quarta-feira, 27 de novembro de 2013

OS OLHOS


se um gesto me definisse seria o de te afastar o cabelo para te ver melhor o rosto que me enche de bravura

e só te vejo pelos meus olhos por serem os que te vêem mais bela
por isso os escolho sempre
tenho os olhos feitos à medida da tua cara
e só tenho olhos para ti
quando não estás sou invisível e quase invisual
a visão não me serve de nada
vejo mas sem cor e é pior que a preto e branco
é desfocado
é esbatido
e sem chama
e sem cheiro
contigo cheira bem
sabe bem
ouve bem o que digo porque é sincero porque se não fosse todo eu era falso
cada falso que há aí merecia cadeia ou morte
mas com os teus braços finos a fazer as vezes da corda que me serpenteia o pescoço para me matar de felicidade

e só te quero a ti
e só te vejo a ti como a última noite do Verão mais quente
com o céu mais estrelado
com a lua mais cúmplice
com os gestos mais carinhosos
e tiro-te o cabelo da frente com a ajuda da minha mão direita que só existe para isso
e vou para te beijar mas não o faço
hesito porque os meus olhos pediram-me que os deixasse olhar para ti mais uma vez
e eu deixo para eles não chorarem muito


JOÃO NEGREIROS, in A VERDADE DÓI E PODE ESTAR ERRADA (Camões e Companhia, 2010), Vencedor do Prémio Poesia Nuno Júdice

AUSENTEI-TE


as minhas mãos adormeceram o gesto de afago iminente
e contemplaram a tua partida
em oclusão da vontade que gritava amarras
sem que fossem âncora do teu estar

olhei-te sem coragem de apelo
sem conseguir que me voltes
incapaz de dar os passos do teu retorno

ausentei-te
e deitei-me no vazio que criei

JOÃO CARLOS ESTEVES, INVENTEI-TE AS MANHÃS (Chiado Ed., 2013)

domingo, 24 de novembro de 2013

Não Precisas de me Procurar


Aqui não precisas de me procurar
para me encontrares, que eu estou,
omnipresente, em todo o chão que pisas,
duplicando a tua sombra,
deixando um rasto de brisa,
um aroma de urze na marca dos teus passos.
Com esta roupa visitaremos os pátios,
os átrios de dança e do encantamento.
As nuvens aninhadas atrás da lua,
na olorosa paz da madrugada,
são o mapa das errâncias da fala
enquanto o coração, indefeso, capitula.

José Jorge Letria, in "Capela dos Ócios"

terça-feira, 19 de novembro de 2013

AMO-TE COM TODAS AS LETRAS


Amo-te com todas as letras
Mas não sei como as usar
Oiço-as em surdina
Trémulas, receosas
Em vez de as gritar!

JOSÉ GABRIEL DUARTE in NO OUTRO LADO DE MIM (Chiado Ed., 2012)

MAIS UMA NOITE, AMOR


Mais uma noite, amor. Ao recordar-te
retomo os fins do mundo, a cinza, os dias
manchados de outras lágrimas. Sabias
como eu a cor das sombras, essa arte

que nos engana agora e se reparte
por esquinas e cafés. Já não me guias
os muitos passos vãos, as fantasias
da minha falsa vida. Vou deixar-te

fugindo-me. Na chuva, sem ninguém,
apenas alguns vultos, o que vem
«e dói não sei porquê» -este deserto

onde te vejo, imagem outra vez,
até de madrugada. O que me fez
sentir o muito longe aqui tão perto?

FERNANDO PINTO DO AMARAL, in A ESCADA DE JACOB (Assírio & Alvim, 1993 )

POEMA QUADRAGÉSIMO SEXTO


Peço-te. Não pises as violetas
que trago no olhar.

Falemos dos brilhos estilhaçados
desta casa súbita que é o teu corpo
devoluto. A noite devora as palavras possíveis,
o sofrimento que pulsa em tua boca
e torna a minha boca vulnerável.
O amor é um nada que a liberta, uma luz
que desce dos ombros para o ventre
e fecunda as sementes da tua virgindade,
essa que faz agora parte de uma dor quase
amigável, na lividez do tempo,
e que entregas em minhas mãos, beijando-as,
tornando-te parte dos meus versos, da
minha forma mais profunda de gostar
de ti.

