sábado, 31 de março de 2012

O MEU TEMPO É ETERNO

O meu tempo é eterno.
Habito os céus
Que as aves deixaram vazios
Há já tanto tempo.
Talvez não saibas
Que povoas os meus pensamentos,
Que tomas forma nos meus sonhos.
Quando te vier buscar
Tomarei tuas mãos,
Trocaremos palavras
Pela eternidade do nosso olhar…
Eu sou o anjo do desespero.


PAULO EDUARDO CAMPOS, in NA SERENIDADE DOS RIOS QUE ENLOUQUECEM (Amores Perfeitos, 2005)

É por Ti que Vivo

Amo o teu túmido candor de astro
a tua pura integridade delicada
a tua permanente adolescência de segredo
a tua fragilidade acesa sempre altiva

Por ti eu sou a leve segurança
de um peito que pulsa e canta a sua chama
que se levanta e inclina ao teu hálito de pássaro
ou à chuva das tuas pétalas de prata

Se guardo algum tesouro não o prendo
porque quero oferecer-te a paz de um sonho aberto
que dure e flua nas tuas veias lentas
e seja um perfume ou um beijo um suspiro solar

Ofereço-te esta frágil flor esta pedra de chuva
para que sintas a verde frescura
de um pomar de brancas cortesias
porque é por ti que vivo é por ti que nasço
porque amo o ouro vivo do teu rosto

António Ramos Rosa, in 'O Teu Rosto'


não é hoje?
não é aquihoje?


foi ontem?
será amanhã?


quandonde foi?
quandonde será?

eu queria um jázinho que fosse
aquijá
tuoje aquijá


ALEXANDRE O'NEILL, in ENTRE A CORTINA E A VIDRAÇA (1972), in POESIAS COMPLETAS 1951/1986 (INCM, 3ª ed. , 1995)

Amo-te Muito, Meu Amor, e Tanto

Amo-te muito, meu amor, e tanto
que, ao ter-te, amo-te mais, e mais ainda
depois de ter-te, meu amor. Não finda
com o próprio amor o amor do teu encanto.

Que encanto é o teu? Se continua enquanto
sofro a traição dos que, viscosos, prendem,
por uma paz da guerra a que se vendem,
a pura liberdade do meu canto,

um cântico da terra e do seu povo,
nesta invenção da humanidade inteira
que a cada instante há que inventar de novo,

tão quase é coisa ou sucessão que passa...
Que encanto é o teu? Deitado à tua beira,
sei que se rasga, eterno, o véu da Graça.

Jorge de Sena, in “Poesia, Vol. I”

A SOLIDÃO

A noite abre os seus ângulos de lua
E em todas as paredes te procuro

A noite ergue as suas esquinas azuis
E em todas as esquinas te procuro

A noite abre as suas praças solitárias
E em todas as solidões eu te procuro

Ao longo do rio a noite acende as suas luzes
Roxas verdes e azuis

Eu te procuro.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in O CRISTO CIGANO (1961), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

UM OUTRO POEMA DE AMOR

No fundo, as relações entre mim e ti
cabem na palma da mão:
onde o teu corpo se esconde e
de onde,
quando sopro por entre os dedos,
foge como fumo
um pequeno pássaro,
ou um simples segredo
que guardávamos para a noite.


NUNO JÚDICE, in O MOVIMENTO DO MUNDO, ( Quetzal, 1997)

quinta-feira, 29 de março de 2012

AQUI

Aqui, deposta enfim a minha imagem,
Tudo o que é jogo e tudo o que é passagem.
No interior das coisas canto nua.
Aqui livre sou eu eco da lua
E dos jardins, os gestos recebidos
E o tumulto dos gestos pressentidos
Aqui sou eu em tudo quanto amei.
Não pelo meu ser que só atravessei,
Não pelo meu rumor que só perdi,
Não pelos incertos actos que vivi,
Mas por tudo de quanto ressoei
E em cujo amor de amor me eternizei


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in DIA DO MAR (1947), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

[A BRASA DO TEU CORPO]

A brasa do teu corpo
a queimar a palma
acesa
da mão do meu desejo

MARIA TERESA HORTA, in AS PALAVRAS DO CORPO (Publ. D. Quixote, 2012)

terça-feira, 27 de março de 2012

ENCANTAMENTO

há uma palavra mágica que se diz. essa palavra
é sempre diferente. montanha, precipício, brilho.
essa palavra pode ser um olhar. a voz. um olhar.

essa palavra pode ser o espaço de silêncio onde
não se disse uma palavra. brilho, montanha.
essa palavra pode ser uma palavra, qualquer palavra.

há uma palavra mágica que se diz. há um momento.
depois dessa palavra, só depois dessa palavra,
pode começar o amor.

