domingo, 30 de setembro de 2012

Não adormeças: o vento ainda assobia no meu quarto


Não adormeças: o vento ainda assobia no meu quarto
e a luz é fraca e treme e eu tenho medo
das sombras que desfilam pelas paredes como fantasmas
da casa e de tudo aquilo com que sonhes.

Não adormeças já. Diz-me outra vez do rio que palpitava
no coração da aldeia onde nasceste, da roupa que vinha
a cheirar a sonho e a musgo e ao trevo que nunca foi
de quatro folhas; e das ervas húmidas e chãs
com que em casa se cozinham perfumes que ainda hoje
te mordem os gestos e as palavras.

O meu corpo gela à míngua dos teus dedos, o sol vai
demorar-se a regressar. Há tempo para uma história
que eu não saiba e eu juro que, se não adormeceres,
serei tão leve que não hei-de pesar-te nunca na memória,
como na minha pesará para sempre a pedra do teu sono
se agora apenas me olhares de longe e adormeceres.


MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in A CASA E O CHEIRO DOS LIVROS (Quetzal, 1996), in POESIA REUNIDA (Quetzal, 2012)

OS ERROS

A confusão a fraude os erros cometidos
A transparência perdida — o grito
Que não conseguiu atravessar o opaco
O limiar e o linear perdidos

Deverá tudo passar a ser passado
Como projecto falhado e abandonado
Como papel que se atira ao cesto
Como abismo fracasso não esperança
Ou poderemos enfrentar e superar
Recomeçar a partir da página em branco
Como escrita de poema obstinado?

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in O NOME DAS COISAS (Moraes Ed., 1977), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

REFLEXOS

Olho-te pelo reflexo
Do vidro
E o coração da noite
E o meu desejo de ti
São lágrimas por dentro,
Tão doídas e fundas
Que se não fosse:

o tempo de viver;
e a gente em social desencontrado;
e se tivesse a força;
e a janela ao meu lado
fosse alta e oportuna,

invadia de amor o teu reflexo
e em estilhaços de vidro
mergulhava em ti.

ANA LUÍSA AMARAL, in COISAS DE PARTIR (Fora do Texto, 1993), in INVERSOS - POESIA 1990-2010 (Pub. D. Quixote, 2010)

sábado, 29 de setembro de 2012

Muitas vezes te esperei, perdi a conta


Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que importa

que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
- tanto pó sobre os móveis tua ausência.

Se não és tu, que me importa?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.

FERNANDO ASSIS PACHECO, in A MUSA IRREGULAR (Ed. Asa, Porto, 1997)

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

A dor que a minh' alma sente


MOTE ALHEIO

A dor que a minh' alma sente
não na sabe toda a gente.

VOLTAS

Que estranho caso de amor,
que desejado tormento,
que venho a ser avarento
das dores de minha dor!
Por me não tratar pior,
se se sabe ou se se sente,
não na digo a toda a gente.

Minha dor e causa dela
de ninguém ouso fiar,
que seria aventurar
a perder-me ou a perdê-la.
E pois só com padecê-la
a minha alma está contente,
não quero que a saiba a gente.

Ande no peito escondida,
dentro n'alma sepultada;
de mim só seja chorada,
de ninguém seja sentida.
Ou me mate ou me dê vida,
ou viva triste ou contente,
não ma saiba toda a gente.

Luís Vaz de Camões

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

EM NOME


Em nome da tua ausência
Construi com loucura uma grande casa branca
E ao longo das paredes te chorei.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in DUAL (Moraes Ed., 1972), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

MORRER DE AMOR


Morrer de amor
ao pé da tua boca

Desfalecer
à pele
do sorriso

Sufocar
de prazer
com o teu corpo

Trocar tudo por ti
se for preciso.

MARIA TERESA HORTA, in POESIA COMPLETA (Litexa, 1983)

sábado, 22 de setembro de 2012

SEM PECADO


Pequei...
Num momento
Em que perdi o teu olhar
E esqueci-me
Do mar suave
Beijo… sempre.
Pequei...
Sem pecado
Na dor de sentir
Como vela aroma
Que escureceu
No mirrar do caminho.
Pequei...
No cair de um abraço
No rasgar de um dizer
No escrever sem fim
No trovão da quebra
Pequei… apenas… sem pecado!

JOSÉ LUÍS OUTONO, MAR DE SENTIDOS (Ed. Vieira da Silva, 2012)

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

E lhe passou a mão pelo rosto


E lhe passou a mão pelo rosto, desceu-lhe carícias pelo peito.
Desabotoava-lhe o vestido? Seu gesto o convidou a mais se aproximar.
Parecia que ela lhe queria entregar um segredo. Colocou-lhe os lábios
sobre o ouvido mas, em lugar de palavra, ela imitou o mar numa concha.

