terça-feira, 31 de julho de 2012

SE TERMINAR ESTE POEMA, PARTIRÁS


Se terminar este poema, partirás. Depois da
mordedura vã do meu silêncio e das pedras
que te atirei ao coração, a poesia é a última
coincidência que nos une. Enquanto escrevo

este poema, a mesma neblina que impede a
memória límpida dos sonhos e confunde os
navios ao retalharem um mar desconhecido

está dentro dos meus olhos – porque é difícil
olhar para ti neste preciso instante sabendo que
não estarias aqui se eu não escrevesse. E eu, que

continuo a amar-te em surdina com essa inércia
sóbria das montanhas, ofereço-te palavras, e não
beijos, porque o poema é o único refúgio onde
podemos repetir o lume dos antigos encontros.

Mas agora pedes-me que pare, que fique por aqui,
que apenas escreva até ao fim mais esta página
(que, como as outras, será somente tua – esse

beijo que já não desejas dos meus lábios). E eu, que
aprendi tudo sobre as despedidas porque a saudade
nos faz adultos para sempre, sei que te perderei

em qualquer caso: se terminar o poema, partirás;
e, no entanto, se o interromper, desvanecer-se-á
a última coincidência que nos une.

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in O CANTO DOS VENTOS NOS CIPRESTES (Gótica, 2002)

segunda-feira, 30 de julho de 2012

EIS-ME



Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses
Para ficar sozinha ante o silêncio
Ante o silêncio e o esplendor da tua face

Mas tu és de todos os ausentes o ausente
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo em que não moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silêncio

Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes o ausente


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in LIVRO SEXTO (Moraes Ed., 1962) in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

domingo, 29 de julho de 2012

da varanda, poema XII


ficou tanto por dizer
e já estão mortas as palavras.
secaram os poemas
mas não as lágrimas.
quero palavras novas
que não fiquem presas na garganta.
irei, um dia, ter contigo,
mesmo que deixe cá a vida.

PAULO EDUARDO CAMPOS, in A CASA DOS ARCHOTES (Lua de Marfim, 2011)

sábado, 28 de julho de 2012

CILÍCIO



Nos agudos cristais do cilício da ausência,
em silêncio rebenta, em silêncio, o teu rosto...

DAVID MOURÃO-FERREIRA, in OBRA POÉTICA (Ed. Presença, 1988)

Tu eras também uma pequena folha

Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.”

Pablo Neruda

quinta-feira, 26 de julho de 2012

A DOR DE LEMBRAR



Não sei muito bem o que me liga a ti:
O passado, de que ainda me lembro,
E que não se pode mudar,
O futuro que ainda não foi escrito,
Ou essas memórias
Que não são minhas nem nossas
Porque nunca existiram.
Sei apenas que te lembro,
Que foste importante,
Que deixaste em mim
Essa marca demasiado profunda
Para que o tempo te mude ou te apague.

Depois a vida aconteceu,
As memórias misturam-se,
Confundem-se entre o que foi
E o que podia ter sido,
Esta a dor de lembrar
E o estar no presente.
Confrontar-me comigo mesma
Nesse espelho de censura
Que é a verdade,
Que é envelhecer e esquecer os sonhos
E a força com que se acredita
Por debaixo do tapete do quarto
Junto com aquilo que não se quer ver.

Lembro-me de ter sido jovem,
De ter sonhado,
De ter enterrado tudo quanto fui
E me fez sorrir.
Lembro-me e não queria lembrar,
é mais difícil suportar o presente,
Os dias que se esgotam, sem amanhã.


ANA BRILHA, in A APOLOGIA DO SILÊNCIO (ed. da Autora, 2012)

ESPERA

Deito-me tarde
Espero por uma espécie de silêncio
Que nunca chega cedo
Espero a atenção a concentração da hora tardia
Ardente e nua
É então que os espelhos acendem o seu segundo brilho
É então que se vê o desenho do vazio
É então que se vê subitamente
A nossa própria mão poisada sobre a mesa

É então que se vê o passar do silêncio

Navegação antiquíssima e solene

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in GEOGRAFIA (Ática, 1967) in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

quarta-feira, 25 de julho de 2012

O MOMENTO DE

Talvez seja o momento de.
Mesmo sem esperança. E ele escreve:
nenhum impulso para ti
neste espaço deserto.

Ele perscruta entre as pedras e as sombras.
Nada vê ignora. Olha.
Que traços são estes,
qual a origem destas palavras nulas?

Ele escreve. O seu desejo é o desejo
de tornar habitável o deserto.

