quinta-feira, 31 de maio de 2012

O QUE TEMOS



Deixei contigo o meu amor,
música de açúcar a meio da tarde,
um botão de vestido por apertar,
eo da vida por desapertar,
a flor que secou nas páginas de um livro,
tantas palavras por dizer
e a pressa de chegar,
com o azul do céu à saída.
por entre cafés fechados e um por abrir.

Mas trouxe comigo o teu amor,
os murmúrios que o dizem quando os lembro,
a surpresa de um brilho no olhar,
brinco perdido em secreto campo,
o remorso de partir ao chegar,
e tudo descobrir de cada vez,
mesmo que seja igual ao que vês
neste caminho por encontrar
em que só tu me consegues guiar.

Por isso tenho tudo o que preciso
mesmo que nada nos seja dado;
e basta-me lembrar o teu sorriso
para te sentir ao meu lado.


NUNO JÚDICE, in O ESTADO DOS CAMPOS (Pub. Dom Quixote, 2003

terça-feira, 29 de maio de 2012

Morrer de Amor é Assim


Quem morre de tempo certo
ao cabo de um certo tempo
é a rosa do deserto
que tem raízes no vento.

Qual a medida de um verso
que fale do meu amor?
Não me chega o universo
porque o meu verso é maior.

Morrer de amor é assim
como uma causa perdida.
Eu sei, e falo por mim,
vou morrer cheio de vida.

Digo-te adeus, vou-me embora,
que os versos que eu te escrever
nunca os lerás, sei agora
que nunca aprendeste a ler.

Neste dia que se enquadra
no tempo que vai passar,
termino mais esta quadra
feita ao gosto popular.

Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'

segunda-feira, 28 de maio de 2012

[AGORA EU ERA LINDA OUTRA VEZ]


Agora eu era linda outra vez
e tu existias e merecíamos
noite inteira um tão grande
amor

agora tu eras como o tempo
despido dos dias, por fim
vulnerável e nu, e eu
era por ti adentro eternamente

lentamente
como só lentamente
se deve morrer de amor


VALTER HUGO MÃE, in O RESTO DA MINHA VIDA SEGUIDO DE A REMOÇÃO DAS ALMAS (Porto, Cadernos do Campo Alegre, 2003)

domingo, 27 de maio de 2012

Evadir-me, esquecer-me, regressar


Evadir-me, esquecer-me, regressar
À frescura das coisas vegetais,
Ao verde flutuante dos pinhais
Percorridos de seivas virginais
E ao grande vento límpido do mar.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in DIA DO MAR (1947), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)



sábado, 26 de maio de 2012

Estás Só


Estás só. Ninguém o sabe. Cala e finge.
Mas finge sem fingimento.
Nada 'speres que em ti já não exista,
Cada um consigo é triste.
Tens sol se há sol, ramos se ramos buscas,
Sorte se a sorte é dada.

Ricardo Reis, in "Odes"
Heterónimo de Fernando Pessoa

domingo, 20 de maio de 2012

Amo-te Muito, Meu Amor, e Tanto


Amo-te muito, meu amor, e tanto
que, ao ter-te, amo-te mais, e mais ainda
depois de ter-te, meu amor. Não finda
com o próprio amor o amor do teu encanto.

Que encanto é o teu? Se continua enquanto
sofro a traição dos que, viscosos, prendem,
por uma paz da guerra a que se vendem,
a pura liberdade do meu canto,

um cântico da terra e do seu povo,
nesta invenção da humanidade inteira
que a cada instante há que inventar de novo,

tão quase é coisa ou sucessão que passa...
Que encanto é o teu? Deitado à tua beira,
sei que se rasga, eterno, o véu da Graça.

Jorge de Sena, in “Poesia, Vol. I”

Eu Simplesmente Amo-te


Eu amo-te sem saber como, ou quando, ou a partir de onde. Eu simplesmente amo-te, sem problemas ou orgulho: eu amo-te desta maneira porque não conheço qualquer outra forma de amar sem ser esta, onde não existe eu ou tu, tão intimamente que a tua mão sobre o meu peito é a minha mão, tão intimamente que quando adormeço os teus olhos fecham-se.