JOSÉ LUÍS PEIXOTO, in A CASA, A ESCURIDÃO ( Temas e Debates, 2002)

segunda-feira, 26 de março de 2012

UM BEIJO

Foste o beijo melhor da minha vida,
Ou talvez o pior... Glória e tormento,
Contigo à luz subi do firmamento,
Contigo fui pela infernal descida!

Morreste, e o meu desejo não te olvida:
Queimas-me o sangue, enches-me o pensamento,
E do teu gosto amargo me alimento,
E rolo-te na boca malferida.

Beijo extremo, meu prémio e meu castigo,
Batismo e extrema-unção, naquele instante
Por que, feliz, eu não morri contigo?

Sinto-te o ardor, e o crepitar te escuto,
Beijo divino! e anseio, delirante,
Na perpétua saudade de um minuto...


OLAVO BILAC, in TARDE (1919), in POESIAS (Ed. Tecnoprint, Brasil, 1978)

domingo, 25 de março de 2012

VI-TE LUZ

Quis-te beijos e ternura,
vi-te luz de manhã clara,
num jogo de amor e fogo.
Morreste-me nas mãos,
como pardal atingido,
tingido de mentira intencional.
Sofri no desespero? Não faz mal.
Fiz-me cura. Cresço.

MARGARIDA FARO, in 44 POEMAS (Fonte da Palavra, 2011)

quinta-feira, 22 de março de 2012

Poeminha Súbito


Mas que sabemos nós de toda essência?
Do beijo que se foi fica um perfume;
do que não foi, também.
O beijo estava em nós antes do beijo!
Somos o que já éramos? Terrível
o futuro.

Anderson Braga Horta


O teu nome

Flor de acaso ou ave deslumbrante,
Palavra tremendo nas redes da poesia,
O teu nome,como o destino,chega,
O teu nome,meu amor,o teu nome nascendo
De todas as cores do dia! 

Alexandre O'Neill




domingo, 18 de março de 2012

SEM TI

E de súbito desaba o silêncio.
É um silêncio sem ti,
sem álamos,
sem luas.

Só nas minhas mãos
ouço a música das tuas.

EUGÉNIO DE ANDRADE, in CHUVA SOBRE O ROSTO, (Modo de Ler/Ed. Afrontamento, 2009)

sexta-feira, 16 de março de 2012

HÁ DUAS HORAS

Há duas horas sentei-me à porta de tua casa,
Há duas horas que te espero
E tu não vens.

As pessoas passam e não dizem nada,
A cidade não pára e eu continuo sentada à tua porta.

Tu vens e sorris,
Como se a solidão tivesse algo de bonito,
Eu vejo-te e sorrio,
Há duas horas que te espero.


SARA RODRIGUES COSTA, in QUANDO A PALAVRA ERA UM VERBO (Chiado Ed., 2011)

domingo, 11 de março de 2012

PODIA DIZER-TE HOJE

Podia dizer-te hoje,
Que nunca te deixei.
Por nenhum momento.
Ouvia-te chorar dentro de ti.
E as tuas lágrimas
Inundavam as planícies, negras
E acidentadas, do meu corpo
Pela erosão dos teus dias.
Já não tenho lugar
No silêncio onde moram as gaivotas,
Nem na tua pele, onde dantes,
Desenhava constelações.
Já não deixamos as roupas
Debaixo dos luares
Dos nossos corpos,
Nem sentimos o galopar
Dos nossos corações,
Por entre bosques
E lábios de silêncio.