ANTÓNIO RAMOS ROSA, in A PEDRA NUA (1972), in ANTOLOGIA POÉTICA , Selecção, Prefácio e Bibliografia de ANA PAULA COUTINHO MENDES (Pub. Dom Quixote, 2001)

sexta-feira, 20 de julho de 2012

É o teu rosto ainda que eu procuro



É o teu rosto ainda que eu procuro
Através do terror e da distância
Para a reconstrução de um mundo puro.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in MAR NOVO (Guimarães Editores, 1958) in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

Porque não soube merecer

Porque não soube merecer a glória, a mais suave
de me deitar a teu lado
e que o sangue a palavra
abolisse a diferença entre o meu corpo e a minha voz
porque te perdi
não sei quem sou

António Ramos Rosa

quinta-feira, 19 de julho de 2012

CONCLUSÃO


Pois.
Então havia momentos exactos.
Toalhas brancas.
Sal.
Lutas decisivas.
Havia um olhar azul.
Um mundo.
E um futuro.
Pois.

MÁRIO DOMINGOS, in O DESPERTAR DOS VERBOS (Edium Editores, 2011)



quarta-feira, 18 de julho de 2012

Sables mouvants


Démons et merveilles 
Vents et marées 
Au loin déjà la mer s'est retirée 
Démons et merveilles 
Vents et marées 
Et toi 
Comme une algue doucement carressée par le vent 
Dans les sables du lit tu remues en rêvant 
Démons et merveilles 
Vents et marées 
Au loin déjà la mer s'est retirée 
Mais dans tes yeux entrouverts 
Deux petites vagues sont restées 
Démons et merveilles 
Vents et marées 
Deux petites vagues pour me noyer.  

Jacques Prévert
 

JOGO

Eu, sabendo que te amo, 
e como as coisas do amor são difíceis,
preparo em silêncio a mesa
do jogo, estendo as peças
sobre o tabuleiro, disponho os lugares
necessários para que tudo
comece: as cadeiras
uma em frente da outra, embora saiba
que as mãos não se podem tocar,
e que para além das dificuldades,
hesitações, recuos
ou avanços possíveis, só os olhos
transportam, talvez, uma hipótese
de entendimento. É então que chegas,
e como se um vento do norte
entrasse por uma janela aberta,
o jogo inteiro voa pelos ares,
o frio enche-te os olhos de lágrimas,
e empurras-me para dentro, onde
o fogo consome o que resta
do nosso quebra-cabeças. 



NUNO JÚDICE, in O MOVIMENTO DO MUNDO ( Quetzal, 1997)

O Amor Tudo Mata quando Morre


Eu morro dia a dia, sabendo-o, sentindo-o,
com a morte do amor em mim.
Esvaiu-se, ensandeceu, partiu,
espécie de sol sepultado por mãos ímpias,
numa cratera de lua, algures,
ou na tristeza de um retrato emudecido
pela ausência de vozes em redor.
Sem ele, a casa ficou deserta
de risos, acenos e afectos, de tudo,
as mãos ficaram ásperas, secas,
a pele do rosto gretada, fria,
e o sangue tornou-se lento e espesso,
incapaz de dar vida às pequenas folhas
orvalhadas da imaginação das noites.
A erva cresce em redor de mim,
os limões ficaram ressequidos sobre
a toalha bordada, num canto da mesa.
O amor tudo mata quando morre,
detendo no seu movimento elementar,
a máquina que ilumina o coração do dia.

José Jorge Letria, in "Quem com Ferro Ama"

segunda-feira, 16 de julho de 2012

SEI QUE O SILÊNCIO MORDE A MINHA BOCA



Sei que o silêncio morde a minha boca.
Hoje, na melancolia de um fim de tarde,
Chamei por uma estrela solitária.
Essa que morreu antes de chamar pelo teu nome.
Sei hoje que a tua ausência
É a voz do silêncio do meu corpo,
O tempo que faltou ao nosso encontro,
Se pudesse ser outro que não eu
Talvez me pudesse despir de antigas mortes
E olhar-te na madrugada súbita dos teus olhos
E dizer-te que amanhã
É sempre o dia em que te procuro.
Amanhã, será sempre o dia em que te digo
“Amo-te”.


PAULO EDUARDO CAMPOS, in NA SERENIDADE DOS RIOS QUE ENLOUQUECEM (Amores Perfeitos, 2005)

Tu Ensinaste-me a Fazer uma Casa


Tu ensinaste-me a fazer uma casa:
com as mãos e os beijos.
Eu morei em ti e em ti meus versos procuraram
voz e abrigo.
E em ti guardei meu fogo e meu desejo. Construí
a minha casa.
Porém não sei já das tuas mãos. Os teus lábios perderam-se
entre palavras duras e precisas
que tornaram a tua boca fria
e a minha boca triste como um cemitério de beijos.

