terça-feira, 6 de março de 2012

DIA 35

Devolve a luz que me roubaste. A luz da minha carne,
da minha cama, a luz que agora corre em incertos ru-
mores. De olhos absurdos, repara como a noite é a pe-
le da minha alma e como me visto com a recordação
de outros dias. Num altar de penumbra permanecem
as minhas mãos, mas as preces são apenas a música
do ar, minúsculos sons que se libertaram e que vão re-
gressando à superfície dos objectos.
Devolve a luz que me roubaste. A luz que tinha o rio
que há em mim, a luz de mim, a luz que cantava nos
meus versos. Essa luz merecida pelos meus braços, pe-
los meus sentidos, pelas minhas palavras. Devolve-a,
para que eu não tenha de encostar o rosto à noite, e
para que não sinta medo até amanhecer. Devolve-a,
porque o tempo é juiz desse teu roubo, e porque tu-
do é escuro na sua consciência. Devolve-a, porque os
dias se acabam quando acaba a luz. Devolve-a, por-
que a humilhação e as lágrimas são troféus que o es-
curo reclama. E porque prefiro, então, cegar os olhos.
Por favor, devolve a luz que me roubaste.


JOAQUIM PESSOA, in ANO COMUM (Litexa, 2011)

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