PAULO EDUARDO CAMPOS, in NA SERENIDADE DOS RIOS QUE ENLOUQUECEM (Amores Perfeitos, 2005)

O BEIJO

Um beijo em lábios é que se demora
e tremem no abrir-se a dentes línguas
tão penetrantes quanto línguas podem.
Mais beijo é mais. É boca aberta hiante
para de encher-se ao que se mova nela.
É dentes se apertando delicados.
É língua que na boca se agitando
irá de um corpo inteiro descobrir o gosto
e sobretudo o que se oculta em sombras
e nos recantos em cabelos vive.
É beijo tudo o que de lábios seja
quanto de lábios se deseja.

(19/5/1971)

JORGE DE SENA, in ANTOLOGIA POÉTICA (Asa, 1999)

sábado, 10 de março de 2012

QUE

Que silêncio me dás que eu já não tenha
Quebrado por palavras inquietas
Que resistem na meia-luz da ideia
Que se afirma cada vez mais lentamente
Que o devagar onde a vista se perde?

Que haja o dia de ser o eixo por
Que se movem em nós as mãos da água
Que definem as marcas arbitrárias
Questionadas na penumbra dos quartos
Que regressam, simplesmente regressam.

Que forma tem a transparência com
Que me envolves nos hemisférios em
Que não pergunto à voz da noite de
Que cores se tece a dimensão de um mar
Que por sombras e luzes anuncia
Que forma tem?


MÁRIO DOMINGOS, in O DESPERTAR DOS VERBOS (Edium Editores, 2011)

terça-feira, 6 de março de 2012

DIA 35

Devolve a luz que me roubaste. A luz da minha carne,
da minha cama, a luz que agora corre em incertos ru-
mores. De olhos absurdos, repara como a noite é a pe-
le da minha alma e como me visto com a recordação
de outros dias. Num altar de penumbra permanecem
as minhas mãos, mas as preces são apenas a música
do ar, minúsculos sons que se libertaram e que vão re-
gressando à superfície dos objectos.
Devolve a luz que me roubaste. A luz que tinha o rio
que há em mim, a luz de mim, a luz que cantava nos
meus versos. Essa luz merecida pelos meus braços, pe-
los meus sentidos, pelas minhas palavras. Devolve-a,
para que eu não tenha de encostar o rosto à noite, e
para que não sinta medo até amanhecer. Devolve-a,
porque o tempo é juiz desse teu roubo, e porque tu-
do é escuro na sua consciência. Devolve-a, porque os
dias se acabam quando acaba a luz. Devolve-a, por-
que a humilhação e as lágrimas são troféus que o es-
curo reclama. E porque prefiro, então, cegar os olhos.
Por favor, devolve a luz que me roubaste.


JOAQUIM PESSOA, in ANO COMUM (Litexa, 2011)

sábado, 3 de março de 2012

[PORQUE ME MATASTE]

Por que me mataste
Nesta noite sem dias,
Quando abriste as portas
Que te levaram a mim,
Percorrendo os longos corredores
Da minha vida?
Por que chegaste
Sem avisares,
Trazendo nos olhos
O pôr-do-sol e o canto das aves?
Por que partiste,
Quando estremeceu esta noite fria
Envolta em nevoeiro?


PAULO EDUARDO CAMPOS, in NA SERENIDADE DOS RIOS QUE ENLOUQUECEM (Amores Perfeitos, 2005)

São horas de voltar


São horas de voltar. Tu já não vens, e a espera
gastou a luz de mais um dia. Agora, quem passar
trará um corpo incerto dentro do nevoeiro,
mas terá outro nome e outro perfume. Eu volto


à casa onde contigo se demorou o verão e arrumo
os livros, escondo as cartas, viro os retratos
para a mesa. Sei que o tempo se magoou de nós,
sei que não voltas, e ouço dizer que as aves
partem sempre assim, subitamente. Outras virão


em março, apago as luzes do quarto, nunca as mesmas.


