domingo, 26 de outubro de 2014

Pergunta-me


Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue

Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos

Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente

Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer

MIA COUTO, in RAÍZ DE ORVALHO E OUTROS POEMAS, (Caminho, 1999)

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Dois amantes felizes não têm fim nem morte


Dois amantes felizes não têm fim nem morte,
nascem e morrem tanta vez enquanto vivem,
são eternos como é a natureza.


Pablo Neruda

O poeta pede a seu amor que lhe escreva


Amor de minhas entranhas, morte viva,
em vão espero tua palavra escrita
e penso, com a flor que se murcha,
que se vivo sem mim quero perder-te.
O ar é imortal. A pedra inerte
nem conhece a sombra nem a evita.
Coração interior não necessita
o mel gelado que a lua verte.

Porém eu te sofri. Rasguei-me as veias,
tigre e pomba, sobre tua cintura
em duelo de mordiscos e açucenas.
Enche, pois, de palavras minha loucura
ou deixa-me viver em minha serena
noite da alma para sempre escura.

Federico Garcia Lorca

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

COMEÇO A CONHECER-ME. NÃO EXISTO.


Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,
Ou metade desse intervalo, porque também há vida...
Sou isso, enfim...
Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulho de chinelas no corredor.
Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.
É um universo barato.

ÁLVARO DE CAMPOS
Poesias
Heterónimo de Fernando Pessoa

terça-feira, 7 de outubro de 2014

INCONFESSÁVEL


...e pelas minhas mãos
desfilam todos os desejos ardentes
que o teu olhar silencioso desvendou
num querer inconfessável...

JOÃO CARLOS ESTEVES, in INVENTEI-TE AS MANHÃS (Chiado Ed. 2013)