sexta-feira, 29 de agosto de 2014

EM FRENTE DO MAR


Pergunto a mim próprio em que noite nos perdemos?,
que desencontro nos levou de um a outro lado das
nossas vidas? e que caminhos evitámos para que os nossos
passos se não voltassem a cruzar? Mas as perguntas que
te faço, hoje, já não têm resposta. Sento-me contigo,
nesta mesa da memória, e partilho o prato da solidão. Tu,
na cadeira vazia onde te imagino, sacodes o cabelo com
um aceno de ironia. E dou-te razão: as coisas podiam
ter sido de outro modo. Não te disse as palavras que
esperaste; e havia o mar, com as suas ondas, nessa tarde
em que me puxaste para longe da cidade, como se
a noite não nos obrigasse a voltar, quando o horizonte
se apagou a nossa frente. Depois disso, nenhuma
pergunta tem resposta. O que é absurdo há-de continuar
absurdo, como o horizonte não se voltou a abrir,
trazendo de volta os teus olhos que me pediam que
os olhasse, até que a noite me impedisse de o fazer,

NUNO JÚDICE, in O ESTADO DOS CAMPOS (Pub. Dom Quixote, 2003)

sábado, 23 de agosto de 2014

Noites sem nome, do tempo desligadas


Noites sem nome, do tempo desligadas,
Solidão mais pura do que o fogo e a água,
Silêncio altíssimo e brilhante.

As imagens vivem e vão cantando libertadas
E no secreto murmurar de cada instante
Colhi a absolvição de toda a mágoa.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in POESIA (1944), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

terça-feira, 19 de agosto de 2014

OLHOS POSTOS NA TERRA


Olhos postos na terra, tu virás
no ritmo da própria primavera,
e como as flores e os animais
abrirás nas mãos de quem te espera.

EUGÉNIO DE ANDRADE, in AS MÃOS E OS FRUTOS (Fund. Eugénio de Andrade, 2000)

domingo, 17 de agosto de 2014

[NOITES LOUCAS]


Noites loucas! Noites loucas!
Comigo, contigo
Tão loucas seriam
O nosso desejo!

Fúteis os Ventos
Para um coração atracado,
Deixemos a bússola,
E o mapa abandonado.

Remar no Éden!
Ah! O mar!
Tomara eu esta noite
Em ti me amarrar!

EMILY DICKINSON, in COMPLETE POEMS OF EMILY DICKINSON (Little, Brown & Co., 1961), tradução de Carlos Campos (dedicada a MARIA TERESA HORTA)

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Sabes por vezes queria beijar-te


Sabes por vezes queria beijar-te. Sei que consentirias.
Mas se nos tivéssemos dado um ao outro ter-nos-íamos separado porque os beijos apagam o desejo quando consentidos.
Foi melhor sabermos quanto nos queríamos, sem ousarmos sequer tocar nossos corpos.
Hoje tenho pena. Parto com essa ferida.
Tenho pena de não ter percorrido teu corpo como percorro os mapas, com os dedos teria viajado em ti do pescoço às mão da boca ao sexo.
Tenho pena de nunca ter murmurado teu nome no escuro.
Acordado perto de ti.
As noites teriam sido de ouro e as mãos teriam guardado o sabor do teu corpo.

Al Berto