segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

TOCA-ME


Toca-me.
Sê em mim o começo
a alegria e a festa
Toca-me de leve
como um sopro
para que me incendeie
e te ilumine de raios
tempestades, emoções
Rouqueja-me os sons
do teu absoluto
e morre comigo
desta vez

EDGARDO XAVIER, in CORPO DE ABRIGO (Temas Originais, 2011)

domingo, 30 de dezembro de 2012

POST SCRIPTUM


Afasto de ti com
raiva surda

o corpo
as mãos
o pensamento

e apago secreta
uma a uma
as velas acesas do teu vento

liberta ponho o corpo
em seu lugar
visto a cidade
penteio um rio sedento

penso ganhar
e fujo
e não entendo

penso dormir
mas não consigo
o tempo

E cede-se o vazio
sobre o meu ventre

e segue-se a saudade
em seu sustento

E digo este meu vício
dos teus olhos
de um verde tão lento
muito lento

Se penso que te deixo
já te quero

Se penso que recuso
já te anseio

Se penso que te odeio
já te espero

e torno a oferecer-te
o que receio

Se penso que me calo
já te grito

Se penso que me escondo
já me ofereço

Se penso que não sinto
é porque minto

Se pensas que me olhas
já estremeço.

MARIA TERESA HORTA, in MINHA SENHORA DE MIM ( D. Quixote, 1971), in POESIA REUNIDA (D. Quixote, 2009)

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

CANÇÃO GRATA


Por tudo o que me deste:
- Inquietação, cuidado,
(Um pouco de ternura? É certo, mas tão pouco!)
Noites de insónia, pelas ruas, como um louco…
- Obrigado, obrigado!

Por aquela tão doce e tão breve ilusão,
(Embora nunca mais, depois que a vi desfeita,
Eu volte a ser quem fui), sem ironia: aceita
A minha gratidão!

Que bem me faz, agora, o mal que me fizeste!
- Mais forte, mais sereno, e livre, e descuidado…
Sem ironia, amor: - Obrigado, obrigado
Por tudo o que me deste!

CARLOS QUEIRÓS, in 366 POEMAS QUE FALAM DE AMOR, Antologia organizada por Vasco Graça Moura (Lisboa: Quetzal, 2003)

Tudo é Paixão


Assim me perguntaste,
assim te respondi:
tudo é paixão.

Como não lamber
da tua pele, o mel
que o desejo fabrica?

E como a minha boca
não recolher o néctar
da tua boca?

Ou como não sorver
das tuas mãos o pólen
da ternura?

E se, em vez de paixão,
for sexo apenas,
ou loucura?

Pode até não ser amor.
Mas, seja o que for,
não é pior.

Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'

DE MÃOS ABERTAS


Se eu pudesse,
Tocava o teu rosto em silêncio
E falava-te do mar,
Deixava tombar os meus cabelos
Sobre o teu ombro
Como uma bênção
E fechava os olhos
Consciente de ser em ti
Como um salgueiro.

ANA BRILHA, in A APOLOGIA DO SILÊNCIO (ed. da Autora, 2012)

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

METAFÍSICA



De cada vez que nos teus braços
Por uns momentos morro,
Nos abismos de mim o meu amor pede socorro
Como se à força alguém lhe desatasse os laços.

De cada vez apreendo
Que fica em muito pouco, ou nada, aquele tanto
Que o querer ter promete, enquanto
Se não tendo.

Desejar é que é ter! mas não nos basta.
Sonhar é que é possuir sem tédio nem cansaços.
Sei-o, mas só já morto nos teus braços.
Sofre a carne de ter, ou de ser casta.

Sobre o desejo farto, a alma se debruça,
Contempla o nada a que o fartá-lo aponta.
E atrás do mesmo nada eis que ela mesma, tonta,
Vai, se a carne reacende a escaramuça.

Entrar num corpo até onde se oculte
O para Lá do corpo - eis o supremo sonho.
De que desejos o componho,
Se ei-lo se descompõe quando o desejo avulte?

Sôfrega, a carne pede carne. Saciada,
Pede, ela própria, o que jamais sacia.
Para de novo se inflamar, é um dia.
Para de novo desgostar, um nada.

Ai, como não te amar e não te aborrecer,
Carne de leite e rosas, - terra inglória
Do longo prélio-entendimento sem vitória
Que é carne e alma, ter-não ter?

JOSÉ RÉGIO, in FILHO DO HOMEM (Portugália, 1961)

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Soneto


Não pode Amor por mais que as falas mude
exprimir quanto pesa ou quanto mede.
Se acaso a comoção falar concede
é tão mesquinho o tom que o desilude.

Busca no rosto a cor que mais o ajude,
magoado parecer aos olhos pede,
pois quando a fala a tudo o mais excede
não pode ser Amor com tal virtude.

Também eu das palavras me arreceio,
também sofro do mal sem saber onde
busque a expressão maior do meu anseio.

E acaso perde, o Amor que a fala esconde,
em verdade, em beleza, em doce enleio?
Olha bem os meus olhos, e responde.

António Gedeão, in “Poesias Completas”

QUEIXA


Toda a noite te esperei.

Quando cheguei
Não estava ainda luar.
E fiquei
A esperar
Que viesses
Como tinhas prometido.

Toda a noite te esperei
e afinal não apareceste.

Fiquei esperando,
Esperando,
E as horas foram caindo,
Uma a uma,
Como gotas de cacimbo.

Entretanto,
Surgiu de trás da Igreja
O disco, em prata,
Da Lua.

Debaixo da cajajeira,
Junto à valeta da rua
E sob a luz que me encanta
Vi nascer a madrugada
Da cor da Semana Santa,
Vi como a noite fugia
E como raiava o dia.

Toda a noite te esperei
E afinal não apareceste...

Toda a noite te esperei
E afinal não apareceste...

Esperei
E desesperei.
Desesperei
E chorei...

AIRES ALMEIDA SANTOS, in POETAS ANGOLANOS (1962) in ANTOLOGIAS DE POESIA DA CADA DOS ESTUDANTES DO IMPÉRIO 1951-1963, Vol. I (ACEI, 1994)

UM POEMA


de amor se faz amor
de nada mais resulta amor
que amor se faz de amor
de nada mais.
resulta amor de amor
que amor se faz de nada.
mais resulta que amor de amor
se faz amor de nada.
mais.

E. M. de MELO e CASTRO, in ANTOLOGIA EFÉMERA: 1950-2000 (Nova Fronteira, 2007)

FELICIDADE


Pela flor pelo vento pelo fogo
pela estrela da noite tão límpida e serena
Pelo nácar do tempo pelo cipreste agudo
Pelo amor sem ironia por tudo
Que atentamente esperamos
Reconheci tua presença incerta
Tua presença fantástica e liberta.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in LIVRO SEXTO (Moraes Ed., 1962) in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

POEMA DA RECUSA


Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus dedos
se ter formado o afago
sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor
nem o interior da erva.

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva de ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda

MARIA TERESA HORTA, in VOZES E OLHARES NO FEMININO (Ed. Afrontamento, 2001)

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

SOB O CHUVEIRO AMAR


Sob o chuveiro amar, sabão e beijos,
ou na banheira amar, de água vestidos,
amor escorregante, foge, prende-se,
torna a fugir, água nos olhos, bocas,
dança, navegação, mergulho, chuva,
essa espuma nos ventres, a brancura
triangular do sexo — é água, esperma,
é amor se esvaindo, ou nos tornamos fonte?

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, in O AMOR NATURAL (1992)

domingo, 23 de dezembro de 2012

IDENTIDADE


Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta

Sou pólen sem insecto

Sou areia sustentando
o sexo das árvores

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço

MIA COUTO, in RAÍZ DE ORVALHO E OUTROS POEMAS, (Caminho, 1999)

sábado, 22 de dezembro de 2012

INCONSTÂNCIA


Procurei o amor, que me mentiu.
Pedi à Vida mais do que ela dava;
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!

Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!

Passei a vida a amar e a esquecer...
Atrás do sol dum dia outro a aquecer
As brumas dos atalhos por onde ando...

E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há-de partir também... nem eu sei quando...

FLORBELA ESPANCA, in LIVRO DE SOROR SAUDADE (1923)

DIA 255


Esta manhã foi a mais bela de todas as manhãs.
Cheia de ti. Do teu brilho, do teu cheiro, do teu
sorriso igual ao das maçãs.
Ainda tenho nos meus olhos o brilho dos teus
olhos. Nunca, como hoje, desejei estar contigo
numa ilha. Uma ilha deserta, mas cheia de nós.
E à tua pergunta natural: "o que é que estamos
aqui a fazer?", eu responderia também natural-
mente: "se cá estamos, é porque fazemos cá fal-
ta!".

[excerto]

JOAQUIM PESSOA, in ANO COMUM (Litexa, 2011)

TU


Com a noite dos teus olhos
escusava lua e estrelas.

Com a fonte da tua boca
não mais teria sede.

Com a raiz do teu ombro
para quê tecto ou abrigo?

Só a luz me faria falta
para poder olhar-te.

LUÍSA DACOSTA, in A MARESIA E O SARGAÇO DOS DIAS (Asa II, 2011)

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Agora o corpo é mais um barco que se solta



Agora o corpo é mais um barco que se solta.
Nele navegam primeiro os olhos e os receios.
E só depois a polpa dos dedos, à deriva, que
é quem faz o sabor das ondas nesse mar.

Levamos-lhe uma luz que é como uma promessa:
uma pequena chama azul e inquieta que treme
dentro das mãos e faz a boca abrir-se para
a espera. E não sei o que longe da margem

ilumina depois os nossos gestos: talvez
apenas a pele prateada dos peixes, o fulgor
da lua sobre a água como um gomo cheio
a desafiar os lábios, os reflexos do frio
metal das âncoras sob o olhar das estrelas.

