO DE NÚVENS (1947), in POESIA COMPLETA - O SOL NAS NOITES E O LUAR NOS DIAS (Dom Quixote, 2007)

domingo, 2 de junho de 2013

EIS-ME


Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses
Para ficar sozinha ante o silêncio
Ante o silêncio e o esplendor da tua face

Mas tu és de todos os ausentes o ausente
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo em que não moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silêncio

Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes o ausente

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in LIVRO SEXTO (Moraes Ed., 1962) in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)