terça-feira, 31 de janeiro de 2012

MUSICA MIRABILIS

Talvez a ternura
crepite no pulso,
talvez o vento
súbito se levante,
talvez a palavra
atinja o seu cume,
talvez um segredo
chegue ainda a tempo

- e desperte o lume.

EUGÉNIO DE ANDRADE, in MAR DE SETEMBRO (Linear, 1977) , in POESIA DE EUGÉNIO DE ANDRADE (Modo de Ler, 2011)

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

SONETO DO CATIVO


Se é sem dúvida Amor esta explosão
de tantas sensações contraditórias;
a sórdida mistura das memórias
tão longe da verdade e da invenção;

o espelho deformante; a profusão
de frases insensatas, incensórias;
a cúmplice partilha nas histórias
do que outros dirão ou não dirão;

se é sem dúvida Amor a cobardia
de buscar nos lençóis a mais sombria
razão de encantamento e de desprezo;

não há dúvida, Amor, que te não fujo
e que, por ti, tão cego, surdo e sujo,
tenho vivido eternamente preso!

DAVID MOURÃO-FERREIRA, in OS QUATRO CANTOS DO TEMPO (Guimarães Ed., 1963), in 366 POEMAS QUE FALAM DE AMOR, org. de Vasco Graça Moura (Quetzal, 2003)

sábado, 28 de janeiro de 2012

(...) Antes de julgar a minha vida ou meu caráter...calce os meus sapatos e percorra o caminho que eu percorri,viva as minhas tristezas,as minhas dúvidas e as minhas alegrias. Percorra os anos que eu percorri,tropece onde eu tropecei e levante-se assim como eu fiz. Então só assim poderás julgar. Cada um tem a sua própria história,não compare a sua vida com a dos outros, você não sabe como foi o caminho que eles tiveram que trilhar na vida...


CLARICE LISPECTOR

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

ESPELHO DE DUAS FACES

Ajuda-me a esquecer as tuas faltas
e a ignorar os teus crimes
para melhor te amar.
Dá-me a febre em que te exaltas
e o que nos olhos exprimes
quando não sabes falar.

Espelho de duas faces, plana e curva:
és, e não és.
Imagem dupla, ora límpida, ora turva,
numa te afirmas, noutra te negas, em ambas te crês.

Queria sentir-te em outros sentidos.
Queria ver-te sem olhos e ouvir-te sem ouvidos.
E queria as tuas mãos numa aldeia fraterna.
Essas mãos que ainda ontem, de manhã, aturdidas,
com duas varas secas e folhas ressequidas
arrepiaram de luz as sombras da caverna.





ANTÓNIO GEDEÃO, in "POESIA COMPLETA" (Ed. João Sá da Costa, 1996)

RETRATO

Ardente Entre os teus lábios
é que a loucura acode
desce à garganta,
invade a água.

No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.

Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.

Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.

Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.

EUGÉNIO DE ANDRADE#, in OBSCURO DOMÍNIO (1972), in POESIA (Modo de Ler, 2011)

sábado, 21 de janeiro de 2012

A um Passo do Amor

A um passo do amor estarás a um passo do futuro e a duzentos mil anos do passado. O teu nome é o nome de todas as coisas-, quando todas as coisas respiram no teu nome. Entre o sofrimento e a felicidade, muito de ti se espalha pela vida, muita vida te aguarda, muita vida te procura. Um duplo coração bate dentro do peito e fora de ti. Tens a sabedoria das crianças e a sabedoria dos velhos. Sabes ferir e beijar e sentes o vento do orgulho. Pequeninos gestos, grandes pensamentos, constroem um dia excepcional, um amor excepcional, uma violência excepcional. Todas as noites são uma só noite, tanto desespero pode voltar a ser esperança. As tuas mãos são uma pátria. Os teus dedos são, umas vezes, o mais difícil dos rebanhos. E outras, os cães que o guardam, quando a verdade é triste e o amor tem a fome e a sede das estrelas.

Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

OFÍCIO DE AMAR

já não necessito de ti
tenho a companhia nocturna dos animais e a peste
tenho o grão doente das cidades erguidas no princípio doutras galáxias, e o remorso


um dia pressenti a música estelar das pedras, abandonei-me ao silêncio
é lentíssimo este amor progredindo com o bater do coração
não, não preciso mais de mim
possuo a doença dos espaços incomensuráveis
e os secretos poços dos nómadas


ascendo ao conhecimento pleno do meu deserto
deixei de estar disponível, perdoa-me
se cultivo regularmente a saudade do meu próprio corpo


Al Berto

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

O GRITO CLARO


De escadas insubmissas
de fechaduras alerta
de chaves submersas
e roucos subterrâneos
onde a esperança enlouqueceu
de notas dissonantes
de um grito de loucura
de toda a matéria escura
sufocada e contraída
nasce o grito claro

ANTÓNIO RAMOS ROSA, in O GRITO CLARO (ed. do autor, 1958), in A PALAVRA E O LUGAR, (Dom Quixote, 1977)

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

ENCANTAMENTO

há uma palavra mágica que se diz. essa palavra
é sempre diferente. montanha, precipício, brilho.
essa palavra pode ser um olhar. a voz. um olhar.

essa palavra pode ser o espaço de silêncio onde
não se disse uma palavra. brilho, montanha.
essa palavra pode ser uma palavra, qualquer palavra.

há uma palavra mágica que se diz. há um momento.
depois dessa palavra, só depois dessa palavra,
pode começar o amor.


JOSÉ LUÍS PEIXOTO, in A CASA, A ESCURIDÃO ( Temas e Debates, 2002)

GOSTO DE TI

Gosto de ti
e das marcas do teu rosto
na almofada da minha cama;

Gosto de ti
e do teu sorriso sereno
adormecido nos lábios;

Gosto de ti
quando nos momentos de paixão e abandono
me desenhas na tua pele;

Gosto de ti
quando vagueias à sombra das laranjeiras
e as folhas caem no chão como poemas;

Gosto de ti e de ser eu… em ti.

FRANCISCO VALVERDE ARSÉNIO

(2011)

EXPLICAÇÃO DA ETERNIDADE

devagar, o tempo transforma tudo em tempo.
o ódio transforma-se em tempo, o amor
transforma-se em tempo, a dor transforma-se
em tempo.

os assuntos que julgámos mais profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.

por si só, o tempo não é nada.
a idade de nada é nada.
a eternidade não existe.
no entanto, a eternidade existe.

os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos.
os instantes do teu sorriso eram eternos.
os instantes do teu corpo de luz eram eternos.

foste eterna até ao fim.

JOSÉ LUÍS PEIXOTO, in A CASA, A ESCURIDÃO ( Temas e Debates, 2002)

domingo, 15 de janeiro de 2012

BEIJO


Basta-me o teu beijo:
Aquele azul
de arrepiar.

Quero-te assim;
Inteira no sentir.
Toda tremendo
na claridade
alta do desejo.

Os lábios ardendo
nos desconhecidos
dentes assustados.
A língua procurando
recantos.
Onde a labareda é mais intensa.

O pão que procuro:
Vem nesse vulcão
de aves incandescentes.

Aquele pão doce
e quente.
Das madrugadas empoleiradas
no raiar dos pássaros.

Esse é o beijo:
Que me basta
e que me alimenta.


JOAQUIM MONTEIRO, in NA TUA BOCA (Ed. Universus, 2011)

sábado, 14 de janeiro de 2012

QUEM ÉS TU

Quem és tu que assim vens pela noite adiante,
Pisando o luar branco dos caminhos,
Sob o rumor das folhas inspiradas?

A perfeição nasce do eco dos teus passos,
E a tua presença acorda a plenitude
A que as coisas tinham sido destinadas.

A história da noite é o gesto dos teus braços,
O ardor do vento a tua juventude,
E o teu andar é a beleza das estradas.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in OBRA POÉTICA, (Caminho, 2010)

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

QUEIXA


Toda a noite te esperei.