Repara como de repente ficou distante o cais
e o outro barco amarrado ao sono da noite.
Esquece-o para sempre. Agora, adormeçamos
simplesmente, docemente, em casas de sal.

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in A CASA E O CHEIRO DOS LIVROS (Gótica, 2002), in POESIA REUNIDA (Quetzal, 2012)

Se vens à minha procura


Se vens à minha procura,
eu aqui estou. Toma-me, noite,
sem sombra de amargura,
consciente do que dou.

Nimba-te de mim e de luar.
Disperso em ti serei mais teu.
E deixa-me derramado no olhar
de quem já me esqueceu.

EUGÉNIO DE ANDRADE, in AS MÃOS E OS FRUTOS (1948), in POESIA (Modo de Ler, 2011)

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Ai eu coitada, como vivo em gram cuidado




Ai eu coitada, como vivo em gram cuidado
por meu amigo que hei alongado;    
muito me tarda    
o meu amigo na Guarda.

Ai eu coitada, como vivo em gram desejo
por meu amigo que tarda e nom vejo;  
muito me tarda   
o meu amigo na Guarda

poema [cantiga de amigo] atribuído ao rei português D. Sancho I

sábado, 15 de dezembro de 2012

......


No ponto onde o silêncio e a solidão
Se cruzam com a noite e com o frio,
Esperei como quem espera em vão,
Tão nítido e preciso era o vazio.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in POESIA (Ed. de autora, 1944), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Não digas nada!



Não digas nada!
Não, nem a verdade!
Há tanta suavidade
Em nada se dizer
E tudo se entender —
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada!
Deixa esquecer.
Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda esta viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz...
Não digas nada.

FERNANDO PESSOA, in POESIAS INÉDITAS (1930-1935), [ (Nota prévia de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1955 (imp. 1990)]

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

ENCANTAMENTO


há uma palavra mágica que se diz. essa palavra
é sempre diferente. montanha, precipício, brilho.
essa palavra pode ser um olhar. a voz. um olhar.

essa palavra pode ser o espaço de silêncio onde
não se disse uma palavra. brilho, montanha.
essa palavra pode ser uma palavra, qualquer palavra.

há uma palavra mágica que se diz. há um momento.
depois dessa palavra, só depois dessa palavra,
pode começar o amor.

JOSÉ LUÍS PEIXOTO, in A CASA, A ESCURIDÃO ( Temas e Debates, 2002)

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

[EIS-ME]


Eis-me
Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses
Para ficar sozinha ante o silêncio
Ante o silêncio e o esplendor da tua face

Mas tu és de todos os ausentes o ausente
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo em que não moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silêncio

Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes o ausente

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in LIVRO SEXTO (Moraes Ed, 1962) e OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

COISAS TUAS


Levo coisas tuas para poder estar contigo
na distância.
Para nunca te perder a companhia,
mesmo não estando.
Levo gravado o teu gesto,
o pranto, o riso, e,
(ora inocente, ora picante),
o teu sorriso,
que é a tua expressão,
o teu maior encanto.
E levo um objecto,
teu pertence,
como se o espaço tivesse autoridade
e o tempo nos afastasse.

Como se fosse preciso...


 MARGARIDA FARO, in 44 POEMAS (Fonte da Palavra, 2011)




sexta-feira, 23 de novembro de 2012

NÓS DOIS


Sinto tanta saudade de você
Sinto tanto o teu corpo em mim
Que agora
E a todo o momento
Sinto sempre a saudade
De nós dois.

CARLOS EDUARDO LEAL, in A SEDE DA MULHER (E DE UM HOMEM), (editado no Brasil, s/ data)

INCONGRUÊNCIA


Espero-te para que me abraces
Com tuas asas gigantes.
As mesmas com que me limpas
As lágrimas que correm em torrente.
Mas afasto-te bruscamente,
Como se te odiasse, de repente...
Quero-te e não te quero,
Desejo-te e não te quero,
Desejo-te e detesto-me por isso
Choro por ti e…a raiva invade-me...
Quero avidamente as tuas asas gigantes.
Volta! Choremos juntos...
Esqueçamos essa revolta que nos cega,
Ilusória, louca, imensa...
Unamo-nos! Abracemo-nos, Fortemente
E com a mesma fogueira, que outrora
Nos feria, nos doía, nos enlouquecia!
Espero-te para que me abraces,
Com tuas asas gigantes.

GUIOMAR CASAS NOVAS, in PALAVRAS NOSSAS - COLECTÂNEA DE NOVOS POETAS PORTUGUESES (Esfera do Caos, 2011)

IV


Dá-me a tua mão por cima das horas.
Quero-te conciso.
Adão depois do paraíso
errando mais nítido à distância
onde te exalto porque te demoras.

NATÁLIA CORREIA, in POEMAS (1955), in POESIA COMPLETA - O SOL NAS NOITES E O LUAR NOS DIAS (Dom Quixote, 2007)

domingo, 18 de novembro de 2012

PODIA DIZER-TE HOJE


Podia dizer-te hoje,
Que nunca te deixei.
Por nenhum momento.
Ouvia-te chorar dentro de ti.
E as tuas lágrimas
Inundavam as planícies, negras
E acidentadas, do meu corpo
Pela erosão dos teus dias.
Já não tenho lugar
No silêncio onde moram as gaivotas,
Nem na tua pele, onde dantes,
Desenhava constelações.
Já não deixamos as roupas
Debaixo dos luares
Dos nossos corpos,
Nem sentimos o galopar
Dos nossos corações,
Por entre bosques
E lábios de silêncio.

PAULO EDUARDO CAMPOS, in NA SERENIDADE DOS RIOS QUE ENLOUQUECEM (Amores Perfeitos, 2005)

sábado, 17 de novembro de 2012

ANTES DE SER PEDRA


Houve um tempo
Em que eu não era feito pedra,
Era capaz de abrir os braços
E expor o peito aberto.
Mas isso foi antes,
Antes de tudo,
Antes da memória que me dói na alma
De trazer tudo comigo,
De já não saber estender-te a mão
Ignorando o que virá depois.

Já não sei amar sem ser pela metade
As minhas mãos
Fechadas sobre o meu peito como grades,
Não sei se para guardar.

ANA BRILHA, in A APOLOGIA DO SILÊNCIO (Ed. autor, 2012)

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

TU ENSINASTE-ME A FAZER UMA CASA


Tu ensinaste-me a fazer uma casa:
com as mãos e os beijos.
Eu morei em ti e em ti meus versos procuraram
voz e abrigo.
E em ti guardei meu fogo e meu desejo. Construí
a minha casa.
Porém não sei já das tuas mãos. Os teus lábios perderam-se
entre palavras duras e precisas
que tornaram a tua boca fria
e a minha boca triste como um cemitério de beijos.

Mas recordo a sede unindo as nossas bocas
mordendo o fruto das manhãs proibidas
quando as nossas mãos surgiam por detrás de tudo
para saudar o vento.

E vejo teu corpo perfumando a erva
e os teus cabelos soltando revoadas de pássaros
que agora se recolhem, quando a noite se move,
nesta casa de versos onde guardo o teu nome.

JOAQUIM PESSOA, in OS OLHOS DE ISA (Litexa, 1983)

...........................................


Lutaram corpo a corpo com o frio
Das casas onde nunca ninguém passa,
Sós, em quartos imensos de vazio,
Com um poente em chamas na vidraça.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN. in POESIA (1944), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

DE ONDE ME CHEGAM ESTAS PALAVRAS?


De onde me chegam estas palavras?

Nunca houve palavras para gritar a tua ausência

Apenas o coração
Pulsando a solidão antes de ti
Quando o teu rosto dóia no meu rosto
E eu descobri as minhas mãos sem as tuas
E os teus olhos não eram mais
que um lugar escondido onde a primavera
refaz o seu vestido de corolas.

E não havia um nome para a tua ausência.

Mas tu vieste.

Do coração da noite?
Dos braços da manhã?
Dos bosques do Outono?

Tu vieste.
E acordas todas as horas.
Preenches todos os minutos.
acendes todas as fogueiras
escreves todas as palavras.

Um canto de alegria desprende-se dos meus dedos
quando toco o teu corpo e habito em ti
e a noite não existe
porque as nossas bocas acendem na madrugada
uma aurora de beijos.

Oh, meu amor,
doem-me os braços de te abraçar,
trago as mãos acesas,
a boca desfeita
e a solidão acorda em mim um grito de silêncio quando
o medo de perder-te é um corcel que pisa os meus cabelos
e se perde depois numa estrada deserta
por onde caminhas nua
como se estivesses triste.

JOAQUIM PESSOA, in OS OLHOS DE ISA (Litexa Editora, 1983)



O meu tempo é eterno


O meu tempo é eterno.
Habito os céus
Que as aves deixaram vazios
Há já tanto tempo.
Talvez não saibas
Que povoas os meus pensamentos,
Que tomas forma nos meus sonhos.
Quando te vier buscar
Tomarei tuas mãos,
Trocaremos palavras
Pela eternidade do nosso olhar…
Eu sou o anjo do desespero.

PAULO EDUARDO CAMPOS, in NA SERENIDADE DOS RIOS QUE ENLOUQUECEM (Amores Perfeitos, Vila Nova de Famalicão, 2005)

sábado, 10 de novembro de 2012

MAIS UMA NOITE, AMOR


Mais uma noite, amor. Ao recordar-te
retomo os fins do mundo, a cinza, os dias
manchados de outras lágrimas. Sabias
como eu a cor das sombras, essa arte

que nos engana agora e se reparte
por esquinas e cafés. Já não me guias
os muitos passos vãos, as fantasias
da minha falsa vida. Vou deixar-te

fugindo-me. Na chuva, sem ninguém,
apenas alguns vultos, o que vem
«e dói não sei porquê» -este deserto

onde te vejo, imagem outra vez,
até de madrugada. O que me fez
sentir o muito longe aqui tão perto?