Amar-te, é escrever-te.
Amar-te é deixar que me toques até ser teu,
até que te deites no meu corpo e adormeças
inteira dentro de mim.

Peço-te. Não pises as violetas
que trago no olhar. Cheiram a ti. São para ti.
Um "bouquet" de palavras que floriram
neste tempo de amor.

JOAQUIM PESSOA, in GUARDAR O FOGO (Ed. Edições Esgotadas, 2013)

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Há cidades acesas na distância


Há cidades acesas na distância,
Magnéticas e fundas como luas,
Descampados em flor e negras ruas
Cheias de exaltação e ressonância.

Há cidades cujo lume
Destrói a insegurança dos meus passos,
E o anjo do real abre os seus braços
Em nardos que me matam de perfume.

E eu tenho de partir para saber
Quem sou, para saber qual é o nome
Do profundo existir que me consome
Neste país de névoa e de não ser.~

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in POESIA (1944), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

domingo, 17 de novembro de 2013

Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos


Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos
e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo
doeu-me onde antes os teus dedos foram aves
de verão e a tua boca deixou um rasto de canções.

No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha
camisola; e eu despi-a para ti, a dar-te um coração
que era o resto da vida - como um peixe respira
na rede mais exausta. Nem mesmo à despedida

foram os gestos contundentes: tudo o que vem de ti
é um poema. Contudo, ao acordar, a solidão sulcara
um vale nos cobertores e o meu corpo era de novo
um trilho abandonado na paisagem. Sentei-me na cama

e repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos,
mas as sílabas caíam no fim das palavras, a dor esgota
as forças, são frios os batentes nas portas da manhã.

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in O CANTO DO VENTO NOS CIPRESTES (2001), in POESIA REUNIDA Quetzal, 2012)

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Estou Mais Perto de Ti porque Te Amo


Estou mais perto de ti porque te amo.
Os meus beijos nascem já na tua boca.
Não poderei escrever teu nome com palavras.
Tu estás em toda a parte e enlouqueces-me.

Canto os teus olhos mas não sei do teu rosto.
Quero a tua boca aberta em minha boca.
E amo-te como se nunca te tivesse amado
porque tu estás em mim mas ausente de mim.

Nesta noite sei apenas dos teus gestos
e procuro o teu corpo para além dos meus dedos.
Trago as mãos distantes do teu peito.

Sim, tu estás em toda a parte. Em toda a parte.
Tão por dentro de mim. Tão ausente de mim.
E eu estou perto de ti porque te amo.

Joaquim Pessoa, in 'Os Olhos de Isa'

Eu não sei se estiveste ausente


Eu não sei se estiveste ausente.
Eu deito-me contigo, e levanto-me contigo.
Nos meus sonhos tu estás junto a mim.
Se estremecem os brincos das minhas orelhas
eu sei que és tu que te moves no meu coração.

(México, Nahuas)

domingo, 10 de novembro de 2013

NO SILÊNCIO DE UMA LÁGRIMA


escrevo-te...
... nem sei porque te escrevo

escrevo-te sem guião,
meras palavras que entenderás ou que talvez
flutuem perdidas numa folha de papel amarfanhada

escrevo-te sem intenção que não seja
a de escrever
o que talvez nunca crescesse num jardim abandonado

escrevo-te a flor, o amanhecer, a tristeza e a dor,
o encontrar e o perder
escrevo-te a vida, a tua e a minha, escrevo-te os dias
e as noites sem fim

escrevo-te... nem sei porque te escrevo...

no silêncio de uma lágrima escrevo-te
as rugas da minha alma
e as sombras que me vestem o tempo