MIA COUTO, in TERRA SONÂMBULA ( Caminho, 1992; Bis-LEYA, 2008)

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

ÉS UMA PRESENÇA

És uma presença. Constante.
Como o fantasma bom que me guarda a casa;
um sorriso solto, um beijo calado, ponto de luz
para os olhos cansados de quem viaja.
És uma presença. Constante.
Como o que diziam do anjo da guarda;
um olhar que não procuro, mas sei.
Jamais alguém tocará a minha Alma
com amor semelhante.


MARGARIDA FARO, in 44 POEMAS (Fonte da Palavra, 2011)

terça-feira, 18 de setembro de 2012

DA FALA


Quando ainda não sabia as palavras possíveis
para passar entre voz e silêncio dos outros,
tal como entre troncos das florestas mudas,
eu falava com as nuvens que vinham
sobre nós a cantar, de trémulas asas,
e aspergiam os aromas de êxtase.

FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO, in AS FÁBULAS (Quasi, 2002)

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

DIA 20

A cor do domingo é inspirada. Pequenos peixes impro-
vavelmente florescem dos teus gestos, o teu corpo ex-
tasiado está ainda na minha memória e já não é corpo,
é memória.
Oiço o destino como se ouvem os guisos, os sinos e o
vento. Sei que guardas palavras minhas nos cabelos, as
que não couberam na tua cabeça, mas que estavam já
grávidas de amor.
Essas palavras são o meu ofício e a minha fala.
Não poderei repeti-las. Pertencem a um momento úni-
co, filhas de um fogo puro, intenso e imenso. Com o
barro da sombra vou fazer o sol, construir a casa para
ti, para a tua ausência. Pintá-la com a cor deste domin-
go, madura e abundante.
Vou escrever o mundo e inscrever-te nele, como se, an-
tes de nós, o mundo não tivesse existido.

JOAQUIM PESSOA, in ANO COMUM (Litexa, 2011)

domingo, 16 de setembro de 2012

OLHOS POSTOS NA TERRA


Olhos postos na terra, tu virás
no ritmo da própria primavera,
e como as flores e os animais
abrirás nas mãos de quem te espera.

EUGÉNIO DE ANDRADE, in AS MÃOS E OS FRUTOS (Fund. Eugénio de Andrade, 2000)

Muitas vezes te esperei, perdi a conta


Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que importa
que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
- tanto pó sobre os móveis tua ausência.

Se não és tu, que me importa?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.

FERNANDO ASSIS PACHECO, in A MUSA IRREGULAR (Ed. Asa, Porto, 1997)

DEFRONTE DO MAR





Não quero mais. Não quero.
Não gosto de me sentir débil e fraca.
Antes sozinha, que me conheço, lúcida e caustica,
do que neste enjoo febril de desamparo,
arrepio de agonia lenta, nó de lágrimas.
Mais eloquente do que as palavras mudas,
chega-se, implacável,
- feroz inimiga da minha vontade -,
uma verdade que se instala e toma forma crua:
a tua necessidade de mim é nula.
Confusa, atraiçoada e triste,
estou como quem, por força das circunstâncias,
resiste, mas, preferia ceder, morta por dentro.

Sob o doce véu da fantasia, a visão parecia tão real!
Afinal, foi tudo ilusão, um sonho avulso, o perfeito engano,
outra mentira nascida nas profundezas negras
da minha Solidão de ser, mais uma vaidade minha,
uma coisa solta, por aí, sem raiz nem paradeiro.
E, neste pesar, vim vê-lo.
Vim ver o mar-testemunha.
Trago a desculpa que me sustenta,
vim saber o que é feito da promessa
e da ternura que ficou naquele instante,
estanque e desperto,
que tão depressa perdi.
Vim à tua procura,
confirmar a suspeita de ser vazio no teu peito.
Vim ouvi-lo respirar, de novo e no mesmo lugar,
imenso e indiferente à dor que sinto.
Vim à minha procura nele
para me perder de ti,
que já não sei quem sou, neste fogo sem eco.
Vim vê-lo de muito perto, firme, forte, verde.
Liguei-o a nós, se calhar, sem razão,
porque ele é para sempre, continua.
Nós é que não.

MARGARIDA FARO, in 44 POEMAS (Fonte da Palavra, 2011)

sábado, 15 de setembro de 2012

[QUE LÍNGUA FALAM OS PÁSSAROS]

que língua falam os pássaros

de madrugada
que não a do amor?

escuto a madrugada
– lento manancial de céus.

os pássaros
são mais sabedores.