FERNANDO PINTO DO AMARAL, in A ESCADA DE JACOB (Assírio & Alvim, 1993 )

SE AO MENOS SOUBESSES O QUE EU NÃO DISSE


Se ao menos soubesses tudo o que eu não disse
ou se ao menos me desses as mãos como quem beija
e não partisses, assim, empurrando o vento
com o coração aflito, sufocado de segredos;
se ao menos percebesses que eram nossos
todos os bancos de todos os jardins;
se ao menos guardasses nos teus gestos essa bandeira de lirismo
que ambos empunhamos na cidade clandestina
Quando as manhas cheiravam a óleo e a flores
e o inverno espreitava ainda nas esquinas como uma criança tremendo;
se ao menos tivesses levado as minhas mãos para tocar os teus dedos
para guardar o teu corpo;
se ao menos tivesses quebrado o riso frio dos espelhos
onde o teu rosto se esconde no meu rosto
e a minha boca lembra a tua despedida,
talvez que, hoje, meu amor, eu pudesse esquecer
essa cor perdida nos teus olhos.

JOAQUIM PESSOA, in O PÁSSARO NO ESPELHO (Moraes Ed., 1975)

terça-feira, 6 de novembro de 2012

DESEJO


Queria ser essa noite que te envolve; e
cobrir-te com o peso obscuro dos braços
que não se vêem. Um murmúrio
desceria de uma vegetação de palavras,
enrolando-se nos teus cabelos como
secretas folhas de hera num horizonte
de pálpebras. Deixarias que te olhasse
o fundo do olhos, onde brilha
a imagem do amor. E sinto os teus dedos
soltarem-se da sombra, pedindo
o silêncio que antecede a madrugada.

NUNO JÚDICE, in O ESTADO DOS CAMPOS (Pub. Dom Quixote, 2003)

domingo, 4 de novembro de 2012

Não acabarão nunca com o amor



Não acabarão nunca com o amor,
nem as rusgas,
nem a distância. 
Está provado,
pensado, 
verificado.
Aqui levanto solene 
minha estrofe de mil dedos 
e faço juramento: 
Amo firme, 
fiel 
e verdadeiramente.

Vladimir Maiakovski

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Só o fogo e o mar podem olhar-se


Só o fogo e o mar podem olhar-se
sem fim. Nem sequer o céu com suas nuvens.
Só o teu rosto, só o mar e o fogo.
As chamas, e as ondas, e os teus olhos.

...

Só o teu rosto interminavelmente.
Como o fogo e o mar. Como a morte.

Eduardo Carranza

terça-feira, 30 de outubro de 2012

ACORDO COM O TEU NOME


Acordo com o teu nome nos
meus lábios — amargo beijo

esse que o tempo dá sem
aviso a quem não esquece.

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in NENHUM NOME DEPOIS (Gótica, 2ª ed., 2005), in POESIA REUNIDA (Quetzal, 2012)

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

TENHO FRIO


Tenho frio.
E os teus braços não estão aqui
Para me aquecerem.

PAULO EDUARDO CAMPOS, in NA SERENIDADE DOS RIOS QUE ENLOUQUECEM (Amores Perfeitos, 2005)

sábado, 27 de outubro de 2012

Um beijo




Foste o beijo melhor da minha vida,
ou talvez o pior...Glória e tormento,
contigo à luz subi do firmamento,
contigo fui pela infernal descida!

Morreste, e o meu desejo não te olvida:
queimas-me o sangue, enches-me o pensamento,
e do teu gosto amargo me alimento,
e rolo-te na boca malferida.

Beijo extremo, meu prêmio e meu castigo,                                                                                
batismo e extrema-unção, naquele instante
por que, feliz, eu não morri contigo?

                                                                                 
 Sinto-me o ardor, e o crepitar te escuto,
 beijo divino! e anseio delirante,
 na perpétua saudade de um minuto....

 Olavo Bilac

Agora que o silêncio é um mar sem ondas


Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.

Miguel Torga

Inflama-me, poente: faz-me perfume e chama

Adicionar legenda


Inflama-me, poente: faz-me perfume e chama;
que o meu coração seja igual a ti, poente!
descobre em mim o eterno, o que arde, o que                            ama,
...e o vento do esquecimento arraste o que é doente!


Juan Ramón Jiménez

terça-feira, 23 de outubro de 2012

AGORA EU ERA LINDA OUTRA VEZ


Agora eu era linda outra vez
e tu existias e merecíamos
noite inteira um tão grande
amor

agora tu eras como o tempo
despido dos dias, por fim
vulnerável e nu, e eu
era por ti adentro eternamente

lentamente
como só lentamente
se deve morrer de amor

VALTER HUGO MÃE, in O RESTO DA MINHA VIDA SEGUIDO DE A REMOÇÃO DAS ALMAS (Porto,
Cadernos do Campo Alegre, 2003)

MORRER DE AMOR


Morrer de amor
ao pé da tua boca

Desfalecer
à pele
do sorriso

Sufocar
de prazer
com o teu corpo

Trocar tudo por ti
se for preciso

MARIA TERESA HORTA, in DESTINO ( Quetzal, 1988 )



domingo, 21 de outubro de 2012

Nenhuma Morte Apagará os Beijos

Nenhuma morte apagará os beijos
e por dentro das casas onde nos amámos ou pelas ruas
                               [clandestinas da grande cidade livre
estarão para sempre vivos os sinais de um grande amor,
esses densos sinais do amor e da morte
com que se vive a vida.

Aí estarão de novo as nossas mãos.
E nenhuma dor será possível onde nos beijámos.
Eternamente apaixonados, meu amor. Eternamente livres.
Prolongaremos em todos os dedos os nossos gestos e,
profundamente, no peito dos amantes, a nossa alma líquida
                                                               [e atormentada

desvendará em cada minuto o seu segredo
para que este amor se prolongue e noutras bocas
ardam violentos de paixão os nossos beijos
e os corpos se abracem mais e se confundam
mutuamente violando-se, violentando a noite
para que outro dia, afinal, seja possível.

Joaquim Pessoa, in 'Os Olhos de Isa'

sábado, 20 de outubro de 2012

Completas



A meu favor tenho o teu olhar
testemunhando por mim
perante juízes terríveis:
a morte, os amigos, os inimigos.

E aqueles que me assaltam
à noite na solidão do quarto
refugiam-se em fundos sítios dentro de mim
quando de manhã o teu olhar ilumina o quarto.

Protege-me com ele, com o teu olhar,
dos demónios da noite e das aflições do dia,
fala em voz alta, não deixes que adormeça,
afasta de mim o pecado da infelicidade.

Manuel António Pina, in “Algo Parecido Com Isto, da Mesma Substância”

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

o tempo, subitamente solto


o tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias,
como a onda de uma tempestade a arrastar o mundo,
mostra-me o quanto te amei antes de te conhecer.
eram os teus olhos, labirintos de água, terra, fogo, ar,
que eu amava quando imaginava que amava. era a tua
a tua voz que dizia as palavras da vida. era o teu rosto.
era a tua pele. antes de te conhecer, existias nas árvores
e nos montes e nas nuvens que olhava ao fim da tarde.
muito longe de mim, dentro de mim, eras tu a claridade.

José Luís Peixoto

Coração sem imagens


Deito fora as imagens,
Sem ti para que me servem
as imagens?

Preciso habituar-me
a substituir-te
pelo vento,
que está em toda a parte
e cuja direcção
é igualmente passageira
e verídica.

Preciso habituar-me ao eco dos teus passos
numa casa deserta,
ao trémulo vigor de todos os teus gestos
invisíveis,
à canção que tu cantas e que mais ninguém ouve
a não ser eu.

Serei feliz sem as imagens.
As imagens não dão
felicidade a ninguém.

Era mais difícil perder-te,
e, no entanto, perdi-te.

Era mais difícil inventar-te,
e eu te inventei.

Posso passar sem as imagens
assim como posso
passar sem ti.

E hei-de ser feliz ainda que
isso não seja ser feliz.

Raul de Carvalho

Todas as rosas são a mesma rosa






Todas as rosas são a mesma rosa,
amor!, a única rosa;
e tudo está contido nela,
breve imagem do mundo,
amor!, a única rosa.

Juan Ramón Jiménez

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Dois amantes felizes não têm fim nem morte


Dois amantes felizes não têm fim nem morte,
nascem e morrem tanta vez enquanto vivem,
são eternos como é a natureza.

Pablo Neruda

Ver-te é como ter á minha frente todo o tempo



Ver-te é como ter á minha frente todo o tempo
é tudo serem para mim estradas largas
estradas onde passa o sol poente
é o tempo parar e eu próprio duvidar mas sem pensar
se o tempo existe se existiu alguma vez
e nem mesmo meço a devastação do meu passado

Ruy Belo

E por vezes as noites duram meses

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos. E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos.

David Mourão-Ferreira

Encontro de duas mãos

Encontro de duas mãos
que procuram estrelas,
nas entranhas da noite!

Juan Ramón Jiménez

domingo, 14 de outubro de 2012

INQUIETUDE

Ouço-te silêncio.
Diz-me o que sinto
O que anseio
O que me sufoca!

Esta inquietude permanente
Sem razão aparente de ser
O vazio profundo
Do querer e não querer.
Estou aqui
Vou, não sei onde
De onde venho, não recordo!