Quando cheguei
Não estava ainda luar.
E fiquei
A esperar
Que viesses
Como tinhas prometido.

Toda a noite te esperei
e afinal não apareceste.

Fiquei esperando,
Esperando,
E as horas foram caindo,
Uma a uma,
Como gotas de cacimbo.

Entretanto,
Surgiu de trás da Igreja
O disco, em prata,
Da Lua.

Debaixo da cajajeira,
Junto à valeta da rua
E sob a luz que me encanta
Vi nascer a madrugada
Da cor da Semana Santa,
Vi como a noite fugia
E como raiava o dia.

Toda a noite te esperei
E afinal não apareceste...

Toda a noite te esperei
E afinal não apareceste...

Esperei
E desesperei.
Desesperei
E chorei...


AIRES ALMEIDA SANTOS, in POETAS ANGOLANOS (1962) in ANTOLOGIAS DE POESIA DA CASA DOS ESTUDANTES DO IMPÉRIO 1951-1963, Vol. I (ACEI, 1994)

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

À peine défigurée

Adieu tristesse
Bonjour tristesse
Tu es inscrite dans les lignes du plafond
Tu es inscrite dans les yeux que j'aime
Tu n'es pas tout à fait la misère
Car les lèvres les plus pauvres te dénoncent
Par un sourire
Bonjour tristesse
Amour des corps aimables
Puissance de l'amour
Dont l'amabilité surgit
Comme un monstre sans corps
Tête désappointée
Tristesse beau visage.

(La vie immédiate)(N.R.F.)

Paul Éluard

L'amoureuse

Elle est debout sur mes paupières
Et ses cheveux sont dans les miens,
Elle a la forme de mes mains,
Elle a la couleur de mes yeux,
Elle s'engloutit dans mon ombre
Comme une pierre sur le ciel.
Elle a toujours les yeux ouverts
Et ne me laisse pas dormir.
Ses rêves en pleine lumière
Font s'évaporer les soleils,
Me font rire, pleurer et rire,
Parler sans avoir rien à dire


(Capitale de la Douleur) (N.R.F.)

Paul Éluard

domingo, 8 de janeiro de 2012

AH, A ESTA ALMA QUE NÃO ARDE

Ah, a esta alma que não arde
Não envolve, porque ama
A esperança, ainda que vã,
O esquecimento que vive
Entre o orvalho da tarde
E o orvalho da manhã.


FERNANDO PESSOA, in POESIAS INÉDITAS (1930-1935), (Ática, 1955/1990)

PROMESSA DE UMA NOITE

cruzo as mãos
sobre as montanhas
um rio esvai-se
ao fogo do gesto
que inflamo

a lua eleva-se
na tua fronte
enquanto tacteias a pedra
até ser flor

(Fevereiro 1985)




MIA COUTO, in RAÍZ DE ORVALHO E OUTROS POEMAS, (Caminho, 1999)

sábado, 7 de janeiro de 2012

O QUARTO

II

fogem-me as palavras, meu amor.
as palavras que em tempo foram nossas
e agora se colam ao tempo, às memórias.
o que fazer com o tempo que me cresce nas mãos?
o tempo que agora me percorre o corpo
e que antes nos fugia quando estávamos juntos.
o que fazer com o tempo
que me trouxe a tua ausência
e me envelhece, lentamente, a cada hora?


PAULO EDUARDO CAMPOS, in A CASA DOS ARCHOTES (Lua de Marfim, 2011)

NENHUMA MORTE APAGARÁ OS BEIJOS


Nenhuma morte apagará os beijos
e por dentro das casas onde nos amámos ou pelas ruas clandestinas da grande cidade livre
estarão sempre vivos os sinais de um grande amor,
esses densos sinais do amor e da morte
com que se vive a vida.

