segunda-feira, 27 de maio de 2013

Quando o Amor Morrer Dentro de Ti


 


Quando o amor morrer dentro de ti,
Caminha para o alto onde haja espaço,
E com o silêncio outrora pressentido
Molda em duas colunas os teus braços.
Relembra a confusão dos pensamentos,
E neles ateia o fogo adormecido
Que uma vez, sonho de amor, teu peito ferido
Espalhou generoso aos quatro ventos.
Aos que passarem dá-lhes o abrigo
E o nocturno calor que se debruça
Sobre as faces brilhantes de soluços.
E se ninguém vier, ergue o sudário
Que mil saudosas lágrimas velaram;
Desfralda na tua alma o inventário
Do templo onde a vida ora de bruços
A Deus e aos sonhos que gelaram.

Ruy Cinatti, in “Obra Poética”

domingo, 19 de maio de 2013

Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos


Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos,
Sacode as aves que te levam o olhar.
Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.

Porque eu cheguei e é tempo de me veres,
Mesmo que os meus gestos te trespassem
De solidão e tu caias em poeira,
Mesmo que a minha voz queime o ar que respiras
E os teus olhos nunca mais possam olhar.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in CORAL (Liv. Simões Lopes, 1950), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

sábado, 18 de maio de 2013

MORRER DE AMOR


Morrer de amor
ao pé da tua boca

Desfalecer
à pele
do sorriso

Sufocar
de prazer
com o teu corpo

Trocar tudo por ti
se for preciso

MARIA TERESA HORTA, in DESTINO (Quetzal, 1988), in POESIA REUNIDA (D. Quixote, 2009)

Amei-te como na vida se ama uma só vez


Amei-te como na vida se ama uma só vez;
e todos os afetos que dividi depois eram
apenas cinzas que evocavam o brilho dessa
imensa chama. Troquei suspiros e beijos

com muitas outras bocas quando, na minha,
o travo da solidão era uma amarga desculpa
para repartir o pouco que não tinha; mas

em nenhuma quis morder fruto mais
suculento que o silêncio nem permiti que
pousasse sequer o meu nome verdadeiro -
que só nos teus lábios era graça e canção

e eco de loucura. Foi o meu corpo tão vão displicente
naqueles que o cingiram que me faria velha
a tentar recordar-lhes os gestos hesitantes,
as convulsões da pressa e os veios de sal que
descreviam no litoral da pele o aviso de uma
paisagem interior abandonada. Mas de nada

me serviu amar-te assim - pois, ao dizer-te o
que não pude ser longe de ti, digo-te o que sou
e isso há de guardar-te para sempre de voltares.


MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in POESIA REUNIDA (Quetzal, 2012)

sexta-feira, 17 de maio de 2013

POEMA SEPTUAGÉSIMO SÉTIMO


Não te peço perdão. E peço-te
que não me peças perdão. Faz
como os alfarrabistas para quem
não interessam as qualidades de uma obra
mas, e apenas, a sua raridade. Não
me julgues ainda. Deixa que o tempo
se encarregue desse julgamento. Hoje
e amanhã não são o mesmo dia. Todos
os passados já foram futuro, e o futuro
é com esses passados que tem
de construir-se. O próximo futuro.
Porque o futuro longínquo será a soma
dos futuros mais próximos, isto é,
a soma dos passados que hão-de
vir, sem pedir perdão a um futuro
que, exactamente por ser futuro,
não se pode saber se chegará.

JOAQUIM PESSOA, in GUARDAR O FOGO (Ed. Esgotadas, 2013)

terça-feira, 14 de maio de 2013

Não digas nada – a tua boca já me pertenceu


Não digas nada – a tua boca já me pertenceu
e agora tenho ciúmes das palavras. O que
disseres será um beijo pousado nos lábios de
outra mulher, dor e mais dor, traição maior
para quem acreditou que o teu amor era para
a morte. Não fales – tenho também ciúmes

da tua voz; ouvir-te é ficar só uma vez mais.

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in POESIA REUNIDA-A Ideia do Fim (Quetzal, 2012)