Nas horas aladas do desencontro
Fecho as pálpebras da vida
Perfumo de tomilho a alma
E parto, nas pétalas dos lírios brancos.

CECÍLIA VILAS BOAS, in O ECO DO SILÊNCIO (Esfera do Caos, 2012)

sábado, 13 de outubro de 2012

SOMBRAS


Tristezas os olhos
que não têm o brilho de contar,
estão riscados de sombras
como se o rasto dos caminhos
o longe da viagem
fosse, neles, deixando pistas.

Tristezas os olhos
de onde me olhas
detrás de um tempo passado,
o tempo das promessas antigas.

Teus olhos, amado,
são os olhos de alguém
que já morreu
e ainda não sabe.

ANA PAULA TAVARES, in "DIZES-ME COISAS AMARGAS COMO OS FRUTOS" (Caminho, 2011)

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

BEIJO

Nas folhas de papel, onde te escrevo alma minha
Sinto o peso de um amar , na escrita suave dita
Onde somente procuro a realidade paixão tua...
Simbiose plena deste rasgar sonhos ébrios meus.
Neste encontro para lá do sonho, para lá do céu
Muitas vezes metáfora de éden verdejante vivo
Fico na beira da falésia, quase no salto do vazio
Apesar de abraçado no teu olhar, só... no meu ser.
Nasce aqui o grito de exclamar ...rouco...amo-te!
Rasgo mais além o exagero do afecto verdade
E fico em apneia de esperança , do teu vincular...
Minutos passam, tempos perdidos...palavras ocas
Mal estar de sentires...segredos e silêncios dor
E apenas quero, que o teu coração beije o meu !

JOSÉ LUÍS OUTONO, in DA JANELA DO MEU (A)MAR (Ed. Vieira da Silva, 2011)

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Abraça-me


Abraça-me. Quero ouvir o vento que vem da tua pele, e ver o sol nascer do intenso calor dos nossos corpos. Quando me perfumo assim, em ti, nada existe a não ser este relâmpago feliz, esta maçã azul que foi colhida na palidez de todos os caminhos, e que ambos mordemos para provar o sabor que tem a carne incandescente das estrelas. Abraça-me. Veste o meu corpo de ti, para que em ti eu possa buscar o sentido dos sentidos, o sentido da vida. Procura-me com os teus antigos braços de criança, para desamarrar em mim a eternidade, essa soma formidável de todos os momentos livres que a um e a outro pertenceram. Abraça-me. Quero morrer de ti em mim, espantado de amor. Dá-me a beber, antes, a água dos teus beijos, para que possa levá-la comigo e oferecê-la aos astros pequeninos.
Só essa água fará reconhecer o mais profundo, o mais intenso amor do universo, e eu quero que dele fiquem a saber até as estrelas mais antigas e brilhantes.
Abraça-me. Uma vez só. Uma vez mais.
Uma vez que nem sei se tu existes.

Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'

terça-feira, 9 de outubro de 2012

AUSÊNCIA


Não vieste beber a minha sede
na anémona, salina, da minha boca.
Nem a noite
nem a lua te trouxeram.
Nas margens do tempo,
a alga ainda viva e estremecente, do meu corpo
vai murchando. Sequiosa.

LUÍSA DACOSTA, in "A MARESIA E O SARGAÇO DOS DIAS" (Asa, 2011)

domingo, 7 de outubro de 2012

NÃO DIGAS NADA!


Não digas nada!
Não, nem a verdade!
Há tanta suavidade
Em nada se dizer
E tudo se entender —
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada!
Deixa esquecer.
Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda esta viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz...
Não digas nada.

(23-8-1934)
FERNANDO PESSOA, in POESIAS INÉDITAS (1930-1935), [ (Nota prévia de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1955 (imp. 1990)]

sábado, 6 de outubro de 2012

AMOR


o teu rosto à minha espera, o teu rosto
a sorrir para os meus olhos, existe um
trovão de céu sobre a montanha.

as tuas mãos são finas e claras, vês-me
sorrir, brisas incendeiam o mundo,
respiro a luz sobre as folhas da olaia.

entro nos corredores de outubro para
encontrar um abraço nos teus olhos,
este dia será sempre hoje na memória.

hoje compreendo os rios. a idade das
rochas diz-me palavras profundas,
hoje tenho o teu rosto dentro de mim.

JOSÉ LUÍS PEIXOTO, in A CASA, A ESCURIDÃO, (Temas e Debates, 2002)

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Estou Mais Perto de Ti porque Te Amo


Estou mais perto de ti porque te amo.
Os meus beijos nascem já na tua boca.
Não poderei escrever teu nome com palavras.
Tu estás em toda a parte e enlouqueces-me.

Canto os teus olhos mas não sei do teu rosto.
Quero a tua boca aberta em minha boca.
E amo-te como se nunca te tivesse amado
porque tu estás em mim mas ausente de mim.

Nesta noite sei apenas dos teus gestos
e procuro o teu corpo para além dos meus dedos.
Trago as mãos distantes do teu peito.

Sim, tu estás em toda a parte. Em toda a parte.
Tão por dentro de mim. Tão ausente de mim.
E eu estou perto de ti porque te amo.

Joaquim Pessoa, in 'Os Olhos de Isa'

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

BEIJO


quando te beijo o beijo que tu me beijas
é que a flor envolve a terra que toca a flor

e é só a forma de os meus lábios dizerem que sim
e de os teus lábios dizerem que não
que não houve tempo antes de nós

VASCO GATO, in UM MOVER DE MÃO (Assírio & Alvim, 2000)

domingo, 30 de setembro de 2012

Não adormeças: o vento ainda assobia no meu quarto


Não adormeças: o vento ainda assobia no meu quarto
e a luz é fraca e treme e eu tenho medo
das sombras que desfilam pelas paredes como fantasmas
da casa e de tudo aquilo com que sonhes.

Não adormeças já. Diz-me outra vez do rio que palpitava
no coração da aldeia onde nasceste, da roupa que vinha
a cheirar a sonho e a musgo e ao trevo que nunca foi
de quatro folhas; e das ervas húmidas e chãs
com que em casa se cozinham perfumes que ainda hoje
te mordem os gestos e as palavras.

O meu corpo gela à míngua dos teus dedos, o sol vai
demorar-se a regressar. Há tempo para uma história
que eu não saiba e eu juro que, se não adormeceres,
serei tão leve que não hei-de pesar-te nunca na memória,
como na minha pesará para sempre a pedra do teu sono
se agora apenas me olhares de longe e adormeceres.


MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in A CASA E O CHEIRO DOS LIVROS (Quetzal, 1996), in POESIA REUNIDA (Quetzal, 2012)

OS ERROS

A confusão a fraude os erros cometidos
A transparência perdida — o grito
Que não conseguiu atravessar o opaco
O limiar e o linear perdidos

Deverá tudo passar a ser passado
Como projecto falhado e abandonado
Como papel que se atira ao cesto
Como abismo fracasso não esperança
Ou poderemos enfrentar e superar
Recomeçar a partir da página em branco
Como escrita de poema obstinado?

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in O NOME DAS COISAS (Moraes Ed., 1977), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

REFLEXOS

Olho-te pelo reflexo
Do vidro
E o coração da noite
E o meu desejo de ti
São lágrimas por dentro,
Tão doídas e fundas
Que se não fosse:

o tempo de viver;
e a gente em social desencontrado;
e se tivesse a força;
e a janela ao meu lado
fosse alta e oportuna,

invadia de amor o teu reflexo
e em estilhaços de vidro
mergulhava em ti.

ANA LUÍSA AMARAL, in COISAS DE PARTIR (Fora do Texto, 1993), in INVERSOS - POESIA 1990-2010 (Pub. D. Quixote, 2010)

sábado, 29 de setembro de 2012

Muitas vezes te esperei, perdi a conta


Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que importa

que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
- tanto pó sobre os móveis tua ausência.

Se não és tu, que me importa?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.

FERNANDO ASSIS PACHECO, in A MUSA IRREGULAR (Ed. Asa, Porto, 1997)

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

A dor que a minh' alma sente


MOTE ALHEIO

A dor que a minh' alma sente
não na sabe toda a gente.

VOLTAS

Que estranho caso de amor,
que desejado tormento,
que venho a ser avarento
das dores de minha dor!
Por me não tratar pior,
se se sabe ou se se sente,
não na digo a toda a gente.

Minha dor e causa dela
de ninguém ouso fiar,
que seria aventurar
a perder-me ou a perdê-la.
E pois só com padecê-la
a minha alma está contente,
não quero que a saiba a gente.

Ande no peito escondida,
dentro n'alma sepultada;
de mim só seja chorada,
de ninguém seja sentida.
Ou me mate ou me dê vida,
ou viva triste ou contente,
não ma saiba toda a gente.

Luís Vaz de Camões

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

EM NOME


Em nome da tua ausência
Construi com loucura uma grande casa branca
E ao longo das paredes te chorei.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in DUAL (Moraes Ed., 1972), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

MORRER DE AMOR


Morrer de amor
ao pé da tua boca

Desfalecer
à pele
do sorriso

Sufocar
de prazer
com o teu corpo

Trocar tudo por ti
se for preciso.

MARIA TERESA HORTA, in POESIA COMPLETA (Litexa, 1983)

sábado, 22 de setembro de 2012

SEM PECADO


Pequei...
Num momento
Em que perdi o teu olhar
E esqueci-me
Do mar suave
Beijo… sempre.
Pequei...
Sem pecado
Na dor de sentir
Como vela aroma
Que escureceu
No mirrar do caminho.
Pequei...
No cair de um abraço
No rasgar de um dizer
No escrever sem fim
No trovão da quebra
Pequei… apenas… sem pecado!