Ai estarão de novo as nossas mãos.
E nenhuma dor será possível onde nos beijamos.
Eternamente apaixonados, meu amor. Eternamente livres.
Prolongaremos em todos os dedos os nossos gestos e,
profundamente, no peito dos amantes, a nossa alma liquida e atormentada
desvendará em cada minuto o seu segredo
para que este amor se prolongue e noutras bocas
ardam violentos de paixão os nossos beijos
e os corpos se abracem mais e se confundam
mutuamente violando-se, violentando a noite
para que outro dia, afinal, seja possível.

JOAQUIM PESSOA, in OS OLHOS DE ISA (1980), in 12 POEMAS - ANTOLOGIA POÉTICA (Litexa, 3º Ed., 1989)

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Estou Mais Perto de Ti porque Te Amo

Estou mais perto de ti porque te amo.
Os meus beijos nascem já na tua boca.
Não poderei escrever teu nome com palavras.
Tu estás em toda a parte e enlouqueces-me.

Canto os teus olhos mas não sei do teu rosto.
Quero a tua boca aberta em minha boca.
E amo-te como se nunca te tivesse amado
porque tu estás em mim mas ausente de mim.

Nesta noite sei apenas dos teus gestos
e procuro o teu corpo para além dos meus dedos.
Trago as mãos distantes do teu peito.

Sim, tu estás em toda a parte. Em toda a parte.
Tão por dentro de mim. Tão ausente de mim.
E eu estou perto de ti porque te amo.

Joaquim Pessoa, in 'Os Olhos de Isa'

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Soneto de Mal Amar

Invento-te recordo-te distorço
a tua imagem mal e bem amada
sou apenas a forja em que me forço
a fazer das palavras tudo ou nada.

A palavra desejo incendiada
lambendo a trave mestra do teu corpo
a palavra ciúme atormentada
a provar-me que ainda não estou morto.

E as coisas que eu não disse? Que não digo:
Meu terraço de ausência meu castigo
meu pântano de rosas afogadas.

Por ti me reconheço e contradigo
chão das palavras mágoa joio e trigo
apenas por ternura levedadas.

Ary dos Santos, in 'O Sangue das Palavras'

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

TEMPESTADE DE ALMA

Se eu fosse tempestade
e do céu me perdesse
se eu fosse apenas saudade
e me esquecesse
se eu fosse um trovão
sem ter aonde cair
e sem querer te fosse pedir
que me acolhesses
que também tu esquecesses
o que ficou para trás
se da noite eu me libertasse
e a dor afugentasse
para bem longe de mim
Será que o silêncio que sinto
se esvairia
será que sentiria
a dor se acalmar?
se pelo menos eu pudesse ser mar
e nele naufragar
sem destino
navegar apenas
me deixando ir
se eu tivesse o condão
de fazer acontecer
como tudo seria bem diferente
a noite não seria noite
não seria escura
teria cor e movimentos
e dela não sairiam sombras
nem lamentos
e se no meio da tempestade
eu me acabasse
mas pudesse ficar bem perto de ti
eu não me importaria de não ser
de não poder acontecer
porque te teria
e em teus braços adormeceria
até o sol de novo aparecer...

SÃO REIS, in PALAVRAS NOSSAS (Esfera do Caos, 2011)
fico admirado quando alguém, por acaso e quase sempre
sem motivo, me diz que não sabe o que é o amor.
eu sei exactamente o que é o amor. O amor é saber
que existe uma parte de nós que deixou de nos pertencer.
o amor é saber que vamos perdoar tudo a essa parte
de nós que não é nossa. o amor é sermos fracos.
o amor é ter medo e querer morrer.


JOSÉ LUÍS PEIXOTO, in A CRIANÇA EM RUÍNAS (1ª Ed., Quasi, 2001)

UNIVERSO




Uns dizem que é aberto
outros que é fechado
outros ainda que é plano

Cada um consoante o seu desejo

Para mim o universo
tem a forma de um beijo.

JORGE SOUSA BRAGA, in PÓ DE ESTRELAS (Assírio & Alvim, 2004)