terça-feira, 30 de julho de 2013

Se eu pudesse dar-te aquilo que não tenho


Se eu pudesse dar-te aquilo que não tenho
e que fora de mim jamais se encontra
Se eu pudesse dar-te aquilo com que sonhas
e o que só por mim poderá ter sonhado

Se eu pudesse dar-te o sopro que me foge
e que fora de mim jamais se encontra
Se eu pudesse dar-te aquilo que descubro
e descobrir-te o que de mim se esconde

Então serias aquele que existe
e o que só por mim poderá ter sonhado.

ANA HATHERLY, in A IDADE DA ESCRITA (Ed. Tema, 1998)

domingo, 28 de julho de 2013

I


Preciso escrever-te, ou escrever-me, falar-te ou dizer-te através de mim e tudo isso num tempo intemporal, em que escrevo para a frente apenas porque algo nos faz crer que a vida, ou melhor, que um dia atrás do outro é ir para a frente, sabe-se lá... mas o meu mergulho é para trás, no meu tempo que foi de descoberta, um tempo que se desdobra a partir de outro e de outro... porque é lá atrás que te vou encontrar, é apenas tão-somente lá atrás que te posso resgatar, porque a ideia do amanhã contigo foi-se-me (ou quase); foi-se-me no dia em que abriste os braços para já não me abraçar. E agora, vou mergulhar, mergulhar num mar de maré cheia, onde toco o que lá vive, um mar que está cá dentro, dentro de mim, onde te vejo e onde navegam todos os afectos que me unem a ti – é neles que vou buscar a forma que dou a estas palavras, com que quero falar-te, dizer-te, baixinho.

MARIA JOÃO SARAIVA, in A DOR QUE ME DEIXASTE (Coisas de Ler, Ed., 2ª ed, 2011)

sábado, 27 de julho de 2013

POST SCRIPTUM


Afasto de ti com
raiva surda

o corpo
as mãos
o pensamento

e apago secreta
uma a uma
as velas acesas do teu vento

liberta ponho o corpo
em seu lugar
visto a cidade
penteio um rio sedento

penso ganhar
e fujo
e não entendo

penso dormir
mas não consigo
o tempo

E cede-se o vazio
sobre o meu ventre

e segue-se a saudade
em seu sustento

E digo este meu vício
dos teus olhos
de um verde tão lento
muito lento

Se penso que te deixo
já te quero

Se penso que recuso
já te anseio

Se penso que te odeio
já te espero

e torno a oferecer-te
o que receio

Se penso que me calo
já te grito

Se penso que me escondo
já me ofereço

Se penso que não sinto
é porque minto

Se pensas que me olhas
já estremeço.

MARIA TERESA HORTA, in MINHA SENHORA DE MIM ( D. Quixote, 1971), in POESIA REUNIDA (D. Quixote, 2009)

GOSTO


Gosto de passear na tua sombra,
poder te ver, sem tu me veres,
de estar contigo, sem tu saberes,

Gosto de me esconder na tua ausência,
de ser teu sonho, sem me sonhares,
viveres comigo, sem o julgares,

Gosto de me enlear na tua teia,
de ser teu cúmplice, sem que me prendas,
ser teu escravo, sem que me vendas,

Gosto que gostes de ser viagem,
e ao me encontrares,
eu ser paragem…

JOSÉ GABRIEL DUARTE, in RIO DE DOZE ÁGUAS, 12 POETAS, prefaciado por Joaquim Pessoa, (Coisas de Ler Ed., 2012)

quinta-feira, 25 de julho de 2013

SEM TI


E de súbito desaba o silêncio.
É um silêncio sem ti,
sem álamos, sem luas.
Só nas minhas mãos
ouço a música das tuas.

EUGÉNIO DE ANDRADE, in CORAÇÃO DO DIA (1958), in POESIA DE EUGÉNIO DE ANDRADE (Modo de Ler, 2011)

quarta-feira, 24 de julho de 2013

O SONO RETIROU-SE DO MEU CORPO E AS CIGARRAS


O sono retirou-se do meu corpo e as cigarras
atormentam as minhas noites. Depois de teres
partido, os lençóis da cama são como limos frios
que se agarram à pele. Porém, se me levanto,
não faço mais do que arrastar a solidão pela casa;

talvez procure ainda um gesto teu nos braços
do silêncio, como um pombo cego a debicar
as sombras na única praça deserta da cidade —

o amor nunca aprendeu a ler nas linhas da mão.

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in O CANTO DO VENTO DOS CIPRESTES (Gótica, 2001)

segunda-feira, 22 de julho de 2013

DA ALMA SÓ SEI O QUE SABE O CORPO


Da alma só sei o que sabe o corpo:
onde a esperança e a graça
aspiram ao ardor
da chama é a morada do homem.

Vê como ardem as maçãs
na frágil luz de inverno
uma casa devia ser
assim: brilhar ao crepúsculo
sem usura nem vileza
com as maçãs por companhia.
Assim: limpa, madura.