JOSÉ LUÍS OUTONO, MAR DE SENTIDOS (Ed. Vieira da Silva, 2012)

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

E lhe passou a mão pelo rosto


E lhe passou a mão pelo rosto, desceu-lhe carícias pelo peito.
Desabotoava-lhe o vestido? Seu gesto o convidou a mais se aproximar.
Parecia que ela lhe queria entregar um segredo. Colocou-lhe os lábios
sobre o ouvido mas, em lugar de palavra, ela imitou o mar numa concha.

MIA COUTO, in TERRA SONÂMBULA ( Caminho, 1992; Bis-LEYA, 2008)

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

ÉS UMA PRESENÇA

És uma presença. Constante.
Como o fantasma bom que me guarda a casa;
um sorriso solto, um beijo calado, ponto de luz
para os olhos cansados de quem viaja.
És uma presença. Constante.
Como o que diziam do anjo da guarda;
um olhar que não procuro, mas sei.
Jamais alguém tocará a minha Alma
com amor semelhante.


MARGARIDA FARO, in 44 POEMAS (Fonte da Palavra, 2011)

terça-feira, 18 de setembro de 2012

DA FALA


Quando ainda não sabia as palavras possíveis
para passar entre voz e silêncio dos outros,
tal como entre troncos das florestas mudas,
eu falava com as nuvens que vinham
sobre nós a cantar, de trémulas asas,
e aspergiam os aromas de êxtase.

FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO, in AS FÁBULAS (Quasi, 2002)

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

DIA 20

A cor do domingo é inspirada. Pequenos peixes impro-
vavelmente florescem dos teus gestos, o teu corpo ex-
tasiado está ainda na minha memória e já não é corpo,
é memória.
Oiço o destino como se ouvem os guisos, os sinos e o
vento. Sei que guardas palavras minhas nos cabelos, as
que não couberam na tua cabeça, mas que estavam já
grávidas de amor.
Essas palavras são o meu ofício e a minha fala.
Não poderei repeti-las. Pertencem a um momento úni-
co, filhas de um fogo puro, intenso e imenso. Com o
barro da sombra vou fazer o sol, construir a casa para
ti, para a tua ausência. Pintá-la com a cor deste domin-
go, madura e abundante.
Vou escrever o mundo e inscrever-te nele, como se, an-
tes de nós, o mundo não tivesse existido.

JOAQUIM PESSOA, in ANO COMUM (Litexa, 2011)

domingo, 16 de setembro de 2012

OLHOS POSTOS NA TERRA


Olhos postos na terra, tu virás
no ritmo da própria primavera,
e como as flores e os animais
abrirás nas mãos de quem te espera.

EUGÉNIO DE ANDRADE, in AS MÃOS E OS FRUTOS (Fund. Eugénio de Andrade, 2000)

Muitas vezes te esperei, perdi a conta


Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que importa
que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
- tanto pó sobre os móveis tua ausência.

Se não és tu, que me importa?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.

FERNANDO ASSIS PACHECO, in A MUSA IRREGULAR (Ed. Asa, Porto, 1997)

DEFRONTE DO MAR





Não quero mais. Não quero.
Não gosto de me sentir débil e fraca.
Antes sozinha, que me conheço, lúcida e caustica,
do que neste enjoo febril de desamparo,
arrepio de agonia lenta, nó de lágrimas.
Mais eloquente do que as palavras mudas,
chega-se, implacável,
- feroz inimiga da minha vontade -,
uma verdade que se instala e toma forma crua:
a tua necessidade de mim é nula.
Confusa, atraiçoada e triste,
estou como quem, por força das circunstâncias,
resiste, mas, preferia ceder, morta por dentro.

Sob o doce véu da fantasia, a visão parecia tão real!
Afinal, foi tudo ilusão, um sonho avulso, o perfeito engano,
outra mentira nascida nas profundezas negras
da minha Solidão de ser, mais uma vaidade minha,
uma coisa solta, por aí, sem raiz nem paradeiro.
E, neste pesar, vim vê-lo.
Vim ver o mar-testemunha.
Trago a desculpa que me sustenta,
vim saber o que é feito da promessa
e da ternura que ficou naquele instante,
estanque e desperto,
que tão depressa perdi.
Vim à tua procura,
confirmar a suspeita de ser vazio no teu peito.
Vim ouvi-lo respirar, de novo e no mesmo lugar,
imenso e indiferente à dor que sinto.
Vim à minha procura nele
para me perder de ti,
que já não sei quem sou, neste fogo sem eco.
Vim vê-lo de muito perto, firme, forte, verde.
Liguei-o a nós, se calhar, sem razão,
porque ele é para sempre, continua.
Nós é que não.

MARGARIDA FARO, in 44 POEMAS (Fonte da Palavra, 2011)

sábado, 15 de setembro de 2012

[QUE LÍNGUA FALAM OS PÁSSAROS]

que língua falam os pássaros

de madrugada
que não a do amor?

escuto a madrugada
– lento manancial de céus.

os pássaros
são mais sabedores.

ONDJAKI, in DENTRO DE MIL FAZ SUL SEGUIDO DE ACTO SANGUÍNEO (Caminho, 2010)

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

O QUE TEMOS

Deixei contigo o meu amor,
música de açúcar a meio da tarde,
um botão de vestido por apertar,
eo da vida por desapertar,
a flor que secou nas páginas de um livro,
tantas palavras por dizer
e a pressa de chegar,
com o azul do céu à saída.
por entre cafés fechados e um por abrir.

Mas trouxe comigo o teu amor,
os murmúrios que o dizem quando os lembro,
a surpresa de um brilho no olhar,
brinco perdido em secreto campo,
o remorso de partir ao chegar,
e tudo descobrir de cada vez,
mesmo que seja igual ao que vês
neste caminho por encontrar
em que só tu me consegues guiar.

Por isso tenho tudo o que preciso
mesmo que nada nos seja dado;
e basta-me lembrar o teu sorriso
para te sentir ao meu lado.

NUNO JÚDICE, in O ESTADO DOS CAMPOS (Pub. Dom Quixote, 2003)

domingo, 9 de setembro de 2012

COISAS TUAS


Levo coisas tuas
para poder estar contigo
na distância.
Para nunca te perder a companhia,
mesmo não estando.
Levo gravado o teu gesto,
o pranto, o riso, e,
(ora inocente, ora picante),
o teu sorriso,
que é a tua expressão,
o teu maior encanto.
E levo um objecto,
teu pertence,
como se o espaço tivesse autoridade
e o tempo nos afastasse.

Como se fosse preciso...


MARGARIDA FARO, in 44 POEMAS (Fonte da Palavra, 2011)

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

RIO TRISTE


Longuíssimos braços têm
os olhos que tudo abraçam.
Somente, só os olhos vêem
os olhos que por mim passam.

Clandestinamente os lanço,
braços de mar, olhos de água.
Longo ser líquido avanço,
abraço a vida, e alago-a.

Destino do amor triste
que não se ouve nem se vê.
ama apenas porque existe.
Não sabe a quem nem porquê.

Nesta obrigação de estar
que a cada um de nós cabe,
coube-me esta de amar.
E ninguém sabe.

ANTÓNIO GEDEÃO, in "POESIA COMPLETA" (Ed. João Sá da Costa, 1996)

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

ABSOLVIÇÃO


Incendeiam-me ainda os beijos que me não deste
E cegam-se os acenos que me não fizeste
Da janela irreal onde o teu vulto
Era uma alucinação dos meus sentidos.
Mas, decorrida a vida, e oculto
Nestes versos doridos,
A saber que não sabes que te amei
E cantei,
E nem mesmo imaginas quem eu sou
E como é solitária e dói a minha humanidade,
Em vez de te acusar
E me culpar
Maldigo o arbítrio da fatalidade
Que cruelmente nos desencontrou.

(1992)

MIGUEL TORGA, in ANTOLOGIA POÉTICA (Coimbra, 4ª ed., 1994)

SETE LUAS

Há noites que são feitas dos meus braços
e um silêncio comum às violetas
e há sete luas que são sete traços
de sete noites que nunca foram feitas

Há noites que levamos à cintura
como um cinto de grandes borboletas.
E um risco a sangue na nossa carne escura
duma espada à bainha de um cometa.

Há noites que nos deixam para trás
enrolados no nosso desencanto
e cisnes brancos que só são iguais
à mais longínqua onda de seu canto.

Há noites que nos levam para onde
o fantasma de nós fica mais perto:
e é sempre a nossa voz que nos responde
e só o nosso nome estava certo.

NATÁLIA CORREIA, in POESIA COMPLETA ( Publ. Dom Quixote, Lisboa 1999)

sábado, 1 de setembro de 2012

PIENSA EN MÍ




Si tienes un hondo penar, piensa en mí..
si tienes ganas de llorar, piensa en mí.
Ya ves que venero tu imagen divina,
tu párvula boca que siendo tan niña
me enseño a pecar

Piensa en mí cuando sufras, cuando llores
también piensa en mí,
cuando quieras
quitarme la vida, no la quiero para nada,
para nada me sirve sín tí.

Piensa en mí cuando sufras, cuando llores,
también piensa en mí, cuando quieras
quitarme la vida, no la quiero para nada,
para nada me sirve sin tí.

Piensa en mí cuando sufras, cuando llores
también piensa en mí, cuando quieras
quitarme la vida,
No la quiero para nada,
para nada me sirve sin tí.
Piensa en mi..........




Luz Casal

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Hoje deitei-me ao lado da minha solidão


Hoje deitei-me ao lado da minha solidão.
O seu corpo perfeito, linha a linha
derramava-se no meu, e eu sentia
nele o pulsar do meu próprio coração.

