segunda-feira, 25 de julho de 2011


«Estás a começar a ler o novo romance Se numa noite de Inverno um viajante de Italo Calvino. Descontrai-te. Recolhe-te. Afasta de ti todos os outros pensamentos. deixa esfumar-se no indistinto o mundo que te rodeia. A porta é melhor fechá-la; lá dentro a televisão está sempre acesa. Diz aos outros: “Estou a ler! Não quero que me incomodem!”. Não devem ter-te ouvido, com aquele barulho todo; fala mais alto, grita: “Estou a começar a ler o novo romance de Italo Calvino!” Ou se não quiseres não digas nada; esperemos que te deixem em paz.
Arranja a posição mais cómoda: sentado, estendido, enroscado, deitado. Deitado de costas, de lado, de barriga. Na poltrona, no sofá, na cadeira de baloiço, na cadeira de praia, no pufe. Numa cama de rede, se tiveres alguma cama de rede. Em cima da cama, naturalmente, ou dentro da cama. Até podes pôr-te de cabeça para baixo, em posição de yoga. Com o livro virado ao contrário, bem entendido.
É claro que a posição ideal para ler nunca se consegue arranjar. Dantes lia-se de pé, diante de uma estante. As pessoas estavam habituadas a ficar de pé. Era assim que se repousava quando se estava cansado de andar a cavalo. A cavalo ninguém se lembrou alguma vez de ler; e no entanto agora essa de ler sobre o arção, com o livro pousado nas crinas do cavalo, se calhar até preso às orelhas com um adereço especial, é ideia que achas atraente. De pés nos estribos devia-se ficar com muita comodidade para ler; ter os pés soerguidos é primeira condição para desfrutar da leitura.
Bem, afinal de que estás à espera? Estende as pernas, estica também os pés numa almofada, em duas almofadas, nos braços do sofá, nas orelhas da poltrona, na mesinha de chá, na secretária, no piano, no mapa-mundo. Descalça primeiro os sapatos. Mas só se quiseres ficar de pés soerguidos, senão torna a calçá-los. E agora não fiques para aí de sapatos numa mão e livro na outra.
Regula a luz de modo a não te cansar a vista. Fá-lo já, porque assim que estiveres mergulhado na leitura, nem penses em mexer-te. Arranja-te de maneira a que a página não fique na sombra, um emaranhado de letras negras sobre fundo cinzento, uniformes como uma ninhada de ratos; mas tem cuidado para que não lhe bata de chapa uma luz demasiado forte e que não se reficta no branco cru do papel roendo as sombras dos caracteres como um meio-dia do Sul. Tenta prever tudo o que puder evitar-te o interromper da leitura. Os cigarros ao alcance da mão, se fumares, e o cinzeiro. Que mais é que falta? Tens de ir fazer chichi? Bem, tu é que sabes.
Não é por esperares alguma coisa especial deste livro em especial. És uma pessoa que por questão de princípios já não espera nada de nada. Há muitos, mais jovens que tu mas também menos jovens, que vivem na expectativa de experiências extraordinárias; dos livros, das pessoas, das viagens, dos acontecimentos, do que o dia de amanhã lhes reserva. Tu não. Tu sabes que o melhor que se pode esperar é evitar o pior. Foi esta a conclusão a que chegaste, tanto na vida pessoal, como nas questões gerais e até mesmo mundiais. E com os livros? É isso, exactamente porque o excluíste em todos os outros campos, achas que é justo concederes-te ainda este prazer juvenil da expectativa num sector bem circunscrito como é o dos livros, onde as coisas te podem correr mal ou correr bem, mas o risco de decepção não é grave.»
(…)
Se numa noite de Inverno um viajante [Se una notte d'inverno un viaggiatore], Italo Calvino (Tradução de José Colaço Barreiros, Ed. Teorema)

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