ONDJAKI, in DENTRO DE MIL FAZ SUL SEGUIDO DE ACTO SANGUÍNEO (Caminho, 2010)

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

O QUE TEMOS

Deixei contigo o meu amor,
música de açúcar a meio da tarde,
um botão de vestido por apertar,
eo da vida por desapertar,
a flor que secou nas páginas de um livro,
tantas palavras por dizer
e a pressa de chegar,
com o azul do céu à saída.
por entre cafés fechados e um por abrir.

Mas trouxe comigo o teu amor,
os murmúrios que o dizem quando os lembro,
a surpresa de um brilho no olhar,
brinco perdido em secreto campo,
o remorso de partir ao chegar,
e tudo descobrir de cada vez,
mesmo que seja igual ao que vês
neste caminho por encontrar
em que só tu me consegues guiar.

Por isso tenho tudo o que preciso
mesmo que nada nos seja dado;
e basta-me lembrar o teu sorriso
para te sentir ao meu lado.

NUNO JÚDICE, in O ESTADO DOS CAMPOS (Pub. Dom Quixote, 2003)

domingo, 9 de setembro de 2012

COISAS TUAS


Levo coisas tuas
para poder estar contigo
na distância.
Para nunca te perder a companhia,
mesmo não estando.
Levo gravado o teu gesto,
o pranto, o riso, e,
(ora inocente, ora picante),
o teu sorriso,
que é a tua expressão,
o teu maior encanto.
E levo um objecto,
teu pertence,
como se o espaço tivesse autoridade
e o tempo nos afastasse.

Como se fosse preciso...


MARGARIDA FARO, in 44 POEMAS (Fonte da Palavra, 2011)

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

RIO TRISTE


Longuíssimos braços têm
os olhos que tudo abraçam.
Somente, só os olhos vêem
os olhos que por mim passam.

Clandestinamente os lanço,
braços de mar, olhos de água.
Longo ser líquido avanço,
abraço a vida, e alago-a.

Destino do amor triste
que não se ouve nem se vê.
ama apenas porque existe.
Não sabe a quem nem porquê.

Nesta obrigação de estar
que a cada um de nós cabe,
coube-me esta de amar.
E ninguém sabe.

ANTÓNIO GEDEÃO, in "POESIA COMPLETA" (Ed. João Sá da Costa, 1996)

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

ABSOLVIÇÃO


Incendeiam-me ainda os beijos que me não deste
E cegam-se os acenos que me não fizeste
Da janela irreal onde o teu vulto
Era uma alucinação dos meus sentidos.
Mas, decorrida a vida, e oculto
Nestes versos doridos,
A saber que não sabes que te amei
E cantei,
E nem mesmo imaginas quem eu sou
E como é solitária e dói a minha humanidade,
Em vez de te acusar
E me culpar
Maldigo o arbítrio da fatalidade
Que cruelmente nos desencontrou.

(1992)

MIGUEL TORGA, in ANTOLOGIA POÉTICA (Coimbra, 4ª ed., 1994)

SETE LUAS

Há noites que são feitas dos meus braços
e um silêncio comum às violetas
e há sete luas que são sete traços
de sete noites que nunca foram feitas

Há noites que levamos à cintura
como um cinto de grandes borboletas.
E um risco a sangue na nossa carne escura
duma espada à bainha de um cometa.

Há noites que nos deixam para trás
enrolados no nosso desencanto
e cisnes brancos que só são iguais
à mais longínqua onda de seu canto.

Há noites que nos levam para onde
o fantasma de nós fica mais perto:
e é sempre a nossa voz que nos responde
e só o nosso nome estava certo.

NATÁLIA CORREIA, in POESIA COMPLETA ( Publ. Dom Quixote, Lisboa 1999)

sábado, 1 de setembro de 2012

PIENSA EN MÍ




Si tienes un hondo penar, piensa en mí..
si tienes ganas de llorar, piensa en mí.
Ya ves que venero tu imagen divina,
tu párvula boca que siendo tan niña
me enseño a pecar

Piensa en mí cuando sufras, cuando llores
también piensa en mí,
cuando quieras
quitarme la vida, no la quiero para nada,
para nada me sirve sín tí.

Piensa en mí cuando sufras, cuando llores,
también piensa en mí, cuando quieras
quitarme la vida, no la quiero para nada,
para nada me sirve sin tí.

Piensa en mí cuando sufras, cuando llores
también piensa en mí, cuando quieras
quitarme la vida,
No la quiero para nada,
para nada me sirve sin tí.
Piensa en mi..........




Luz Casal