terça-feira, 28 de janeiro de 2014
Ainda mais acolhedora do que o dia
Ainda mais acolhedora do que o dia, a noite apaga todas as contradições. E, coberta por um manto de estrelas dum resplendor de festa, a alma, em vez de adormecer como de costume, sonha.
MIGUEL TORGA, in PORTUGAL (1950), in ENSAIOS E DISCURSOS (Círculo de Leitores, 2002)
sábado, 25 de janeiro de 2014
A SECRETA VIAGEM
No barco sem ninguém, anónimo e vazio,
ficámos nós os dois, parados, de mão dada ...
Como podem só os dois governar um navio?
Melhor é desistir e não fazermos nada!
Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,
tornamo-nos reais, e de maneira, à proa...
Que figuras de lenda! Olhos vagos, perdidos...
Por entre nossas mâos, o verde mar se escoa...
Aparentes senhores de um barco abandonado,
nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem...
Aonde iremos ter? - Com frutos e pecado,
se justifica, enflora, a secreta viagem!
Agora sei que és tu quem me fora indicada.
O resto passa, passa... alheio aos meus sentidos.
- Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,
a eternidade é nossa, em madeira esculpidos!
DAVID MOURÃO-FERREIRA, in A SECRETA VIAGEM (1ª ed., Ed. Távola Redonda, 1950), in OBRA POÉTICA (Ed. Presença, 5ª ed, 2006)
sexta-feira, 24 de janeiro de 2014
PALAVRAS MINHAS
Palavras que disseste e já não dizes,
palavras como um sol que me queimava,
olhos loucos de um vento que soprava
em olhos que eram meus, e mais felizes.
Palavras que disseste e que diziam
segredos que eram lentas madrugadas,
promessas imperfeitas, murmuradas
enquanto os nossos beijos permitiam.
Palavras que dizias, sem sentido,
sem as quereres, mas só porque eram elas
que traziam a calma das estrelas
à noite que assomava ao meu ouvido...
Palavras que não dizes, nem são tuas,
que morreram, que em ti já não existem
- que são minhas, só minhas, pois persistem
na memória que arrasto pelas ruas.
PEDRO TAMEN, in TÁBUA DAS MATÉRIAS - POESIA 1956-1991 (Tertúlia, 1991)
quinta-feira, 23 de janeiro de 2014
Esgotei o meu mal
Esgotei o meu mal, agora
Queria tudo esquecer, tudo abandonar
Caminhar pela noite fora
Num barco em pleno mar.
Mergulhar as mãos nas ondas escuras
Até que elas fossem essas mãos
Solitárias e puras
Que eu sonhei ter.
Sophia de Mello Breyner Andersen
segunda-feira, 20 de janeiro de 2014
e um olhar perdido é tão difícil de encontar
e um olhar perdido é tão difícil de encontrar
como o é congregar ventos dispersos pelo mar
Ruy Belo
sábado, 18 de janeiro de 2014
PENUMBRA
Na penumbra dos ombros é que tudo começa
quando subitamente só a noite nos vê
E nos abre uma porta nos aponta uma seta
para sermos de novo quem deixámos de ser
DAVID MOURÃO-FERREIRA, in OBRA POÉTICA (Ed. Presença, 1988)
sexta-feira, 17 de janeiro de 2014
O BEIJO
Um beijo em lábios é que se demora
e tremem no abrir-se a dentes línguas
tão penetrantes quanto línguas podem.
Mais beijo é mais. É boca aberta hiante
para de encher-se ao que se mova nela.
É dentes se apertando delicados.
É língua que na boca se agitando
irá de um corpo inteiro descobrir o gosto
e sobretudo o que se oculta em sombras
e nos recantos em cabelos vive.
É beijo tudo o que de lábios seja
quanto de lábios se deseja.
(19/5/1971)
JORGE DE SENA, in ANTOLOGIA POÉTICA (Asa, 1999)
quinta-feira, 16 de janeiro de 2014
Cada dia é mais evidente que partimos
Cada dia é mais evidente que partimos
Sem nenhum possível regresso no que fomos,
Cada dia as horas se despem mais do alimento:
Não há saudades nem terror que baste.
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in CORAL (1950) e OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)
segunda-feira, 13 de janeiro de 2014
DESENCONTRO 1
Não ter morada
Habitar
Como um beijo
Entre os lábios
Fingir-se ausente
E suspirar
(o meu corpo
não se reconhece na espera)
percorrer com um só gesto
o teu corpo
e beber
toda a ternura
para refazer
o rosto
em que desapareces
o abraço
em que desobedeces
(1979)
MIA COUTO, in RAIZ DE ORVALHO E OUTROS POEMAS (Caminho, 2009)
domingo, 5 de janeiro de 2014
Pergunta-me
Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue
Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos
Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente
Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
Saibas o que te quero dizer
MIA COUTO, in RAÍZ DE ORVALHO E OUTROS POEMAS, (Caminho, 1999)
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