Maria do Rosário Pedreira

Vieste como um barco carregado de vento

Vieste como um barco carregado de vento, abrindo
feridas de espuma pelas ondas. Chegaste tão depressa
que nem pude aguardar-te ou prevenir-me; e só ficaste
o tempo de iludires a arquitectura fria do estaleiro


onde hoje me sentei a perguntar como foi que partiste,
se partiste,
que dentro de mim se acanham as certezas e
tu vais sempre ardendo, embora como um lume
de cera, lento e brando, que já não derrama calor.


Tenho os olhos azuis de tanto os ter lançado ao mar
o dia inteiro, como os pescadores fazem com as redes;
e não existe no mundo cegueira pior do que a minha:
o frio do horizonte começou ainda agora a oscilar,
exausto de me ver entre as mulheres que se passeiam
no cais como se transportassem no corpo o vaivém
dos barcos. Dizem-me os seus passos


que vale a pena esperar, porque as ondas acabam
sempre por quebrar-se junto das margens. Mas eu sei
que o meu mar está cercado de litorais, que é tarde
para quase tudo. Por isso, vou para casa


e aguardo os sonhos, pontuais como a noite.


Maria do Rosário Pedreira

DIZ-ME O TEU NOME

Diz-me o teu nome - agora, que perdi
quase tudo, um nome pode ser o princípio
de alguma coisa. Escreve-o na minha mão

com os teus dedos - como as poeiras se
escrevem, irrequietas, nos caminhos e os
lobos mancham o lençol da neve com os
sinais da sua fome. Sopra-mo no ouvido,

como a levares as palavras de um livro para
dentro de outro - assim conquista o vento
o tímpano das grutas e entra o bafo do verão
na casa fria. E, antes de partires, pousa-o

nos meus lábios devagar: é um poema
açucarado que se derrete na boca e arde
como a primeira menta da infância.

Ninguém esquece um corpo que teve
nos braços um segundo - um nome sim.

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in NENHUM NOME DEPOIS (Gótica, 2ª. Ed., 2005)

Mais Triste

É triste, diz a gente, a vastidão
Do mar imenso! E aquela voz fatal
Com que ele fala, agita o nosso mal!
E a Noite é triste como a Extrema-Unção!

É triste e dilacera o coração
Um poente do nosso Portugal!
E não vêem que eu sou ... eu ... afinal,
A coisa mais magoada das que são?! ...

Poentes de agonia trago-os eu
Dentro de mim e tudo quanto é meu
É um triste poente de amargura!

E a vastidão do Mar, toda essa água
Trago-a dentro de mim num mar de Mágoa!
E a noite sou eu própria! A Noite escura!!

Florbela Espanca, in "Livro de Mágoas"

quinta-feira, 1 de março de 2012

[TENHO UM DECOTE POUSADO NO VESTIDO E NÃO SEI SE VOLTAS]

Tenho um decote pousado no vestido e não sei se voltas,
mas as palavras estão prontas sobre os lábios como
segredos imperfeitos ou gomos de água guardados para o verão.
E, se de noite as repito em surdina, no silêncio
do quarto, antes de adormecer, é como se de repente
as aves tivessem chegado já ao sul e tu voltasses
em busca desses antigos recados levados pelo tempo:


Vamos para casa? O sol adormece nos telhados ao domingo
e há um intenso cheiro a linho derramado nas camas.
Podemos virar os sonhos do avesso, dormir dentro da tarde
e deixar que o tempo se ocupe dos gestos mais pequenos.


Vamos para casa. Deixei um livro partido ao meio no chão
do quarto, estão sozinhos na caixa os retratos antigos
do avô, havia as tuas mãos apertadas com força, aquela
música que costumávamos ouvir no inverno. E eu quero rever
as nuvens recortadas nas janelas vermelhas do crepúsculo;
e quero ir outra vez para casa. Como das outras vezes.


Assim me faço ao sono, noite após noite, desfiando a lenta
meada dos dias para descontar a espera. E, quando as crias
afastarem finalmente as asas da quilha no seu primeiro voo,
por certo estarei ainda aqui, mas poderei dizer que, pelo
menos uma ou outra vez, já mandei os recados, já da minha
boca ouvi estas palavras, voltes ou não voltes.


MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in 366 POEMAS QUE FALAM DE AMOR, Antol. org. por Vasco Graça Moura, (Lisboa, Quetzal, 2003)