Mas recordo a sede unindo as nossas bocas
mordendo o fruto das manhãs proibidas
quando as nossas mãos surgiam por detrás de tudo
para saudar o vento.

E vejo teu corpo perfumando a erva
e os teus cabelos soltando revoadas de pássaros
que agora se recolhem, quando a noite se move,
nesta casa de versos onde guardo o teu nome.

Joaquim Pessoa, in 'Os Olhos de Isa'

sábado, 14 de julho de 2012

SEM TI



E de súbito desaba o silêncio.
É um silêncio sem ti,
sem álamos,
sem luas.

Só nas minhas mãos
ouço a música das tuas.

EUGÉNIO DE ANDRADE, in CHUVA SOBRE O ROSTO, (Modo de Ler/Ed. Afrontamento, 2009)

terça-feira, 10 de julho de 2012

IV



Dá-me a tua mão por cima das horas.
Quero-te conciso.
Adão depois do paraíso
errando mais nítido à distância
onde te exalto porque te demoras

NATÁLIA CORREIA, in POEMAS (1955), in POESIA COMPLETA - O SOL NAS NOITES E O LUAR NOS DIAS (Dom Quixote, 2007)

domingo, 8 de julho de 2012

Príncipe

Príncipe:
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu batia à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito tudo era apenas
lábios pálpebras intumescências
cobrindo o corpo de flutuantes volteios
de palpitações trémulas adejando pelo rosto.
Beijava os teus olhos por dentro
beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão sobre o meu pensamento
corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te.

São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me

Ana Hatherly, in "Um Calculador de Improbabilidades"

sexta-feira, 6 de julho de 2012

UM BEIJO



Foste o beijo melhor da minha vida,
Ou talvez o pior... Glória e tormento,
Contigo à luz subi do firmamento,
Contigo fui pela infernal descida!

Morreste, e o meu desejo não te olvida:
Queimas-me o sangue, enches-me o pensamento,
E do teu gosto amargo me alimento,
E rolo-te na boca malferida.

Beijo extremo, meu prémio e meu castigo,
Batismo e extrema-unção, naquele instante
Por que, feliz, eu não morri contigo?

Sinto-te o ardor, e o crepitar te escuto,
Beijo divino! e anseio, delirante,
Na perpétua saudade de um minuto...


OLAVO BILAC, in TARDE (1919), in POESIAS (Ed. Tecnoprint, Brasil, 1978)


O SILÊNCIO



Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,

e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,

quando azuis irrompem
os teus olhos

e procuram
nos meus navegação segura,

é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,

pelo silêncio fascinadas.


EUGÉNIO DE ANDRADE, in OBSCURO DOMÍNIO (1971) & POESIA (Modo de Ler, 2011)

EM FRENTE DO MAR



Pergunto a mim próprio em que noite nos perdemos?,
que desencontro nos levou de um a outro lado das
nossas vidas? e que caminhos evitámos para que os nossos
passos se não voltassem a cruzar? Mas as perguntas que
te faço, hoje, já não têm resposta. Sento-me contigo,
nesta mesa da memória, e partilho o prato da solidão. Tu,
na cadeira vazia onde te imagino, sacodes o cabelo com
um aceno de ironia. E dou-te razão: as coisas podiam
ter sido de outro modo. Não te disse as palavras que
esperaste; e havia o mar, com as suas ondas, nessa tarde
em que me puxaste para longe da cidade, como se
a noite não nos obrigasse a voltar, quando o horizonte
se apagou a nossa frente. Depois disso, nenhuma
pergunta tem resposta. O que é absurdo há-de continuar
absurdo, como o horizonte não se voltou a abrir,
trazendo de volta os teus olhos que me pediam que
os olhasse, até que a noite me impedisse de o fazer.


NUNO JÚDICE, in O ESTADO DOS CAMPOS (Pub. Dom Quixote, 2003)

domingo, 1 de julho de 2012

SEM DEPOIS



Todas as vidas gastei
para morrer contigo.

E agora
esfumou-se o tempo
e perdi o teu passo
para além da curva do rio.

Rasguei as cartas.
Em vão: o papel restou intacto.
Só os meus dedos murcharam, decepados.

Queimei as fotos.
Em vão: as imagens restaram incólumes
e só os meus olhos se desfizeram, redondas cinzas.

Com que roupa
vestirei minha alma
agora que já não há domingos?

Quero morrer, não consigo.
Depois de te viver
não há poente
nem o enfim de um fim.

Todas as mortes gastei
para viver contigo





MIA COUTO, in IDADES CIDADES DIVINDADES (Caminho, 2007)