Moreno, era a forma das pedras e das luas.
Dentro de mim alguma coisa ardia:
o mistério das palavras maduras
ou a brancura de um amor que nos prendia.

Hoje deitei-me ao lado da minha solidão
e longamente bebi os horizontes.
E longamente fiquei até ouvir
o meu sangue jorrar na voz das fontes.

EUGÉNIO DE ANDRADE, in AS MÃOS E OS FRUTOS (1948), in POESIA (Modo de Ler, 2011)

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Te Amo



              



Te amo de uma manera inexplicable
De una forma inconfesable
De un modo contradictorio


Te amo
Con mis estados de ánimo que son muchos
Y cambian de humor continuamente
Por lo que ya sabes,
El tiempo
La vida
La muerta.


Te amo
Con el mundo que no entiendo
Con la gente que no compreende
Com la ambivalencia de mi alma
Con la incoherencia de mis actos
Con la fatalidad del destino
Con la conspiración del desejo
Con la ambigüedad de los hechos
Aún cuando te digo que no te amo, te amo
Hasta cuando te angaño, no te engaño
En el fondo, ilevo a cabo un plan
Para amarte mejor.


Te amo.
Sin reflexionar, inconscientemente,
irresponsablemente, espontáneamente
involutariamente, por instinto
por impulso, irracionalmente
En afecto no tengo argumentos lógicos
ni siquiera improvisados
Para fundamentar este amor que siento por ti,
que surgió misteriosamente de la nada,
Que no ha resuelto mágicamente nada
Y que milagrosamente, de a poco, con poco ya nada
Ha mejorado lo peor de mi.


Te amo.
Te amo con un cuerpo que no piensa
Con un corazón que no razona,
Con una cabeza que no coordina.


Te amo
incomprensiblemente
Sin preguntarme por qué te amo
Sin importarme por qué te amo
Sin cuestionarme por qué te amo


Te amo
sencillamente porque te amo
Yo mismo no se por qué te amo


Pablo Neruda

domingo, 26 de agosto de 2012

APELO


Atravessa os campos da noite
e vem.

A minha pele
ainda cálida de sol
te será margem.

Nas fontes, vivas,
do meu corpo
saciarás a tua sede.

Os ramos dos meus braços
serão sombra romorejante
ao teu sono, exausto.

Atravessa os campos do sono
e vem.

LUÍSA DACOSTA, in "A MARESIA E O SARGAÇO DOS DIAS" (Asa, 2011)

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

ACORDO COM O TEU NOME


Acordo com o teu nome nos
meus lábios — amargo beijo

esse que o tempo dá sem
aviso a quem não esquece.

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in NENHUM NOME DEPOIS (Gótica, 2ª. Ed., 2005)

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Pudesse eu morrer hoje como tu me morreste...



Pudesse eu morrer hoje como tu me morreste nessa noite —
e deitar-me na terra; e ter uma cama de pedra branca e
um cobertor de estrelas; e não ouvir senão o rumor das ervas
que despontam de noite, e os passos diminutos dos insectos,
e o canto do vento nos ciprestes; e não ter medo das sombras,
nem das aves negras nos meus braços de mármore,
nem de te ter perdido — não ter medo de nada. Pudesse

eu fechar os olhos neste instante e esquecer-me de tudo —
das tuas mãos tão frias quando estendi as minhas nessa noite;
de não teres dito a única palavra que me faria salvar-te, mesmo
deixando que eu perguntasse tudo; de teres insultado a vida
e chamado pela morte para me mostrares que o teu corpo
já tinha desistido, que ias matar-te em mim e que era
tarde para eu pensar em devolver-te os dias que roubara. Pudesse

eu cair num sono gelado como o teu e deixar de sentir a dor,
a dor incomparável de te ver acordado em tudo o que escrevi —
porque foi pelo poema que me amaste, o poema foi sempre
o que valeu a pena (o mais eram os gestos que não cabiam
nas mãos, os morangos a que o verão obrigou); e pudesse

eu deixar de escrever nesta manhã, o dia treme na linha
dos telhados, a vida hesita tanto, e pudesse eu morrer,
mas ouço-te a respirar no meu poema.

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in O CANTO DO VENTO NOS CIPRESTES (Gótica Ed., 2001)





NOITE


Noite. Noite em nossa roda. Noite aberta.
E encontramos um silêncio imenso,
Um silêncio perfeito que nos esperava desde sempre,
E uma solidão que era a nossa imagem,
E uma profunda esperança,
Como se a noite tremesse
De tocar a aurora.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

A COR DOS OMBROS DA LUA


aberta na tua mão.
Podia ter sido amor,
e foi apenas traição.

É tão negro o labirinto
que vai dar à tua rua. . .
Ai de mim, que nem pressinto
a cor dos ombros da Lua!

Talvez houvesse a passagem
de uma estrela no teu rosto.
Era quase uma viagem:
foi apenas um desgosto.

É tão negro o labirinto
que vai dar à tua rua...
Só o fantasma do instinto
na cinza do céu flutua.

Tens agora a mão fechada;
no rosto, nenhum fulgor.
Não foi nada, não foi nada:
podia ter sido amor.




DAVID MOURÃO FERREIRA, in À GUITARRA E À VIOLA [OBRA POÉTCA (1980)]

...

Quantas horas te procurei
Neste escuro, nestas noites lunares.
Quantas vezes fechei os olhos
Para te poder ver
Na serenidade dos rios que enlouquecem.
Esquece-te de tudo,
Guarda apenas a certeza
Que o sol brilha
E que os pequenos pássaros de fogo estremecem
Quando os meus olhos se fecham
Para te lembrar.


PAULO EDUARDO CAMPOS, in NA SERENIDADE DOS RIOS QUE ENLOUQUECEM (Amores Perfeitos, 2005)


domingo, 19 de agosto de 2012

PEQUENA ELEGIA CHAMADA DOMINGO

O domingo era uma coisa pequena.
Uma coisa tão pequena
que cabia inteirinha nos teus olhos.
Nas tuas mãos
estavam os montes e os rios
e as nuvens.
Mas as rosas,
as rosas estavam na tua boca.

Hoje os montes e os rios
e as nuvens
não vêm nas tuas mãos.
(Se ao menos elas viessem
sem montes e sem nuvens
e sem rios...)
O domingo está apenas nos meus olhos
e é grande.
Os montes estão distantes e ocultam
os rios e as nuvens
e as rosas.

EUGÉNIO DE ANDRADE, in AS MÃOS E OS FRUTOS (1948), in POESIA (Modo de Ler, 2011)

sábado, 18 de agosto de 2012

TU


Com a noite dos teus olhos
escusava lua e estrelas.

Com a fonte da tua boca
não mais teria sede.

Com a raiz do teu ombro
para quê tecto ou abrigo?

Só a luz me faria falta
para poder olhar-te.

LUÍSA DACOSTA, in A MARESIA E O SARGAÇO DOS DIAS (Asa II, 2011)

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Desperta-me de noite

Desperta-me de noite
O teu desejo
Na vaga dos teus dedos
Com que vergas
O sono em que me deito

É rede a tua língua
Em sua teia
É vício as palavras
Com que falas

A trégua
A entrega
O disfarce

E lembras os meus ombros
Docemente
Na dobra do lençol que desfazes

Desperta-me de noite
Com o teu corpo
Tiras-me do sono
Onde resvalo

E eu pouco a pouco
Vou repelindo a noite
E tu dentro de mim
Vai descobrindo vales.

MARIA TERESA HORTA, in POESIA REUNIDA (D. Quixote, 2000)

INVENTO-TE


Mergulho no teu retrato
e aqui de longe,
saudosa,
beijo-te os lábios

e invento o toque da tua mão
que me mima os seios famintos
e me traz a paz
ao meu aconchego.

Tu não sabes
mas segredo-te gemidos
e deixo que me penetres
em pensamento
e em espasmos
sou néctar da tua boca,
sou alma, sou tua.

Invento-te aqui
e sou verso e teu poema.

VERA SOUSA SILVA, in BIPOLARIDADES (Ed. Lua de Marfim, 2012)




[A BRASA DO TEU CORPO]


A brasa do teu corpo


a queimar a palma
acesa
da mão do meu desejo

MARIA TERESA HORTA, in AS PALAVRAS DO CORPO (Publ. D. Quixote, 2012)

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

O tempo passou por nós, não vês?


Crescemos, tornámo-nos tristes.
No fundo, crescemos.
Perdemos as brincadeiras,
Os sentimentos sem sentido.
Perdemos a inocência,
A leveza das palavras
Que teimámos tantas vezes
Em esconder.
Não existem culpados,
Mas sentimos no nosso corpo
O ardor dos cactos,
Quando as lágrimas,
Queimando o rosto,
Caem desamparadas no chão.
Não há súplica que ecoe
Nos tempos de vidro,
Nas noites de metal,
Que nos ferem o peito.
Venho para dizer-te,
Que já não tenho endereço,
Que já não tenho idade,
Que este já não é o corpo
Onde tantas vezes te escondias.

PAULO EDUARDO CAMPOS, in NA SERENIDADE DOS RIOS QUE ENLOUQUECEM (Amores Perfeitos, 2005)

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

NOCTURNAMENTE


Nocturnamente te construo
para que sejas palavra do meu corpo

Peito que em mim respira
olhar em que me despojo
na rouquidão da tua carne
me inicio
me anuncio
e me denuncio

Sabes agora para o que venho
e por isso me desconheces

(1981)

MIA COUTO, in RAIZ DE ORVALHO E OUTROS POEMAS (Caminho, 2009)

terça-feira, 14 de agosto de 2012

a sala de estar, poema XVI



a minha casa é o tempo
aqui perco a minha vida.