EUGÉNIO DE ANDRADE, in OFÍCIO DE PACIÊNCIA (1994), in POESIA DE EUGÉNIO DE ANDRADE (Modo de Ler, 2011)

domingo, 21 de julho de 2013

6


Este amor está preso aos pés da terra,
o seu caule é de ferro,
cresce na minha boca, estremece e resiste
nas frágeis construções
da nossa antiga, privada, fiel
arquitectura.

ARMANDO SILVA CARVALHO, in DE AMORE (Assírio & Alvim, 2012)

sexta-feira, 19 de julho de 2013

DE MÃOS ABERTAS


Se eu pudesse,
Tocava o teu rosto em silêncio
E falava-te do mar,
Deixava tombar os meus cabelos
Sobre o teu ombro
Como uma bênção
E fechava os olhos
Consciente de ser em ti
Como um salgueiro.

ANA BRILHA, in A APOLOGIA DO SILÊNCIO (ed. da Autora, 2012)

domingo, 14 de julho de 2013

De um e outro lado do que sou


De um e outro lado do que sou,
da luz e da obscuridade,
do ouro e do pó,
ouço pedirem-me que escolha;
e deixe para trás a inquietação,
a dor,
um peso de não sei que ansiedade.

Mas levo comigo tudo
o que recuso. Sinto

colar-se-me às costas
um resto de noite;
e não sei voltar-me
para a frente, onde
amanhece.

NUNO JÚDICE, in MEDITAÇÃO SOBRE RUÍNAS (Quetzal, 1999)

E por vezes


E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos.

David Mourão-Ferreira

sexta-feira, 12 de julho de 2013

POEMA 7


Canto com toda a minha pele.
A pele dos meus joelhos, dos meus ombros,
a pele das espáduas, das pernas, das perguntas,
a pele do coração. Canto com
a pele insubmissa que ostenta a cicatriz da água,
que se fere na luz quando repele
os limites do corpo. Canto com a pele
que envolve a minha pele, território e mapa
de profundos oiros enterrados.

Eu amo e canto aquele país do sol
onde a tua pele e a minha se confundem

JOAQUIM PESSOA in À MESA DO AMOR (Litexa, 1994), in GUARDAR O FOGO (Edições Esgotadas, 2013)

V


Eu venho do sonho e fujo da vida.
Errei no caminho para a paz prometida.

Só sei que me chama um canto de mar.
E a nau dos sonhos no céu a varar.

Ó meu capitão da barca perdida
A errar entre o sonho e o engano da vida!

NATÁLIA CORREIA, in RIO DE NÚVENS (1947), in POESIA COMPLETA - O SOL NAS NOITES E O LUAR NOS DIAS (Dom Quixote, 2007)

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Há dias em que em ti talvez não pense


Há dias em que em ti talvez não pense
a morte mata um pouco a memória dos vivos
é todavia claro e fotográfico o teu rosto
caído não na terra mas no fogo
e se houver dia em que não pense em ti
estarei contigo dentro do vazio

GASTÃO CRUZ, in FOGO (Assírio & alvim, 2013)

Nunca Aprendi a Existir


Tenho as opiniões desmentidas, as crenças mais diversas - É que nunca penso nem falo nem ajo... Pensa, fala, age por mim sempre um sonho qualquer meu em que me encarno no momento.
Vem a fala e falo-eu-outro. De meu, só sinto uma incapacidade enorme, um vácuo imenso, uma incompetência ante tudo o que é a vida. Não sei os gestos a acto nenhum real.
Nunca aprendi a existir.

Fernando Pessoa, 'Inéditos'

terça-feira, 9 de julho de 2013

SUPERAÇÃO


Fechei-me dentro dos muros
onde o meu corpo não cabia
contente de ser prisioneira
do cárcere que eu transcendia.

E fui no vento que tudo
tudo o que havia varria,
contente de ser mais veloz
que o vento que me impelia.

Fiquei suspensa dos ramos
que os meus cabelos prendiam
contente de ser o destino
da árvore em que me fundia.

E dei-me como leito às águas
dos sonhos que me transcorriam
contente de ser o curso
da água em que me esvaía.

NATÁLIA CORREIA, in INÉDITOS (1959/1961), in POESIA COMPLETA - O SOL NAS NOITES E O LUAR NOS DIAS (Dom Quixote, 2007)

quinta-feira, 4 de julho de 2013

AMOR


o teu rosto à minha espera, o teu rosto
a sorrir para os meus olhos, existe um
trovão de céu sobre a montanha.

as tuas mãos são finas e claras, vês-me
sorrir, brisas incendeiam o mundo,
respiro a luz sobre as folhas da olaia.

entro nos corredores de outubro para
encontrar um abraço nos teus olhos,
este dia será sempre hoje na memória.

hoje compreendo os rios. a idade das
rochas diz-me palavras profundas,
hoje tenho o teu rosto dentro de mim.

JOSÉ LUÍS PEIXOTO, in A CASA, A ESCURIDÃO ( Temas e Debates, 2002)

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Ternura


Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente

E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não trai o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o
[olhar extático da aurora.

Vinicius de Moraes, in 'Antologia Poética'