terça-feira, 20 de dezembro de 2011

NOCTURNO

Amor, não sei de coisa mais violenta
que ficar de noite à tua espera.
É triste como uma manhã cinzenta
destruindo o coração da primavera.

E aqui, como um pássaro deitado,
julgando ouvir na chuva a tua voz,
a madrugada deita-se a meu lado
fingindo que na cama estamos nós.

Mas eu sinto chegar esta amargura
que vem fechar-me os olhos. E depois,
já nem sei se é um sonho ou se é loucura:
no quarto onde estou só, ficamos dois.

E nada mais me importa, já não espero
aquela que enche a noite de alegria.
Então, para dizer quanto te quero,
eu faço amor contigo até ser dia.

JOAQUIM PESSOA, in disco LP CANÇÕES DE EX-CRAVO E MALVIVER (Toma Lá Disco, 1977)

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Amor à Vista

Entras como um punhal
até à minha vida.
Rasgas de estrelas e de sal
a carne da ferida.

Instala-te nas minas.
Dinamita e devora.
Porque quem assassinas
é um monstro de lágrimas que adora.

Dá-me um beijo ou a morte.
Anda. Avança.
Deixa lá a esperança
para quem a suporte.

Mas o mar e os montes...
isso, sim.
Não te amedrontes.
Atira-os sobre mim.

Atira-os de espada.
Porque ficas vencida
ou desta minha vida
não fica nada.

Mar e montes teus beijos, meu amor,
sobre os meus férreos dentes.
Mar e montes esperados com terror
de que te ausentes.

Mar e montes teus beijos, meu amor!...

Fernando Echevarría, in “Poesia 1956-1979”

NOITE POR TI DESPIDA

Adulta é a noite onde cresce
o teu corpo azul. A claridade
que se dá em troca dos meus ombros
cansados Reflexos
coloridos. Amei
o amor. Amei-te meu amor sobre ervas
orvalhadas. Não eras tu porém
o fim dessa estrada
sem fim. Canto apenas (enquanto os álamos
amadurecem) a transparência, o caminho. A noite
por ti despida. Lume e perfume
do sol. Íntimo rumor do mundo.


CASIMIRO DE BRITO, in ODE & CEIA, Solidao Imperfeita (1955-58), [D. Quixote, 1985]

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

A Demora

O amor nos condena:
demoras
mesmo quando chegas antes.
Porque não é no tempo que eu te espero.

Espero-te antes de haver vida
e és tu quem faz nascer os dias.

Quando chegas
já não sou senão saudade
e as flores
tombam-me dos braços
para dar cor ao chão em que te ergues.

Perdido o lugar
em que te aguardo,
só me resta água no lábio
para aplacar a tua sede.

Envelhecida a palavra,
tomo a lua por minha boca
e a noite, já sem voz
se vai despindo em ti.

O teu vestido tomba
e é uma nuvem.
O teu corpo se deita no meu,
um rio se vai aguando até ser mar.

Mia Couto, in " idades cidades divindades"

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

ESPERA-ME

Nas praias que são o rosto branco das amadas mortas
Deixarei que o teu nome se perca repetido

Mas espera-me:
Pois por mais longos que sejam os caminhos
Eu regresso.


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in CORAL (1950), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

domingo, 4 de dezembro de 2011

Se eu podesse desamar


Se eu podesse desamar
a quen me sempre desamou,
e podess’ algún mal buscar
a quen mi sempre mal buscou!
Assy me vingaria eu,
se eu podesse coyta dar,
a quen mi sempre coyta deu.

Mays sol non posso eu enganar
meu coraçon que m’ enganou,
per quanto mi faz desejar
a quen me nunca desejou.
E per esto non dormio eu,
porque non poss’ eu coita dar
a quen mi sempre coyta deu.

Mays rog’ a Deus que desampar
a quen mh´assy desamparou,
ou que podess´eu destorvar
a quen me sempre destorvou.
E logo dormiria eu,
se eu podesse coyta dar,
a quen mi sempre coyta deu.

Vel que ousass’ en preguntar
a quen me nunca preguntou,
per que me fez en ssy cuydar,
poys ela nunca en min cuydou.
E por esto lazero eu,
porque non poss’ eu coyta dar,
a quen mi sempre coyta deu.

Pero da Ponte

Brea, Mercedes (dir.) (1996): Lírica Profana Galego-Portuguesa. Santiago: Centro de Investigacións Lingüísticas e Literarias Ramón Piñeiro - Xunta de Galicia

ABSOLVIÇÃO


Incendeiam-me ainda os beijos que me não deste
E cegam-se os acenos que me não fizeste
Da janela irreal onde o teu vulto
Era uma alucinação dos meus sentidos.
Mas, decorrida a vida, e oculto
Nestes versos doridos,
A saber que não sabes que te amei
E cantei,
E nem mesmo imaginas quem eu sou
E como é solitária e dói a minha humanidade,
Em vez de te acusar
E me culpar
Maldigo o árbítro da fatalidade
Que cruelmente nos desencontrou.

MIGUEL TORGA, in ANTOLOGIA POÉTICA (Coimbra, 4ª ed., 1994)

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

[POR QUE ME MATASTE]

Por que me mataste
Nesta noite sem dias,
Quando abriste as portas
Que te levaram a mim,
Percorrendo os longos corredores
Da minha vida?
Por que chegaste
Sem avisares,
Trazendo nos olhos
O pôr-do-sol e o canto das aves?
Por que partiste,
Quando estremeceu esta noite fria
Envolta em nevoeiro?

PAULO EDUARDO CAMPOS, in NA SERENIDADE DOS RIOS QUE ENLOUQUECEM (Amores Perfeitos, 2005)

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

ENCANTAMENTO

há uma palavra mágica que se diz. essa palavra
é sempre diferente. montanha, precipício, brilho.
essa palavra pode ser um olhar. a voz. um olhar.

essa palavra pode ser o espaço de silêncio onde
não se disse uma palavra. brilho, montanha.
essa palavra pode ser uma palavra, qualquer palavra.

há uma palavra mágica que se diz. há um momento.
depois dessa palavra, só depois dessa palavra,
pode começar o amor.


JOSÉ LUÍS PEIXOTO, in A CASA, A ESCURIDÃO ( Temas e Debates, 2002)