PAULO EDUARDO CAMPOS, in A CASA DOS ARCHOTES (Lua de Marfim, 2011)

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

NO TEU ROSTO


No teu rosto
competem mil madrugadas

Nos teus lábios
a raiz do sangue
procura suas pétalas

A tua beleza
é essa luta de sombras
é o sobressalto da luz
num tremor de água
é a boca da paixão
mordendo o meu sossego

MIA COUTO, in "RAIZ DE ORVALHO E OUTROS POEMAS" (Caminho, 2009)

sábado, 11 de agosto de 2012

O VAZIO DESENHAVA DESDE SEMPRE

O vazio desenhava desde sempre a forma do teu rosto
Todas as coisas serviram para nos ensinar
A ardente perfeição da tua ausência.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in GEOGRAFIA (Ática, 1967) in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Arte de Amar

Metidos nesta pele que nos refuta,
Dois somos, o mesmo que inimigos.
Grande coisa, afinal, é o suor
(Assim já o diziam os antigos):
Sem ele, a vida não seria luta,
Nem o amor amor.

José Saramago

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

DIA 164


Uma fogueira é sempre uma celebração entre o ar e outra matéria.
Vem. Vamos arder nos braços um do outro. Depois, as cinzas
hão-de espalhar-se pela memória desta noite.

JOAQUIM PESSOA, in ANO COMUM (Litexa, 2011)

domingo, 5 de agosto de 2012

SEM TI


E de súbito desaba o silêncio.

É um silêncio sem ti,
sem álamos,
sem luas.

Só nas minhas mãos
ouço a música das tuas.

EUGÉNIO DE ANDRADE, in CHUVA SOBRE O ROSTO, (Modo de Ler/Ed. Afrontamento, 2009)

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Porque é Tão Ansiosamente que Espero por Ti?

Porque é tão ansiosamente que espero por ti?
Sabias ocultar entre os teus menores movimentos
a lembrança de um corpo e de um ardor sem música
nem esquecimento possível. Quantas cidades
atravessámos, quantos «grandes são os desertos e tudo é deserto»,
quanto alimento para os cães da memória! Deixa-os,
consente o esquecimento, solta com raiva das tuas veias
a música, regressa ao lugar donde partiste. Peço-te,
regressa. Nós nunca acordamos conformes,
nenhuma cifra nos devolverá o número mágico,
vestimo-nos sem convicção e pedimos emprestadas
fórmulas antigas. Da nossa idade
guardámos alguns emblemas, alguns maneirismos.
Acredita-me: é o momento de nos abandonarmos
à necessidade, de açularmos os cães, de sermos nós mesmos
um inquietante rosnido entre as frestas do muro.
Regressemos, não há Ítaca possível, os corpos desfizemo-los
na mesma erosão do seu mágico movimento.
Porque é tão ansiosamente que espero por ti
se nenhuma luz mais cabe no terror de mim?

Luis Filipe Castro Mendes, in "Seis Elegias"

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Tinta Verde







Tinta verde dos teus olhos
Escreve torto no meu peito
Amores tenho eu aos molhos
Se pró teu me faltar jeito

No meu peito escreve torto
Na minha alma a dar a dar
Nunca mais eu chego ao Porto
Se lá fôr por este andar

Nunca mais eu chego ao Porto
Ao porto de Matosinhos
Adeus verde dos teus olhos
Estão cá outros mais escurinhos


Vitorino

terça-feira, 31 de julho de 2012

SE TERMINAR ESTE POEMA, PARTIRÁS


Se terminar este poema, partirás. Depois da
mordedura vã do meu silêncio e das pedras
que te atirei ao coração, a poesia é a última
coincidência que nos une. Enquanto escrevo

este poema, a mesma neblina que impede a
memória límpida dos sonhos e confunde os
navios ao retalharem um mar desconhecido

está dentro dos meus olhos – porque é difícil
olhar para ti neste preciso instante sabendo que
não estarias aqui se eu não escrevesse. E eu, que

continuo a amar-te em surdina com essa inércia
sóbria das montanhas, ofereço-te palavras, e não
beijos, porque o poema é o único refúgio onde
podemos repetir o lume dos antigos encontros.

Mas agora pedes-me que pare, que fique por aqui,
que apenas escreva até ao fim mais esta página
(que, como as outras, será somente tua – esse

beijo que já não desejas dos meus lábios). E eu, que
aprendi tudo sobre as despedidas porque a saudade
nos faz adultos para sempre, sei que te perderei

em qualquer caso: se terminar o poema, partirás;
e, no entanto, se o interromper, desvanecer-se-á
a última coincidência que nos une.

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in O CANTO DOS VENTOS NOS CIPRESTES (Gótica, 2002)

segunda-feira, 30 de julho de 2012

EIS-ME



Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses
Para ficar sozinha ante o silêncio
Ante o silêncio e o esplendor da tua face

Mas tu és de todos os ausentes o ausente
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo em que não moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silêncio

Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes o ausente


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in LIVRO SEXTO (Moraes Ed., 1962) in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

domingo, 29 de julho de 2012

da varanda, poema XII


ficou tanto por dizer
e já estão mortas as palavras.
secaram os poemas
mas não as lágrimas.
quero palavras novas
que não fiquem presas na garganta.
irei, um dia, ter contigo,
mesmo que deixe cá a vida.

PAULO EDUARDO CAMPOS, in A CASA DOS ARCHOTES (Lua de Marfim, 2011)

sábado, 28 de julho de 2012

CILÍCIO



Nos agudos cristais do cilício da ausência,
em silêncio rebenta, em silêncio, o teu rosto...

DAVID MOURÃO-FERREIRA, in OBRA POÉTICA (Ed. Presença, 1988)

Tu eras também uma pequena folha

Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.”

Pablo Neruda

quinta-feira, 26 de julho de 2012

A DOR DE LEMBRAR



Não sei muito bem o que me liga a ti:
O passado, de que ainda me lembro,
E que não se pode mudar,
O futuro que ainda não foi escrito,
Ou essas memórias
Que não são minhas nem nossas
Porque nunca existiram.
Sei apenas que te lembro,
Que foste importante,
Que deixaste em mim
Essa marca demasiado profunda
Para que o tempo te mude ou te apague.

Depois a vida aconteceu,
As memórias misturam-se,
Confundem-se entre o que foi
E o que podia ter sido,
Esta a dor de lembrar
E o estar no presente.
Confrontar-me comigo mesma
Nesse espelho de censura
Que é a verdade,
Que é envelhecer e esquecer os sonhos
E a força com que se acredita
Por debaixo do tapete do quarto
Junto com aquilo que não se quer ver.

Lembro-me de ter sido jovem,
De ter sonhado,
De ter enterrado tudo quanto fui
E me fez sorrir.
Lembro-me e não queria lembrar,
é mais difícil suportar o presente,
Os dias que se esgotam, sem amanhã.


ANA BRILHA, in A APOLOGIA DO SILÊNCIO (ed. da Autora, 2012)

ESPERA

Deito-me tarde
Espero por uma espécie de silêncio
Que nunca chega cedo
Espero a atenção a concentração da hora tardia
Ardente e nua
É então que os espelhos acendem o seu segundo brilho
É então que se vê o desenho do vazio
É então que se vê subitamente
A nossa própria mão poisada sobre a mesa

É então que se vê o passar do silêncio

Navegação antiquíssima e solene

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in GEOGRAFIA (Ática, 1967) in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

quarta-feira, 25 de julho de 2012

O MOMENTO DE

Talvez seja o momento de.
Mesmo sem esperança. E ele escreve:
nenhum impulso para ti
neste espaço deserto.

Ele perscruta entre as pedras e as sombras.
Nada vê ignora. Olha.
Que traços são estes,
qual a origem destas palavras nulas?

Ele escreve. O seu desejo é o desejo
de tornar habitável o deserto.

ANTÓNIO RAMOS ROSA, in A PEDRA NUA (1972), in ANTOLOGIA POÉTICA , Selecção, Prefácio e Bibliografia de ANA PAULA COUTINHO MENDES (Pub. Dom Quixote, 2001)

sexta-feira, 20 de julho de 2012

É o teu rosto ainda que eu procuro



É o teu rosto ainda que eu procuro
Através do terror e da distância
Para a reconstrução de um mundo puro.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in MAR NOVO (Guimarães Editores, 1958) in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

Porque não soube merecer

Porque não soube merecer a glória, a mais suave
de me deitar a teu lado
e que o sangue a palavra
abolisse a diferença entre o meu corpo e a minha voz
porque te perdi
não sei quem sou

António Ramos Rosa

quinta-feira, 19 de julho de 2012

CONCLUSÃO


Pois.
Então havia momentos exactos.
Toalhas brancas.
Sal.
Lutas decisivas.
Havia um olhar azul.
Um mundo.
E um futuro.
Pois.

MÁRIO DOMINGOS, in O DESPERTAR DOS VERBOS (Edium Editores, 2011)



quarta-feira, 18 de julho de 2012

Sables mouvants


Démons et merveilles 
Vents et marées 
Au loin déjà la mer s'est retirée 
Démons et merveilles 
Vents et marées 
Et toi 
Comme une algue doucement carressée par le vent 
Dans les sables du lit tu remues en rêvant 
Démons et merveilles 
Vents et marées 
Au loin déjà la mer s'est retirée 
Mais dans tes yeux entrouverts 
Deux petites vagues sont restées 
Démons et merveilles 
Vents et marées 
Deux petites vagues pour me noyer.  

