sexta-feira, 16 de setembro de 2011

I - Canto-te


 
Canto-te      para que tu definitivamente
existas
Canto o teu nome porque só as coisas cantadas
realmente são e só o nome pronunciado inicia
a mágica corrente
Canto o teu nome como o homem fazia eclodir
o fogo do atrito das pedras
Canto o teu nome como o feiticeiro invoca
a magia do remédio
Canto o teu nome como um animal uiva
de
Como os animais pequenos bebem nos regatos depois
das grandes feras
Canto-te
e tu definitivamente existes nos meus olhos
Sempre abertos porque é sempree os meus olhos
são os olhos da criança que nós somos sempre
diante da imensidão do teu espaço

Canto-te
e os meus olhos sempre abertos são a pergunta
instante pendente de eu te interrogar

e interrogo as coisas em seu ser noctumo
em seu estar sombriamente presentes na tua claridade
obscura
E como é sempre
meus olhos abertos prescrutam-te

símbolo de tudo o que me foge
como apertar o ar dentro das mãos
e querer agarrar-te

oh substância 
Canto-te

com a fragilidade de tudo que existe perante
uma eternidade demasiado nocturna para os nossos
olhos infantis perante a tua antiguidade
futura
E a nossa voz é uma pequena onda no dorso 
do teu oceano de matéria
Um leve arrepio apenas na espantosa espessura
de teu éter
Ah no ar é que tudo acontece
no ar nocturno das idades esquecidas
que previamente desconheceremos
No espaço é que tudo acontece
e o espaço é uma grande        muito quieta 
onde os nossos olhos penetram
no não sabermos até onde
ali 
além 
no além onde tudo acontece
Oh
oh espaço de tudo ser tão ligeiro e impalpável
e sermos nós a respiração da
teu bafo ritmado
imperceptível distância
Oh       augusta majestática dignidade do silêncio
Oh impassibilidade da tua mecânica celeste
Oh organismo primeiro de todos os fins secretos 
da compreensão das coisas
Oh inorgânico organismo dos seres
que se devoram 
Oh       diz
a quem servimos nós de pasto
Canto-te
como quem pronuncia o Mantra esotérico do teu nome
Canto-te e grito
para que a poeira que se infiltra em todas as
coisas se erga de ti como um plâncton 
Oh Madre 
matriz das criaturas inferiores que rastejam
a teus pés cobertas de pó 
esse pó que a cada momento ameaça submergir-nos
Oh aranha enorme tecendo tua teia de pó
Oh       que desintegras tudo e tudo tu constróis
Ah       como nós lambemos tuas duras mãos
Oh       que fustigas nossos olhos com tua sombra
Enorme
Oh
que deixas tanto espaço para o silêncio
         das mil pétalas
         dos mil braços esplendorosos em seu abandono
         dos murmúrios
          dos afagos
          sangue derramado sobre o mundo
Oh
Porque és sempre tão premente?
e sempre estás ausentemente
na tua constância em todas as coisas?

Oh sono
Oh         morte tão desejada e longa
         mágica povoada de átomos
milhões de espíritos enchem o teu sopro
E penetras em nós como uma bala
E tudo morre quando tu chegas
E tudo se dilui e se transforma em ti
            alada presciência de tudo acontecer
tão longe de nós e tão antigamente
e tudo nos ultrapassar com soberana indiferença
ante os nossos olhos cegos pelo teu negrume
Oh 
brilha para dentro de mim
Acende teus luzeiros em meus olhos
Ergue teus braços oh            prenhe de tudo
Oh vaso
Oh via láctea de nos amamentares com teu leite
de sombra
Oh       úbere e pródiga
Aleita tua ninhada faminta
Grande fera luzidia
Grande mito
Grande deus antigo
Oh         urna onde todos dormimos
Oh
Meus olhos choram já de tanto prescrutar-te
E canto-te
Canto-te
Para que tu existas
E eu não veja mais nada além de ti
E nada mais deseje senão que venhas outra vez
levar-me para dentro do teu ventre
de nunca mais haver
E nada mais haver que


Oh tu         definitivamente além



Ana Hatherly
Poemas de Eros Frenético e Contemporâneos
um calculador de improbabilidades
Quimera, 1ª edição 2001

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