JOÃO CARLOS ESTEVES, in INVENTEI-TE AS MANHÃS (Chiado Ed., 2013)

terça-feira, 5 de novembro de 2013

NESTE OUTONO


Neste outono, as pedras agasalham-se no cobertor
do musgo; e o barro bebe a água; e o vento viaja rente
aos muros. Mas eu, sem ti, deito-me gelada sobre a cama
e digo palavras que queimam a boca por dentro ― amor,

saudade, o teu nome e os nomes das coisas que tocaste
(e sobre as quais deixo crescer o pó, para que os dias
não se decalquem sempre de outros dias). Fecho os olhos

depois sobre a almofada e vejo o rosto branco da casa
desenhar-se à medida da tua ausência: as janelas abrem-se
para a solidão dos becos e há um farrapo de luz sobre a porta
a que ninguém virá bater. Pergunto-me onde anda a tua
sombra quando aqui não estás. E tenho medo. São estes

os solavancos de uma vida pequena ― bordar uma toalha
para logo a manchar de vinho, sentir a ferida na distância
do punhal, viver à espera de uma dor que há-de chegar.

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in A CASA E O CHEIRO DOS LIVROS (Quetzal, 1996), in POESIA REUNIDA (Quetzal, 2012)

DE MÃOS ABERTAS


Se eu pudesse,
Tocava o teu rosto em silêncio
E falava-te do mar,
Deixava tombar os meus cabelos
Sobre o teu ombro
Como uma bênção
E fechava os olhos
Consciente de ser em ti
Como um salgueiro.

ANA BRILHA, in A APOLOGIA DO SILÊNCIO (ed. da Autora, 2012)

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

QUANDO VIER A PRIMAVERA


Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

ALBERTO CAEIRO, in POEMAS INCONJUNTOS. Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa.[ (Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença, 1994]

domingo, 3 de novembro de 2013

Estou diariamente à tua espera


Estou diariamente à tua espera
Como quem espera um astro pela noite.
Defino-te em segredos.
Revejo-te na memória.
Desenho a tua fronte nas estrelas.
Invejo-te.
Construo a tua boca sem palavras.
Construo este silêncio em que me prendo.

JOÃO RUI DE SOUSA, in CIRCULAÇÃO (Lisboa, Liv. Moraes Ed., 1960), in OBRA POÉTICA [(1960-2000), Dom Quixote, 2002]

APETECE


Apetece dizer e não sei dizê-lo
Apetece querer e não sei almejar sequer
Apetece abraçar e não sinto o outro lado entrega
Apetece gritar, mas a rouquidão trai o sentir
Apetece sair....partir...ir onde nunca fui
Apetece correr a memória esquecida e escrever
Apetece tanto....e tanto é um grama de matéria pó
Apetece sorrir no meio das lágrimas secas
Apetece e já nada apetece no esvair do viver
Apetece dizer e não sei dizê-lo!

JOSÉ LUÍS OUTONO, in MAR DE SENTIDOS, prefaciado por Joaquim Pessoa (Ed. Vieira da Silva, 2012)

sábado, 2 de novembro de 2013

PALAVRAS MINHAS


Palavras que disseste e já não dizes,
palavras como um sol que me queimava,
olhos loucos de um vento que soprava
em olhos que eram meus, e mais felizes.

Palavras que disseste e que diziam
segredos que eram lentas madrugadas,
promessas imperfeitas, murmuradas
enquanto os nossos beijos permitiam.

Palavras que dizias, sem sentido,
sem as quereres, mas só porque eram elas
que traziam a calma das estrelas
à noite que assomava ao meu ouvido...

Palavras que não dizes, nem são tuas,
que morreram, que em ti já não existem
- que são minhas, só minhas, pois persistem
na memória que arrasto pelas ruas.

PEDRO TAMEN, in TÁBUA DAS MATÉRIAS - POESIA 1956-1991 (Tertúlia, 1991)

Dá-me a tua mão


Dá-me a tua mão.

Deixa que a minha solidão
prolongue mais a tua
— para aqui os dois de mãos dadas
nas noites estreladas,
a ver os fantasmas a dançar na lua.

Dá-me a tua mão, companheira,
até o Abismo da Ternura Derradeira.

JOSÉ GOMES FERREIRA, in POETA MILITANTE I (Ed. Dom Quixote, 1990)