Jacques Prévert
 

JOGO

Eu, sabendo que te amo, 
e como as coisas do amor são difíceis,
preparo em silêncio a mesa
do jogo, estendo as peças
sobre o tabuleiro, disponho os lugares
necessários para que tudo
comece: as cadeiras
uma em frente da outra, embora saiba
que as mãos não se podem tocar,
e que para além das dificuldades,
hesitações, recuos
ou avanços possíveis, só os olhos
transportam, talvez, uma hipótese
de entendimento. É então que chegas,
e como se um vento do norte
entrasse por uma janela aberta,
o jogo inteiro voa pelos ares,
o frio enche-te os olhos de lágrimas,
e empurras-me para dentro, onde
o fogo consome o que resta
do nosso quebra-cabeças. 



NUNO JÚDICE, in O MOVIMENTO DO MUNDO ( Quetzal, 1997)

O Amor Tudo Mata quando Morre


Eu morro dia a dia, sabendo-o, sentindo-o,
com a morte do amor em mim.
Esvaiu-se, ensandeceu, partiu,
espécie de sol sepultado por mãos ímpias,
numa cratera de lua, algures,
ou na tristeza de um retrato emudecido
pela ausência de vozes em redor.
Sem ele, a casa ficou deserta
de risos, acenos e afectos, de tudo,
as mãos ficaram ásperas, secas,
a pele do rosto gretada, fria,
e o sangue tornou-se lento e espesso,
incapaz de dar vida às pequenas folhas
orvalhadas da imaginação das noites.
A erva cresce em redor de mim,
os limões ficaram ressequidos sobre
a toalha bordada, num canto da mesa.
O amor tudo mata quando morre,
detendo no seu movimento elementar,
a máquina que ilumina o coração do dia.

José Jorge Letria, in "Quem com Ferro Ama"

segunda-feira, 16 de julho de 2012

SEI QUE O SILÊNCIO MORDE A MINHA BOCA



Sei que o silêncio morde a minha boca.
Hoje, na melancolia de um fim de tarde,
Chamei por uma estrela solitária.
Essa que morreu antes de chamar pelo teu nome.
Sei hoje que a tua ausência
É a voz do silêncio do meu corpo,
O tempo que faltou ao nosso encontro,
Se pudesse ser outro que não eu
Talvez me pudesse despir de antigas mortes
E olhar-te na madrugada súbita dos teus olhos
E dizer-te que amanhã
É sempre o dia em que te procuro.
Amanhã, será sempre o dia em que te digo
“Amo-te”.


PAULO EDUARDO CAMPOS, in NA SERENIDADE DOS RIOS QUE ENLOUQUECEM (Amores Perfeitos, 2005)

Tu Ensinaste-me a Fazer uma Casa


Tu ensinaste-me a fazer uma casa:
com as mãos e os beijos.
Eu morei em ti e em ti meus versos procuraram
voz e abrigo.
E em ti guardei meu fogo e meu desejo. Construí
a minha casa.
Porém não sei já das tuas mãos. Os teus lábios perderam-se
entre palavras duras e precisas
que tornaram a tua boca fria
e a minha boca triste como um cemitério de beijos.

Mas recordo a sede unindo as nossas bocas
mordendo o fruto das manhãs proibidas
quando as nossas mãos surgiam por detrás de tudo
para saudar o vento.

E vejo teu corpo perfumando a erva
e os teus cabelos soltando revoadas de pássaros
que agora se recolhem, quando a noite se move,
nesta casa de versos onde guardo o teu nome.

Joaquim Pessoa, in 'Os Olhos de Isa'

sábado, 14 de julho de 2012

SEM TI



E de súbito desaba o silêncio.
É um silêncio sem ti,
sem álamos,
sem luas.

Só nas minhas mãos
ouço a música das tuas.

EUGÉNIO DE ANDRADE, in CHUVA SOBRE O ROSTO, (Modo de Ler/Ed. Afrontamento, 2009)

terça-feira, 10 de julho de 2012

IV



Dá-me a tua mão por cima das horas.
Quero-te conciso.
Adão depois do paraíso
errando mais nítido à distância
onde te exalto porque te demoras

NATÁLIA CORREIA, in POEMAS (1955), in POESIA COMPLETA - O SOL NAS NOITES E O LUAR NOS DIAS (Dom Quixote, 2007)

domingo, 8 de julho de 2012

Príncipe

Príncipe:
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu batia à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito tudo era apenas
lábios pálpebras intumescências
cobrindo o corpo de flutuantes volteios
de palpitações trémulas adejando pelo rosto.
Beijava os teus olhos por dentro
beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão sobre o meu pensamento
corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te.

São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me

Ana Hatherly, in "Um Calculador de Improbabilidades"

sexta-feira, 6 de julho de 2012

UM BEIJO



Foste o beijo melhor da minha vida,
Ou talvez o pior... Glória e tormento,
Contigo à luz subi do firmamento,
Contigo fui pela infernal descida!

Morreste, e o meu desejo não te olvida:
Queimas-me o sangue, enches-me o pensamento,
E do teu gosto amargo me alimento,
E rolo-te na boca malferida.

Beijo extremo, meu prémio e meu castigo,
Batismo e extrema-unção, naquele instante
Por que, feliz, eu não morri contigo?

Sinto-te o ardor, e o crepitar te escuto,
Beijo divino! e anseio, delirante,
Na perpétua saudade de um minuto...


OLAVO BILAC, in TARDE (1919), in POESIAS (Ed. Tecnoprint, Brasil, 1978)


O SILÊNCIO



Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,

e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,

quando azuis irrompem
os teus olhos

e procuram
nos meus navegação segura,

é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,

pelo silêncio fascinadas.


EUGÉNIO DE ANDRADE, in OBSCURO DOMÍNIO (1971) & POESIA (Modo de Ler, 2011)

EM FRENTE DO MAR



Pergunto a mim próprio em que noite nos perdemos?,
que desencontro nos levou de um a outro lado das
nossas vidas? e que caminhos evitámos para que os nossos
passos se não voltassem a cruzar? Mas as perguntas que
te faço, hoje, já não têm resposta. Sento-me contigo,
nesta mesa da memória, e partilho o prato da solidão. Tu,
na cadeira vazia onde te imagino, sacodes o cabelo com
um aceno de ironia. E dou-te razão: as coisas podiam
ter sido de outro modo. Não te disse as palavras que
esperaste; e havia o mar, com as suas ondas, nessa tarde
em que me puxaste para longe da cidade, como se
a noite não nos obrigasse a voltar, quando o horizonte
se apagou a nossa frente. Depois disso, nenhuma
pergunta tem resposta. O que é absurdo há-de continuar
absurdo, como o horizonte não se voltou a abrir,
trazendo de volta os teus olhos que me pediam que
os olhasse, até que a noite me impedisse de o fazer.


NUNO JÚDICE, in O ESTADO DOS CAMPOS (Pub. Dom Quixote, 2003)

domingo, 1 de julho de 2012

SEM DEPOIS



Todas as vidas gastei
para morrer contigo.

E agora
esfumou-se o tempo
e perdi o teu passo
para além da curva do rio.

Rasguei as cartas.
Em vão: o papel restou intacto.
Só os meus dedos murcharam, decepados.

Queimei as fotos.
Em vão: as imagens restaram incólumes
e só os meus olhos se desfizeram, redondas cinzas.

Com que roupa
vestirei minha alma
agora que já não há domingos?

Quero morrer, não consigo.
Depois de te viver
não há poente
nem o enfim de um fim.

Todas as mortes gastei
para viver contigo





MIA COUTO, in IDADES CIDADES DIVINDADES (Caminho, 2007)

sábado, 30 de junho de 2012

Mitiga-se a dor...



Mitiga-se a dor quando te suspendo em memórias e fantasias de nós, mas se corro para me aninhar em ti, fica-me apenas o vazio do teu abraço.
As minhas mãos, côncavas, acolhem-te no que me deste e é como segurar um rio na palma da mão. Vais-te. Estou só. Cobre-me então o véu da melancolia.


MARIA JOÃO SARAIVA, in A DOR QUE ME DEIXASTE, (Trilhos Ed., 2ª ed, 2011)

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Quero dizer-te uma coisa simples



Quero dizer-te uma coisa simples: a tua
ausência dói-me. Refiro-me a essa dor que não
magoa, que se limita à alma; mas que não deixa,
por isso, de deixar alguns sinais – um peso
nos olhos, no lugar da tua imagem, e
um vazio nas mãos, como se as tuas mãos lhes
tivessem roubado o tacto. São estas as formas
do amor, podia dizer-te; e acrescentar que
as coisas simples também podem ser
complicadas, quando nos damos conta da
diferença entre o sonho e a realidade. Porém,
é o sonho que me traz a tua memória; e a
realidade aproxima-me de ti, agora que
os dias correm mais depressa, e as palavras
 ficam presas numa refracção de instantes,
quando a tua voz me chama de dentro de
mim – e me faz responder-te uma coisa simples,
como dizer que a tua ausência me dói.

NUNO JÚDICE

A memória de ti calma e antiga



A memória de ti calma e antiga
Habita os meus caminhos solitários
Enquanto o acaso vão me oferece os vários
Rostos da hora inimiga

Nem terror nem lágrimas nem tempo
Me separarão de ti
Que moras para além do vento.


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in MAR NOVO (1958) in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Gazel do Amor Desesperado


A noite não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.

Mas eu irei,
inda que um sol de lacraus me coma a fronte.

Mas tu virás
com a língua queimada pela chuva de sal.

O dia não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.

Mas eu irei
entregando aos sapos meu mordido cravo.

Mas tu virás
pelas turvas cloacas da escuridade.

Nem a noite nem o dia querem vir
para que por ti morra
e tu morras por mim.

Federico García Lorca, in 'Divã do Tamarit'
Tradução de Oscar Mendes