Pablo Neruda, in "Cem Sonetos de Amor"

quarta-feira, 16 de maio de 2012

A TUA BOCA

Beijo os teus dedos de sol e vento,
E fico dividida entre o sabor a sal
E o poema escrito nas linhas da tua mão.
Beijo os teus lábios e a brisa pára
Para segredar-me que o mar é doce,
Enquanto fecho o livro de búzios
E o poema na volúpia naufraga

MANUELA ALVES, in COLECTÂNEA DE POESIA CONTEMPORÂNEA DA BEIRA INTERIOR 2001 (Kreamus, 2001)

segunda-feira, 14 de maio de 2012

PRÍNCIPE


Príncipe:
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um naufrágio sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito
tudo era apenas lábios pálpebras
intumiscências cobrindo o corpo de flutuantes
volteios de palpitações trémulas adejando
pelo rosto beijava os teus olhos por dentro.
Beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão
sobre o meu pensamento corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te.

São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me.

ANA HATHERLY, in POESIA 1958-1978 (Moraes Ed. 1980)

domingo, 13 de maio de 2012

NEGRA CÔR



Vem, quando a luz
Morrer bem p’ra lá do mar
E anoitecer em mim e no meu olhar

Vem, negra cor
Negro olhar que me vês
E a quem o amor ao chegar se desfez

Se acaso o amor
Partir sem dizer adeus
Vem, espelho meu, sentir os teus lábios nos meus

Tarda encontrar
O lugar de um amor
Meu triste mar, negro olhar, minha cor

Vem, se a saudade
Cantar versos que escrevi
Quando à cidade cantei saudades de ti

DIOGO CLEMENTE, in Álbum CD SENTIDOS (2006)

sábado, 12 de maio de 2012

POR AMAR ALGUÉM ASSIM


Debruçado sobre ti
sentindo teu corpo viver
amei-te de todas as formas
antes de o dia morrer
Amei-te com palavras doces
com ideias do sentir
que se perderam no tempo
para mais ninguém ouvir
Amei-te em noites d’Inverno
e em amanheceres de Verão
por entre lençóis de linho
ao sabor da imaginação
Amei-te com um olhar
ou apenas com um gesto
com um simples pensamento
de um poema modesto
Amei-te de princípio a fim
e de mim tudo te dei
por amar alguém assim
que sinto jamais amei


ANTÓNIO BARROSO CRUZ, in INTIMIDADES ( Editora O liberal, 2005)

DIA 17



Estou preso à tua liberdade. Uma liberdade que me empur-
ra para a luz quando o meu corpo respira sombra, e este é
o trabalho mais oculto do mundo. O que chega aos poucos
pode chegar depressa e às escondidas, com a rapidez da
mordedura das víboras e do furor das moreias.
Gostar de ti é uma ferida. Gostar de ti como se me deixas-
se morrer de morte iluminada que resultasse num cadáver
amoroso, rodeado de uma luz perversa, estúpida, circun-
dante.
Estou entre o nada e a parede como um animal com todas
as saídas, sem saber por qual delas deve sair. Com medo
de sangrar e de gostar do próprio sangue. Com medo de
ter medo.
Toda a minha história é uma história de amor.


JOAQUIM PESSOA, in ANO COMUM (Litexa, 2011)

terça-feira, 8 de maio de 2012

O amor é uma companhia.

O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.

Alberto Caeiro

segunda-feira, 7 de maio de 2012

CARTA



Se eu soubesse dar às palavras o rumor lento e raso dos teus dedos
Sagrar o ritmo das inconfidências no crepúsculo de um poema
e silenciar as esperas na última pausa de um beijo
Deixar-te-ia esta carta num recanto da tua pele.

SANDRA COSTA, in SOB A LUZ DO MAR (Campo das Letras, 2002)

domingo, 6 de maio de 2012

PARA TI

Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo

Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre

Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida

MIA COUTO, in RAIZ DE ORVALHO E OUTROS POEMAS (Caminho, 2009) (1981)

sábado, 5 de maio de 2012

EXPLICATIO


O gesto mais simples,
capaz de ordenar tudo,
foi o que não fizemos.

JOSE MÁRIO SILVA, in LUZ INDECISA (Oceanos, 2011)

terça-feira, 1 de maio de 2012

Sabedoria


Desde que tudo me cansa,
Comecei eu a viver.
Comecei a viver sem esperança...
E venha a morte quando
Deus quiser.

Dantes, ou muito ou pouco,
Sempre esperara:
Às vezes, tanto, que o meu sonho louco
Voava das estrelas à mais rara;
Outras, tão pouco,
Que ninguém mais com tal se conformara.

Hoje, é que nada espero.
Para quê, esperar?
Sei que já nada é meu senão se o não tiver;
Se quero, é só enquanto apenas quero;
Só de longe, e secreto, é que inda posso amar. . .
E venha a morte quando Deus quiser.

Mas, com isto, que têm as estrelas?
Continuam brilhando, altas e belas.

José Régio, in 'Poemas de Deus e do Diabo'